sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Treze: O inferno começa

Que William Hoffman residia em um bairro afastado e tranqüilo, Erek Leon já sabia. O bar do Dick era um dos poucos endereços comerciais locais, e as casas nas proximidades eram grandes, afastadas e silenciosas. Quando Erek fora deixado para aguardar o retorno de Carlos e Mauricio, a rua estava deserta, bem como o lugar; o bar não estava trancado, e ainda havia copos no balcão. Era como se todos simplesmente houvessem se levantado e partido, o que provavelmente havia acontecido. Nenhum sinal de luta; cadeiras afastadas, porém em pé, como se seus antigos ocupantes houvessem se retirado de forma tranqüila, pacífica. Talvez não estivessem tranqüilos quando houvessem feito aquilo, porém tudo transcorrera bem; contudo, aquele silêncio no crepúsculo era hostil. Era como se o ambiente quisesse enganar Erek, induzi-lo a pensar que estava tudo bem quando o rapaz sabia perfeitamente que a situação nunca se complicara tanto.

E ele sequer sabia que estava preso na cidade, condenado à morte pela empresa que tanto detestava, por um erro que nunca cometera.

Desde que tomara consciência do que se tratava aquela estranha epidemia, deixara sua pistola e sua faca ao alcance e fechara o bar; encontrava-se sentado ao lado da janela de vidro, o rosto colado a ela, à espera de algum movimento; Carlos estava prestes a retornar, e talvez ainda não soubesse da infecção - precisava alertá-lo.

A linha de telefonia morrera havia algum tempo, e Erek estava cada vez mais ansioso; nem Carlos, nem William e muito menos Bethany haviam dado algum sinal de vida. Assim, tudo o que podia fazer era esperar...

Um ronco ao longe e um farol aceso; Erek xingou em voz alta, ergueu-se de um salto e abriu a porta. Abrir, no caso, era levantar aquelas típicas grades metálicas de estabelecimentos comerciais. Ele levantou o suficiente para a moto passar, ainda ligada. Sentiu-se um gângster fazendo isso com aquelas roupas pretas, como no clip "Beat it" do Michael Jackson.

- Desliga logo essa coisa, Carl! - ralhou Erek - Vocês podem ter atraído algum deles!

- Nem brinca, mano, nem brinca! - exclamou Carlos enquanto Mauricio descia da moto - Não acredito no que vi.

- O que você viu?

- Ele não contou, saiu correndo... - começou Mauricio, mas Erek fez um aceno para que se calasse.

- Porra... - disse Carlos - Eu vi o Baker, um colega de trabalho meu... comendo o Brezina!

Tanto Erek quanto Carlos teriam notado que aquela frase seria alvo de risadas e comentários maldosos, dados seus múltiplos sentidos, mas as palavras da reportagem ainda vívidas na mente de Erek e a palidez no rosto de Carlos indicavam que, pelo menos naquele momento, piadinhas não haviam sido cogitadas.

- Canibalismo. - resumiu Erek, inspirando profundamente - Foi o que você se viu.

- Que se dane a expressão correta, um tava comendo o outro! Comendo, mesmo, mano.

Erek concordou com a cabeça; ao contrário de Mauricio, que parecia prestes a desmaiar de terror, o amigo parecia apenas conformado.

- Acho que você não parece muito surpreso. - estranhou Carlos.

- Estava esperando vocês chegarem para contar. Não sabem a merda que aconteceu. - e começou a explicar tudo desde o início; quando encontrou Hoffman, quando descobriram que Alice e Maryane estavam mortas, como lera por acaso a reportagem...

Carlos e Mauricio empalideciam a cada segundo, porém o primeiro parecia firme, mesmo em pé; sentou-se apenas quando suas pernas cansaram, e continuou a escutar a história atentamente. Quando Erek chegou à parte em que encontraram o corpo das duas Hoffman, o rapaz não se conteve.

- Cacete... o que vai ser do Will agora?

Erek prosseguiu com a história enquanto imaginava onde estaria o amigo naquele exato momento; quando terminaram, Carlos estava aparvalhado.

- Então aqueles merdas teriam me mordido no escritório? Eu teria virado um deles?

- Sim, Carl, mas o seu bom senso o salvou. Ainda bem.

Carlos refletiu por um breve instante sobre o número de vezes em que escapara da morte, até perceber que essa análise não era uma prioridade; de repente, seus pensamentos vagaram até Bethany e Will.

- Erek... e Bees?

- Nenhuma notícia.

- Você acha que...

- A esta altura, Carl, só podemos imaginar... talvez seja melhor nem imaginar.

- E Will?

- Não sei, saiu enfurecido daquele jeito dele. Você conhece ele, apostaria a minha arma que ele foi tirar satisfação com alguém. Harker, provavelmente.

- Filho da mãe esse Harker. Erek?

Os três rapazes eram silhuetas no bar às escuras; mal conseguiam discernir os rostos uns dos outros. Haviam ocupado as cadeiras mais próximas e não chamariam a atenção de ninguém que estivesse do lado de fora, dada a facilidade com que se camuflavam no breu e no tom de voz que usavam, abafado pelo local fechado.

- Diga, Carl.

- Eu quero encontrar Bethany.

Erek refletiu brevemente se o fato de Carlos chamar a amiga pelo nome e não pelo apelido seria um indicativo do peso da decisão tomada.

- Carl... Bees também é minha amiga... mas, nas atuais circunstâncias, as chances de ela ainda estar viva são...

- Não termine essa frase. Se não fosse por ela, provavelmente estaríamos mortos.

- Você sabe muito bem que não podemos afirmar isso.

- Ah, qual é, o seu laboratório fica no centro da cidade, te atacariam e você nem poderia chamar a mamãe se a Bees não tivesse me tirado da cama às cinco da matina!

- Carl...

- Acho que ele está certo. - Mauricio manifestou-se repentinamente, sua silhueta mexendo-se e indicando que ele encarava Carlos - A amiga de vocês deve estar morta, não tem outra explicação. Se estiver viva, já saiu da cidade.

- Ah, cara, me poupe do seu pseudo bom senso, você é apenas um cagão que está aqui de alegre e quer uma desculpa pra se acovardar! - retrucou Carlos, mordaz.

- Carlos, pare. - pediu Erek, sempre sério - Ofender o cara não vai trazer a Bees sã e salva.

- Eu não estava tentando trazer ela, só estava mandando uma rajada de realidade para esse cara, puta cara cagão, mano... vocês podem fazer o que quiserem, eu vou procurar ela.

- E como vai enfrentar os canibais?

- Nada que uma bala não resolva, de preferência na cabeça, só pra ter certeza.

- Você tem alguma?

- Em casa, sim.

- Beleza. Vamos esperar o Will voltar e ver se ele tem novidades; dependendo de como for, eu ajudo a procurar a Bees. Quando nós três nos agruparmos, decidiremos tudo.

- Certo.

Mauricio permanecia encolhido, apenas escutando o que diziam. Ainda estava em estado de choque diante daquela revelação: naquele exato momento, Raccoon City estava coalhada de mortos-vivos. Mortos-vivos que não hesitariam em atacá-lo. Mortos-vivos que, horas antes, eram os habitantes da cidade. E estavam encurralados naquele bairro metido bem na ponta do fim do mundo.

Estava sonhando, só podia ser isso.

Os minutos transcorreram lentamente, e os últimos raios de sol recolhiam-se, de modo que o céu adquiria tons cada vez mais escuros. Erek e Carlos nada diziam, sentados de frente um para o outro, pensativos. Não é preciso discorrer que tudo passa pela cabeça de uma pessoa nessas situações: havia um grave problema que apelava para o instinto de autopreservação do bicho homem, porém nenhuma das três almas ali presentes corria risco imediato e todas ainda gozavam de um momento de breve descanso físico, que seria procedido por decisões que foram, naquele momento, adiadas. Numa situação dessas, pensa-se no passado, no presente, no futuro, no presente... em todas as experiências, nas pessoas conhecidas, algumas vezes em pessoas desconhecidas... saboreia-se o medo, a dor, a raiva, a angústia e a saudade. A prioridade dos sentimentos varia de pessoa para pessoa.

Erek pensava em todas as vezes em que acusara a Umbrella de práticas ilegais. Apesar de afirmar para todos que tinha certeza de que algo assim um dia aconteceria, nem mesmo ele pensara que, de fato, fosse acontecer - não daquele jeito. Mortos-vivos, caminhando sem rumo pela cidade e devorando as pessoas? Era uma brincadeira de muito mau gosto.

Carlos pensava no que fazer. Estaria Will bem? Se ele aparecesse, o que fariam? Sairiam da cidade, procurando Bees pelo caminho? Varreriam a cidade em busca de Bees? Como os mortos-vivos seriam contidos? Como estaria sua família em sua cidade natal? Harker a deixaria em paz? E se Will não aparecesse? Ficariam ali até quando?

Mauricio só queria descobrir que aquilo tudo era um pesadelo e acordar às seis horas da manhã para trabalhar.

De repente, o ruído de um motor ecoou pela rua deserta; era um ruído característico, familiar, abafado por uma música alta de rock.

- Chegou! - disse Erek, erguendo-se para abrir a porta.

O jipe de William Hoffman parou cantando pneu diante do estabelecimento, e o cowboy texano saltou do veículo; os óculos escuros ainda no rosto anulavam qualquer expressão sua, e o cigarro brincava no canto de sua boca.

- Desliga o rádio, Will! - pediu Erek com impaciência - Ou eles vêm chupar os seus miolos!

Inclinando-se por cima do banco em um movimento displicente, Hoffman desligou o rádio e retornou ao grupo, na frente da loja.

- E é melhor entrar, você com certeza atraiu algum deles.

- Pouco provável, contornei a cidade até aqui. - respondeu William calmamente - E o Dick?

- Se mandou há tempos, cara.

- Todo o mundo bem? Alguém ferido?

- Estamos todos bem. - respondeu Carlos - Só esperando. Onde raios você se meteu?

- Estava acertando contas com o assassino de minhas garotas, Carl, como você deve saber. O filho da puta escapou. - acrescentou, respondendo a uma pergunta silenciosa - Mas fez questão de dar o troco.

- Como assim?

- Ele mandou trancar toda e qualquer porta desta maldita cidade. Estamos presos, encurralados, o que preferirem. Mesmo que alcancemos as saídas no meio dessa merda, estará trancada. Com uns bostas de tocaia para atirar assim que um vivente der o ar da sua graça por aqueles cantos.

Erek e Carlos xingaram alto, e Mauricio apenas arregalou os olhos, tentando absorver a informação de que não só estavam cercados por mortos-vivos como estavam presos com eles, como ratinhos na jaula de um leão faminto. E aquele homem de chapéu dizia aquilo com toda a tranqüilidade - só podia estar brincando!

- Fodeu. - Carlos resumiu a situação em que estavam.

- Não necessariamente. Não sei quanto às mocinhas, mas nesta festa é que não fico. - afirmou William calmamente, jogando o toco de cigarro no chão e apagando com o pé - Eu preciso estar vivo para pegar aqueles desgraçados, e para isso, preciso sair da cidade. Quem quiser, venha comigo.

- Ah, claro, porque eu pensei seriamente em ficar aqui, tomar todos os Johnny Walkers que o Dick armazena atrás do balcão e morrer... - ironizou Erek - É claro que vamos com você! Qual é o plano?

- Vamos para a minha casa. Esta será uma longa noite, e precisamos estar preparados para ela.

- Beleza. Minha moto cabe na traseira dessa banheira? - perguntou Leon, indicando o jipe com a cabeça.

- Nunca chame meu companheiro de viagem dessa forma.

Erek sorriu.

- Então vou buscar a minha belezinha. Agüenta aí.

William apenas ergueu as sobrancelhas com um sorriso tranqüilo enquanto acendia outro cigarro.
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Como se estivessem jogando o jogo dos sete erros, o primeiro fato curioso que os quatro rapazes notaram, a bordo do jipe de Hoffman,, ao chegar na casa do amigo, foi a porta da fachada aberta.

- Pensei que a tivesse trancado.

- Você estava muito nervoso, cara, deve ter só batido.

Os três amigos saltaram do jipe; Mauricio imitou-os receoso de ficar sozinho.

- Certo, precisamos de um vigia. Pode ser você, filho. - acrescentou William para Mauricio - Fique aí no carro; se aparecer uma daquelas criaturas, atire na cabeça.

Mauricio empalideceu.

- Mas... eu nem sei atirar...

- Will, talvez não seja uma boa idéia. Esse cara vai acabar dando um tiro no próprio saco. - comentou Erek, impaciente.

- Alguma idéia melhor?

- Me dê a arma, eu fico aqui de prontidão. Se eu der um tiro, vocês saberão.

William assentiu.

- Feito. Fiquem vocês dois que Carlos e eu entraremos.

Assim, Erek saltou para o banco do motorista, e Mauricio colocou-se ao seu lado. Sacando o próprio revólver, William iniciou sua caminhada até a porta aberta. Na entrada, passou a arma para o companheiro e sacou a Magnum.

- Will? - sussurrou Carlos - Você sabe, não sabe?

- O quê?

- Alice e Mary...

- Por que tu acha que eu tô armado, parceiro? Me dê cobertura.

Carlos concordou; William deu um passo à frente, sua bota tocando o capacho da entrada e, com uma mão, tateou a parede interna, da casa, à procura do interruptor. Estava preparado para saltar para trás, para longe da mira de Carlos, a qualquer ruído.

Seus dedos encontraram o interruptor, e foi com satisfação que eles os acionou. Imediatamente, o hall e a sala foram iluminados; apesar do silêncio hostil, nada parecia fora do lugar.

Atentos a qualquer ruído, os dois pisaram no tapete de desenhos abstratos do hall; apenas escutavam a respiração do outro. Nada se mexia no pavimento superior, nada se movia na sala. E a porta que levava à garagem estava aberta.

Carlos olhou para ela, receoso, porém um movimento repentino em sua visão periférica chamou-lhe imediatamente a atenção; era Will, que gesticulava com a mão livre, chamando-o. Quando recebeu a atenção desejada, indicou a porta que o amigo sabia levar ao porão. Carlos concordou com um aceno e os dois rumaram para ela. Quando Will começou a apalpar o sobretudo, Carlos redobrou a atenção, posicionando-se de costas para o amigo, como um segurança, olhando para todos os lados. Ouviu um barulho metálico e abafado de chaves e, quando olhou para William, este já havia enfiado a chave na fechadura.

A porta não abriu com um rangido, indicando que William passava óleo nas dobradiças com freqüência, e Carlos agradeceu mentalmente por isso; até ali, haviam se saído maravilhosamente bem, se provocar um ruído sequer - o das chaves fora muito baixo, e Visconti só o escutara por estar muito perto. William acendeu a luz, que iluminou uma escada que desaparecia no subsolo e, em seguida, comprimiu-se contra a parede para Carlos entrar e fechou silenciosamente a porta atrás de si.

- Dá para ouvir a rua daqui? - sibilou Carlos.

- Não. Os outros ficarão bem.

Carlos concordou com a cabeça e seguiu o amigo escada adentro. Embora porões fossem cenário de histórias de terror, sentia-se seguro naquele; era o único lugar da cidade onde tinha certeza de que ninguém os atacaria. Conhecendo William Hoffman, sabia que nem o serviço secreto da Umbrella ousaria pisar ali sem topar com algo que avisasse William de sua presença... provavelmente torrara dinheiro em recursos tecnológicos discretos e de última geração para garantir a segurança daquele lugar, que aparentemente continha algo muito importante para a sobrevivência em uma cidade atacada por mortos-vivos...

- Will - chamou Carlos ainda com esses pensamentos - Quais mecanismos de segurança você usa neste lugar?

- Passo a chave nele toda vez que saio. Por quê?

- Hm - fez Carlos, ligeiramente frustrado - Fiquei curioso, só. - e, pensando melhor, acrescentou - Afinal, cara, no que você torra todo o seu dinheiro? Sua casa é humilde, seu carro é velho, você não viaja muito, não gasta à toa...

- Torro naquilo.

Haviam chegado ao fim da escada, onde William levara a mão automaticamente ao interruptor que ali havia, iluminando o resto do porão.

Carlos ergueu a cabeça e boquiabriu-se. Não havia utensílios velhos empilhados, como bem havia suposto; o conteúdo do lugar, porém, não era exatamente imprevisível, tendo como base a personalidade do amigo texano. Não que Carlos não houvesse se surpreendido; é que aquilo era elevar os hábitos de William ao extremo, beirando o exagero.

Armas de fogo, armas de longo alcance, armas de curto alcance, armas de todos os tipos de calibre e tamanhos, armas de vários anos haviam sido organizadas em prateleiras e mais prateleiras iluminadas pela lâmpada fria, eqüiparando aquele pequeno porão a um arsenal militar. Poderiam ser facilmente mais de cem.

- Quem diria... - assoviou Carlos - Eu sou amigo de um colecionador, dos bons.

- Isso se chama sorte, companheiro. Vai, me ajuda a pegar algumas menininhas.

- Quais?

- Recomendo umas duas ou três. Para você, as melhores são as leves.

Os dois se separaram; Carlos não prestou muita atenção no que o amigo fazia, estava fascinado com a peculiaridade do lugar onde se encontrava. Ao ouvir o conselho do advogado, vagou, perdido até encontrar as prataleiras que continham pistolas. Optou por duas Desert Eagle.50.

- Hmm - fez William aprovadoramente, observando de seu canto - Sete balas a rodada. Leve cinco pentes.

- Eu posso carregar mais.

- Não, não pode. Vai por mim - acrescentou Will, o cigarro apagado no canto da boca, abaixando a cabeça para uma prateleira qualquer.

Carlos não discutiu, perguntando-se o que o amigo tinha em mente; encontrou os pentes na prateleira sob as armas e os embolsou.

- Tem coldres ali no canto. - avisou Hoffman , de cabeça baixa, olhando para as armas- Vai caçando o que precisar. Não vamos esbarrar em um arsenal a cada esquina.

Carlos apanhou um coldre, prendeu-o à cintura e guardou nele as pistolas e a munição. Caminhou, desacostumado ao peso no quadril, à procura de mais armas.

- O que é melhor para o Erek?

- Algo mais forte, pesado. E uma pistola.

Carlos retornou às pistolas e escolheu uma diferente; encontrou rifles adiante e apanhou, passando a bandoleira pelo ombro.

- E aquele pobre infeliz, o Mauricio?

- Pistolas também. Glock 18, leve duas.

Carlos apanhou mais dois coldres e colocou-os a tiracolo, sentindo-se um perfeito cabideiro; as armas e a munição estavam começando a pesar.

- Mais alguma coisa?

- Acho que é só... - disse Hoffman, erguendo um rifle com tranqüilidade, apenas para admirá-lo - É... ah, tem as facas também. Cada um precisa levar uma.

- Você tem alguma idéia, Will? - perguntou Carlos, encaminhando-se para uma mesa de vidro com armas brancas - Estamos na merda, cara.

- Só posso concordar contigo. - retorquiu o amigo calmamente, caminhando entre as fileiras de rifles e escopetas - Qualquer coisa, meu santo tá garantido. - e apontou para o crucifixo.

- Diz isso ao Erek, ele é ateu.

William esboçou um meio sorriso enquanto Carlos tornava a olhar para as lâminas. Cada um poderia levar duas, pensou o programador, e tentar não perder nenhuma. Nenhum deles usaria ao mesmo tempo duas, o que significava que uma ficaria guardada... somente Bees sabia manejar duas espadas ao mesmo tempo. Ela praticava... qual era mesmo o nome daquele tipo de arte marcial? Teria de perguntar quando a encontrasse...

Escolheu algumas foices, adagas e facões enfiou-os nos coldres com todo o cuidado; pareciam muito afiadas e estavam impecavelmente polidas, como tudo naquele lugar.

- Seria bom também que evitássemos o máximo de contato com a mordida deles. - comentou Carlos - Você também armazena trajes?

- Tenho coletes, cotoveleira... quer?

- Não, estava pensando em algo para o braço e para o pescoço. Seria bom ter alguma coisa pra evitar isso.

- Ah, sim... nesse caso, cautela, mano... muita cautela!

Carregando uma segunda Magnum com um estalo característico de filmes de ação, o texano acrescentou:

- Tenho alguns casacos lá em cima. Não resolve, mas ajuda.

- Valeu, mano, mas acho que morro de calor com um dos seus casacos antes de receber alguma dentada.

- Tu é quem sabe. Pegou tudo?

- Arma, munição, faca, bandoleira, coldre... e você, o que vai levar?

William apenas sorriu, guardando a segunda Magnum dentro do sobretudo.

- Cara, você tem um arsenal e só vai levar dois revólveres?

- Não esquenta, eu me viro. E aí, pegou tudo?

- Bom, creio que sim. Falta alguma coisa?

- Falta. - disse William, dirigindo-se a uma gaveta à direita de Carlos e a abrindo com um tapa - Cigarros. - acrescentou, tirando três maços de Marlboro e guardando-os no bolso.

- Você mais mesmo guardar cigarro onde caberia mais munição?

William ergueu as sobrancelhas por trás dos óculos escuros, visivelmente surpreso.

- Mano... tu já percebeu que ando com casaco mesmo no calor?

- Já, e já senti calafrios por isso, por mais paradoxal que possa parecer. Será que estou prestes a descobrir por quê?

William sorriu, o cigarro na boca, e puxou um dos lados do sobretudo, a fim de revelar seu interior.

- Bolsos para guardar cigarro. - respondeu com simplicidade - Acho que já pegamos tudo. Falta a comida.

- Não tem comida nas gavetas, tem?

- Não, mas na cozinha tem. Faz o seguinte: leva a carga para os caras lá fora que eu apanho as rações.

- Eu não vou reclamar se tiver granola.

Os dois subiram as escadas, Will parando para apagar as luzes atrás de si. Quando se aproximaram da porta, Will levou os dedos aos lábios e sussurrou:

- Te dou cobertura. Apenas cai fora.

O texano abriu silenciosamente a porta e aguardou; não houve nenhum ruído. Carlos esgueirou-se para a sala de forma ágil, considerando-se o peso que carregava, sempre olhando atentamente para os lados. Os segundos vieram e passaram sem que um ruído fosse ouvido, e William seguiu-o também sem fazer barulho. Não havia nenhum volume desproporcional em seu sobretudo impenetrável, e o cowboy apenas estava munido de uma Magnum. Finalmente, Carlos chegou à porta, olhou para os lados e saiu.

Erek e Mauricio eram visíveis no carro, exatamente onde aviam se colocado quando a outra dupla entrou na casa, e ambos olhavam para Carlos boquiabertos; Carlos demorou alguns segundos para entender que eles ainda não sabiam do arsenal de William. Ele caminhou o mais rápido que pôde até o jipe enquanto Erek saltava do veículo para ajudá-lo.

- Nossa, Will deve ter esvaziado o arsenal dele em você!

- É aí que você se engana; acho que não peguei nem um décimo do que ele possui.

- Caramba, como ele nunca me contou uma coisa dessas?!

- Pelo visto, não contou a ninguém.

Os dois carregaram as armas e as soltaram no banco traseiro do carro, organizando o arsenal que possuíam. Quando Carlos estava distribuindo os coldres entre os membros do grupo, ouviram um tiro. Imediatamente, Erek apanhou uma arma e deu um passo na direção da casa.

- Não. - disse Carlos - Deixe.

- Mas ele pode precisar de ajuda...

- Ele não precisa e nem quer.

Um segundo tiro. Mauricio olhava da casa para a dupla, apavorado. Carlos e Erek haviam abaixado a cabeça em uma muda compreensão dos fatos que aconteciam naquela noite. Tentavam afastar todo e qualquer tipo de pensamento, sem sucesso.

- Bem... eu acho que isso foi tudo. - concluiu Erek.

Carlos assentiu.

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Enquanto Visconti saía da casa com sucesso, William, por sua vez, caminhou até a cozinha naquele passo preciso e desprovido de charmes ou meneios, que indicava determinação e cautela. Ainda não acendera o cigarro. A porta da cozinha estava apenas encostada; pensou ter ouvido o ruído de um talher caindo.

Suspirou. Algo lhe dizia não se tratar de uma coincidência.

Colocou-se ao lado da porta, junto às dobradiças, sempre atento; sabia que esse momento chegaria. Não estava disposto a deixar as duas mulheres de sua vida vagarem sem alma, e sabia também que elas não teriam ido muito longe enquanto esteve fora. E sabia que somente uma pessoa teria de fazer o serviço.

Não ficara sozinho em casa por acaso. Planejara aquilo desde que se reunira aos amigos. O momento era aquele e não deixaria passar; sabia que não estavam vivas, sabia que as tinha perdido no instante em que as tocara, porém havia uma resistência em alguma parte do seu corpo em simplesmente abrir a porta e entrar. Apesar de saber que era o correto a fazer, não deixava de se sentir miserável por isso.; ao mesmo tempo em que sentia que precisava dar um destino decente aos seus corpos, era como se as estivesse matando... e, ao mesmo tempo, ainda, era como se seu espírito se recusasse a ver no que as duas haviam se transformado... por sua culpa.

Por mais sedento de vingança que estivesse, sabia que a culpa estava devorando sua mente, seu espírito. Sabia que o último culpado digno de vingança... era ele.

Não queria mais pensar; com um movimento repentino, endireitou-se diante da porta, empurrou-a com um pontapé e esperou. Imediatamente, um gemido ecoou pela cozinha na penumbra, iluminada apenas pela noite clara que penetrava pela janela de vidro; Alice sempre erguia as venezianas quando acordava e as descia à noite. Desta vez, não havia descido.

O primeiro vulto que divisou arrastando-se pela cozinha era o de Alice; ao ver William, ele se aproximou, andando lentamente, com um gemido baixo e contínuo. William recuou o quanto pôde, tentando readquirir o máximo de bom senso que perdera ao se deparar com aquela cena. Poderia ter passado anos refletindo ao lado da porta - antes de abri-la com chute - que jamais estaria preparado para aquilo.

Quando Alice foi iluminada pela luz do corredor, William pôde vê-la com clareza. Pálida como a morte, as vestes sujas de vômito e sangue, estava mais ferida do que da última vez em que a vira. Seu rosto estava macerado em uma das bochechas, e havia muito sangue e carne exposta ao redor; parte do músculo masseter estava pendurada. Hoffman podia imaginar que havia acontecido em sua breve ausência.

- Eu sinto muito, meu amor. - e, sem pensar muito, esticou o braço e apertou o gatilho. A bala acertou Alice bem no meio da testa e a empurrou para trás, causando-lhe uma queda que não a fez mover-se mais.

Ouviu um gemido abaixo de sua cintura; atraída, sem dúvida, pelo tiro ou pela voz do pai, Maryane mancara silenciosamente em sua direção, a boca escancarada e suja de sangue. Pálida como a mãe, os olhos esbranquiçados e os dentes amarelados e altamente infectados, ela conseguira tocar a calça de William e estava pronta para atacar.

Instintivamente, William apertou novamente o gatilho. A bala acertou a testa da garotinha, fragmentando-se em sua carne, arrebentando-lhe a cabeça, que agora se transformara em pouco mais do que uma massa sangrenta.

E agora estavam as duas mortas em sua própria casa, pela segunda vez, uma à frente e a outra à direita. No corredor por onde haviam passado tantas vezes, rindo ou chorando, com ou sem William... enquanto haviam vivido. E agora estavam mortas.

Controlando-se para não pensar, Hoffman caminhou até o quintal, onde havia uma estufa; Alice adorava plantas, e Maryane sempre a ajudara a plantás-las e regá-las com entusiasmo. Havia um local escavado pelo advogado recentemente, onde plantariam algumas mudas em poucos dias. William calculara bem; era uma cova rasa um pouco maior que uma pessoa. Sem delongas, carregou o corpo da mulher e o da filha e colocou-os no buraco - uma abraçada a outra - e cobriu-as com um lençol. Deixara uma trilha de sangue pelo caminho, mas não se importava com isso.

Em seguida, apanhou a pá e jogou a terra recém-removida sobre seus corpos. Não foi um trabalho longo; só precisara empurrar a terra de volta ao seu lugar. Terminado o serviço, enfiou a mão em um dos bolsos, sacou um crucifixo de alumínio e colocou-o onde estaria enterrada a cabeça de Alice. Silenciosamente, fez o sinal da cruz e sussurrou:

- Descansem em paz, minhas meninas. Eu sinto muito.

Em Raccoon City, finalmente o caos fora substituído pelo silêncio. Os gritos haviam cessado; o trânsito havia parado. Em cada canto, o pânico. Medo. Dor. Solidão. Um dia em que cada segundo desperdiçado podia ser a diferença entre a vida e a morte, de uma forma mais nítida. Sangue, dor, perdas. Gritos de agonia seguidos de um silêncio perturbador, interrompido apenas por estranhos ruídos nas sombras.

Aquele era um dia em Raccoon City.


William Hoffman deu as costas ao túmulo e retornou à casa, parando apenas para acender um cigarro; ainda havia uma missão a ser cumprida e uma noite cheia pela frente.



Dust In The Wind (Poeira ao Vento) - Kansas


I close my eyes
(Eu fecho meus olhos)

Only for a moment,
(Apenas por um momento)

And the moment's gone.
(E o momento desaparece)

All my dreams,
(Todos os meus sonhos)

Pass before my eyes, a curiousity.
(Passam na frente dos meus olhos, uma curiosidade)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All they are is dust in the wind.
(Tudo que eles são é poeira ao vento)

Same old song,
(A mesma antiga canção)

Just a drop of water in an endless sea.
(Apenas uma gota d'água em um oceano sem fim)

All we do
(Tudo que fazemos)

Crumbles to the ground,
(Desaba sobre a terra)

Though we refuse to see.
(Embora nós nos recusemos a ver)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All we are is dust in the wind.
(Tudo que nós somos é poeira ao vento)

Now, don't hang on,
(Agora, não desista)

Nothing lasts forever
(Nada dura para sempre)

But the earth and sky.
(Além da terra e do céu)

It slips away,
(Ele fugirá)

And all your money
(E todo o seu dinheiro)

Won't another minute buy.
(Não vai comprar outro minuto)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All we are is dust in the wind.
(Tudo que somos é poeira ao vento)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All we are is dust in the wind.
(Tudo que somos é poeira ao vento)


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Fim da primeira parte.




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