sábado, 26 de setembro de 2009

Doze: As portas se fecham

Pelas ruas de Raccoon City, outrora tão organizadas e movimentadas, notava-se o tão recente e crescente caos. A tarde avançava, célere, sem aguardar resolução alguma, e o sol parecia afastar-se daquela cidade como se afirmasse não poder reinar sobre um império de trevas. As ruas, sempre tão espaçosas, agora eram pequenas para o trânsito caótico que ali se instaurara. Ruas e mais ruas centrais, estreitas ou largas, testemunhavam acidentes consecutivos no tráfego; pessoas, feridas de diversas formas, esgueiravam-se por carros e lojas, gritando por conhecidos, gritando de dor, gritando de medo. Algumas ainda carregavam malas para um destino desconhecido, segurando as mãos de entes queridos; desistindo de transitar pelas ruas caóticas, caminhavam a pé rumo à saída da cidade, e nem assim deixavam de ser vítimas, ora de carros por alguma razão desgovernados, ora de pessoas vítimas daquela estranha epidemia que se alastrava como fogo em pólvora. Os gritos e vozes que se misturavam não tinham como fonte apenas as ruas em si, mas também os prédios; objetos de uso pessoal, por vezes, caíam das janelas dos edifícios ao mesmo tempo em que brados de um pânico generalizado eram ouvidos; brados misturados a sinistros e constantes gemidos.

Qualquer instituição responsável pela ordem pública - polícia, corpo de bombeiros, até mesmo a Umbrella Corporation - havia desaparecido em meio ao caos. Assim, a cidade se resumia ao medo, à dor e ao abandono.

- Fabian! Fabian!

Um menino abriu os olhos, deparando com a escuridão interrompida apenas por uma fresta de luz entre seus olhos; um pensamento obscuro ocorreu-lhe no mesmo instante em que a carga de adrenalina atingia o ápice subindo à sua nuca. Empurrou com força as duas portas à sua frente, deparando com a claridade da tarde que avançava e aprumou-se fora do armário de seu quarto.

Instantaneamente, um grito estrangulado ecoou à sua direita, e um vulto quase duas vezes mais alto jogou-se sobre o frágil corpo de uma criança de oito anos; o menino nada pôde fazer a não ser gritar, enquanto aquele ser, que outrora fora seu herói - seu pai Robert -, abocanhava seu ombro, ávido, com a mesma satisfação que mordera uma coxa de galinha diante do filho tantas vezes no jantar, após dias cansativos de trabalho.


Um grito feminino, mais humano, em algum ponto acima, uma pancada
aguda, um encontro embolado de corpos, e uma mão puxando a gola de sua camisa.


- Corra, depressa!

O garoto ergueu aos tropeços de seu quarto, insensível a tudo o que acontecia, pensando em seu objetivo que era a porta à sua frente... saltou carrinhos e cadernos espalhados, ignorou o computador ligado - que, por sinal, estivera usando meia hora antes de seu pai chegar. Ainda se lembrava...

Saiu do quarto, entrando no corredor impecável...

Acordara gripado, e aproveitara a oportunidade para faltar de aula com o consentimento da mãe. Mal sabia ela que o estava livrando da cobrança de um trabalho escolar que ele não fizera...

Podia ouvir passos céleres atrás de si...

A mãe e o pai haviam saído para trabalhar, e no instante em que a porta batera, o garoto saíra da cama e voara para o computador. Havia monstros a exterminar antes do almoço...

Agora que corria, apavorado e confuso, e o corredor onde tantas brincara com o carro de controle remoto parecia bem maior do que até então fora...


A manhã passara tão rapidamente quanto um relâmpago; batera recordes exterminando monstros, seus colegas de sala não acreditariam nisso... então ouvira alguém chegar.

As escadas, as escadas! Conseguira alcançá-las, e os passos continuavam a ecoar, bem como um estranho e terrivelmente familiar rosnado...


Desligara o pc e voltara correndo para cama; era fim da tarde, e nem seu pai e nem sua mãe haviam voltado até aquele instante, o que era normal. Qual dos dois chegara? Logo descobriria.

Será que arriscaria descer pelo corrimão? Parecia-lhe uma boa idéia, afinal os passos atrás de si estavam demasiado próximos; nunca ganhara de seu pai nas corridas - suas pernas eram muito menores...

Mas não descobrira. O recém-chegado, fosse quem fosse, não entrara no quarto; Fabian ouvira um estardalhaço na cozinha - alguém derrubara as panelas -, e o telefone no mesmo local tocara. Lembrava-se que temera pela vida mais do que tudo, miaginando se
algum ladrão acabara de invadir sua casa quando a voz de seu pai, atendendo ao telefone, ecoara. stivera gritando, gritando para a mulher voltar para casa.


O medo levou a melhor; decidiu descer pelos degraus, como a mãe sempre recomendara, os passos atrás de si eram assustadoramente céleres...


Aliviadíssimo por ouvir a voz do pai, levantara-se e correra até a cozinha - péssima decisão - para encontrá-lo caído no chão, ao lado da mesa redonda, a cabeça entre as pernas. Não notara que a camisa que o pai estava usando não era a mesma da manhã, mas observara que seu ombro estava ferido e enfaixado cuidadosamente, como o garoto vira tantas vezes em filmes.
"Papai, o que aconteceu?"

- Não olhe para trás, Fabian!


Quase podia sentir o alívio mesclar-se à aflição quando a voz da mãe gritara logo atrás; não era seu pai quem estava tão próximo, era
ela!


Robert apenas erguera o rosto assustadoramente pálido, os olhos esbranquiçados, e soltara um rosnado mais animalesco que o dos cachorros que criara; Fabian, até então agachado, correra intuitivamente, e pôde ouvir o pai segui-lo escada acima até o seu quarto...


Pulou os três últimos degraus, caindo em pé como um gato, e correu até o hall. A porta estava entreaberta, a luz solar vespertina penetrando na fresta... só mais um pouquinho...


... e fechara-se em seu armário. Para sua surpresa, o pai não o procurara, mesmo aquele esconderijo sendo tão óbvio quanto o vão sob a cama. Sem dúvida, fora muito estranho, porque Robert apenas vagara, tonto, pelo quarto, sem se dar o trabalho de encontrar o filho; uma vez que este estivera fora de suas vistas, sua presença não mais o incomodara, passando, então, a vagar pelo quarto por vários minutos, até o grito da mãe ecoar por toda a casa...


Puxou a porta com força, precipitando-se por ela com a sede de quem busca um jarro de água no deserto; estava tão ávido por escapar que tropeçou no primeiro degrau de cimento à entrada da casa.
Sabia por que o pai estava agindo daquele jeito. Escutara tantas vezes através das portas e frestas, ou até mesmo, camuflado entre os balaústres o que sua mãe tanto dissera a Robert: um dia a bebida o mataria.

E enquanto isso não acontecesse, ele voltaria para casa bêbado, mal conseguindo esgueirar-se até a própria cama. Não deveria ter ido ver o pai na cozinha; deveria era ter se escondido, como sempre fizera.


- Levante-se, meu filho!


Uma mão o puxou para cima, e o estranho gemido que o seguia pareceu mais alto; o garoto arrastou-se para frente, pondo-se de pé no instante em que ouvia um forte baque; virando-se, deparou com o próprio pai caído sobre sua mãe, esta descabelada, as vestes rotas e sangrentas; a mulher gritou enquanto tinha a região da clavícula abocanhada, aquele líquido vermelho-vivo sujando-lhe as vestes mais intensamente.


- Larga ela!

O menino tentou empurrar o pai para longe, porém este parecia bem mais forte; quando as mãos do garoto, ensangüentadas (ele estava sangrando?!), empurraram o rosto de Robert no intuito de fazê-lo largar a pele da mãe, os dentes aparentemente sujos de limo do homem fecharam-se em torno de seus dedos. Fabian gritou, e sua mãe também, seus gritos misturando-se aos rosnados, mordidas e todo o ruído da sombria luta da qual a família, embolada no chão, na fachada da casa, participavam. Era fato que mãe e filho não conseguiam dominar aquele homem estranhamente sedento de sangue...

Passos pesados e um tiro abafado por um silenciador; no instante seguinte, Robert, com um buraco no cocuruto, não se mexia mais; a mãe empurrou seu corpo inerte para o lado, erguendo-se com dificuldade devido aos ferimentos e arrastando junto seu filho. Diante dos dois, um homem jovem, trajando a farda dos S.T.A.R.S, fitava-os, o olhar enigmático sob as sobrancelhas densas.

- Sinto por ele. - disse ele, indicando o morto com a cabeça - Estão todos bem?

- Olhe bem para a gente! - retorquiu a mulher, o rosto contraído de desespero, enquanto abraçava o filho à frente, os braços, pernas, pescoço, tronco e rosto manchados de sangue - É claro que não!

O menininho, sentindo seu ombro latejar quando a mãe tocou sua ferida, fez uma careta, assustado com sua histeria.

- Nós podemos ajudar. - disse o rapaz - Venha conosco, podemos ajudá-la. Todos estão saindo da cidade...

- Você não entendeu?! Não adianta mais! - exclamou a mulher, as mãos fechando-se no colarinho do filho - Eu sei o que acontece quando eles te mordem! Não vê? Acabou.

Um segundo S.T.A.R, mais atarracado, então, aproximou-se, as feições largas contorcidas de preocupação.


- Estão todos bem, DB? É melhor nos apressarmos...

- Certo, Matt... - disse o primeiro, olhando para o companheiro - Olhe, esses dois estão feridos, precisamos de...


Mas do que eles precisavam, o jovem de boina nunca chegou a saber porque, naquele instante, um rosnado baixo o interrompeu, e quando os dois voltaram-se para verificar, a mãe estava mordendo a orelha de sua cria, que gritava desesperadamente.


- Merda! - exclamou o segundo S.T.A.R., enquanto o primeiro erguia a pistola e efetuava outro disparo.
Contudo, um movimento brusco do menino que se debatia causou-lhe um raro erro, e o tiro não acertou o rosto da mulher, e sim testa da criança, que desabou como uma marionete; a mãe, pálida e indiferente à perda de seu único filho, deixou-se cair sobre ele, abocanhando cada parte do seu corpo que conseguia.

O rapaz de boina olhou para o lado, enojado, e DB, franzindo a testa e crispando os lábios, igualmente revoltado, disparou novamente, acertando a mulher desta vez. Os segundos seguintes, em que DB apenas olhou para o resultado de seus disparos e Matt imitou-o, foram extremamente desagradáveis, até o silêncio ser quebrado.

- DB? - chamou Matt - Vamos...


Somente quando o amigo segurou-o com firmeza pelo ombro, DB acordou de um devaneio, taciturno; sem olhar novamente para a família morta na porta da própria casa, deu-lhe as costas, seguindo com o amigo para o carro, de onde seus outros dois companheiros haviam assistido a tudo.


Mais uma família inocente que morria de uma forma tão horrorosa... por culpa da Umbrella Corporation.


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Enquanto William Hoffman retornava à sua casa para descobrir que sua família morrera, o jovem Mauricio encontrava-se em uma companhia de celular sem sinal, e o plano para encontrar aquela mulher desconhecida, a tal Bethany, acabara de falhar; não havia nada a fazer a não ser retornar. Provaelmente, Visconti também havia notado que tudo fora por água abaixo.


Esforçando-se para manter o porte de funcionário do local, o rapaz desceu as pulos as escadas, endireitou o colarinho das vestes e voltou à entrada; os clientes insatisfeitos gritavam com as atendentes, que também pareciam espantadas com o ocorrido. Coçando a cabeça disfarçadamente, o rapaz esgueirou-se pela entrada, deparando com um intrigado Carlos, que não parava de discar qualquer número em seu celular.

- O que aconteceu?

- A linha está morta. - respondeu o programador - Eu não entendo...

- Acha que houve alguma falha, algum satélite no lugar errado?


- Estamos em um polo de tecnologia avançada, sede da Umbrella Corporation, mano. Acha que aqui a linha simplesmente sofre um infarto e morre? - retorquiu o outro, ainda olhando para o celular que Dick lhe emprestara.

- O que quer dizer?

- Diabos, não é uma coincidência! - resumiu Carlos, fechando o celular impacientemente com um estalo - A rede está morta.

- E agora? Carlos coçou a cabeça, os olhos muito verdes fora de foco; desceu as mãos pelas bochechas ligeiramente ásperas - não se barbeara fazia mais de um dia -, pensativo, até estalar os dedos repentinamente.

- Freqüência. É, é o único jeito.


Mauricio, que mantivera os olhos na rua - a loja que os sobressaltara minutos antes e que agora estava aparentemente vazia - olhou para o rapaz.

- Como é?


- Vou lá tentar resgatar pelo computador da companhia as três últimas torres que captaram o sinal do celular da Bethany. Vou aproveitar e ver se apanho uns aparelhos de curta freqüência, qualquer companhia tem para eventualidades como essa.

- Curta freqüência? Não entendo...

- Nem é para entender. - Carlos entregou o celular de Dick a Mauricio e acrescentou - Se eu não voltar em vinte minutos, volte para o bar e devolva ao Dick. Agradeça a ele por mim.

- Espere, você vai...


- Já volto. - e deu um tapa camarada nas costas do companheiro, dirigindo-se à loja.


Sem olhar para trás, Carlos entrou no estabelecimento, enfiou a mão no bolso, apanhou o crachá da Umbrella que sempre usara e prendeu-o ao peito. Não seria difícil passar-se por membro da companhia; Bethany sempre lhe dissera que, com aqueles óculos de nerd, cabelo preso, corpo magro e roupas discretas, ele poderia passar facilmente pelo que realmente era - um Analista de Sistemas.


Algumas pessoas descontentes passaram por ele, saindo da loja e cara fechada, e outras continuavam a discutir com as funcionárias, que tentavam explicar que a falha que ocorrera na rede seria corrigida em breve. Segurando a ironia que estava na ponta da língua, Carlos dirigiu-se calmamente ao elevador e chamou-o, uma mão nos bolsos.

Apesar da aparente tranqüilidade - parte do disfarce - seu cérebro estava à mil, mergulhado em ansiedade. Bethany estava havia horas desaparecidade, e tudo indicava que tinha dedo da Umbrella - fora capturada e estaria sendo a cobaia que ele e Erek teriam sido? Tentou não imaginar a garota numa sala de laboratório, deitada à força, debatendo-se contra uma injeção que talvez seus antigos colegas de trabalho produziriam em larga escala futuramente...


E aquela cidade estava uma bagunça. Algo estava acontecendo... diabos, aquela Judy, fosse quem fosse, estava certa... e, como se não bastasse, aqueles quatro amigos - ele, Will, Erek e Bees - estavam separados, perfeitamente conscientes de que o melhor seria cair fora do lugar... mas não poderia simplesmente fazer isso. Não naquele momento...


A porta do elevador se abriu, interrompendo temporariamente os devaneios de Carlos, que agora precisava pensar no plano. Havia mais dois funcionários no elevador, nenhum dos quais muito interessados no jovem que acabara de entrar.

- Estão loucos... - comentava um.

- Confesso também estar, minha mulher tentou me ligar, mas não pude atender na hora, e a linha caiu justo na hora em que eu finalmente consegui pôr a mão em um telefone.

- Putz... e o Travers está no quinto andar, falando com o Hopkins, estou aguardando um retorno... acho que isso não dura muito, não.


- Ouviu uma gritaria agora há pouco? - o homem à esquerda de Carlos parecia nervoso; era careca, e toda hora deslizava a mão distraidamente por ela.

- Não, eu estava na ala sete. Fala do primeiro andar?

- Não, lá fora... uma loja.


Nesse instante, a porta do segundo andar se abriu, e Carlos saiu, aliviado por não ser notado pelos dois; desembocara em um típico corredor de escritório branco e deserto. A parede à frente era de vidro, com venezianas internas para impedir qualquer transeunte de ver diretamente o que acontecia dentro das salas. As portas estavam fechadas e uma voz ou outra eram escutadas, bem como ruídos de pessoas digitando.

Certo, pelo que sabia, precisava seguir reto até virar no corredor à esquerda... ali havia uma ala especial acoplada ao Sistema Judiciário que cuidava do rastreamento e bloqueio de telefones celulares. Assim, tão nervoso quanto Mauricio, embora aparentemente mais frio e determinado, Carlos Visconti caminhou pelo corredor como se fosse um funcionário, sempre calmo e ignorando qualquer ruído.


Tinha perfeita noção de que estava em um dos ninhos da cobra; não era o principal, mas não deixava de ser ninho. Estava se arriscando caminhando por ali, com um crachá com seu nome e seu rosto à mostra, pois tinha perfeita noção de que aquela companhia era ligada à Umbrella, que esta sabia mais do que deveria sobre a vida do rapaz e tentara capturá-lo algumas horas antes. Se aquele lugar não contivesse a única pista de que dispunham para encontrar Bethany, certamente teria deixado esse plano por último - o risco era grande mais.
Ainda assim, o rapaz não parou para refletir e, decidido, virou à esquerda no corredor seguinte.

Ao contrário de Bethany, estava perfeitamente acostumado a lugares como aquele. Escritórios e mais escritórios, gente arrumada, papelada, computadores; já Bethany mal parava no próprio escritório que, aliás, sequer se parecia com um, tendo um colega de trabalho como aquele Cássio - ele também não era o tipo formal, nem o "formal e moderno".
Ótimo, qual porta era? Havia três. Duas à esquerda, uma no final do corredor... era a do meio. Isso, mesmo. Caminhou, resoluto, perfeitamente acostumado ao silêncio daquele andar, e parou diante da porta. Primeiro, tentou espiar pelas venezianas, mas elas estavam corridas, de modo que a única alternativa seria entrar na sala, usar um bom jogo de cintura e rezar para que ninguém ali fosse tão íntimo de Harker a ponto de saber que aquele rapaz não era só membro da corporação como um recente indesejável.

Enquanto refletia ante o gesto de entrar, lembrou-se de dois conhecidos que trabalhavam naquela sala - fora com um deles a um Congresso em Seattle. Era John Baker, um analista franzino de cabelos cheios e senso de humor apurado, a alma e a vida daquele andar. Como se lembrava das trapalhadas em que haviam os dois se metido, juntamente com outros dois ex-colegas de faculdade, naquele Congresso! Ainda se lembrava da briga que aqueles quatro nerds arrumaram em um bar, quando haviam ido justamente para relaxar entre um simpósio e outro- e acabaram contundidos, Carlos na tentativa de apartar a briga. Tudo porque o bendito Baker encasquetara de que estava cansado de, naquelas palestras, "ver treze homens pra cada rapaz" e cantara a primeira mulher bonita que aparecera no pub - infelizmente namorada de um grandalhão briguento, que por azar aparecera com amigos com predicativos parecidos...

Sabia que a possibilidade de encontrar o outro conhecido do escritório, Thomas Brezina, era maior do que a de encontrar Baker - Baker era outro que não ficava preso. Vagava de andar em andar, auxiliando os outros funcionários com sua genialidade e animando-os com seus gracejos. Já Brezina, mais sério e contido, ficava sempre ali e, apesar de simpatizar com ele, Visconti preferia encontrar Baker - as chances de o rapaz denunciá-lo, caso houvesse recebido ordens de Harker, eram bem menores. Podia vê-lo erguer a cabeça sorridente para a porta e dizer "Olha quem apareceu aqui: o procurado! Andou dando trabalho para o almofadinhas de jalecão, parceiro?"

Distraído por esses pensamentos e com toda a naturalidade que teria mostrado em outros dias, Carlos deu três batidinhas na porta e abriu-a, feliz por não a encontrar trancada - arrombá-la seria uma péssima idéia. E ali estava o que procurava: uma mesa que percorria toda a sala e vários computadores modernos interligados.


Mas o que chamou a atenção de Carlos não foi a já conhecida sala, tampouco algumas cadeiras caídas, papéis espalhados e fios retirados à força da tomada. Não, o que lhe chamou a atenção foi a presença de um homem engravatado, de costas para a porta, ajoelhado bem no meio da sala, curvado sobre outro homem aparentemente desmaiado. Pelas vestes, eram funcionários locais.

- Oi?


O homem ajoelhado virou-se para Carlos, que recuou, o coração à mil; estava mais lívido que o outro sujeito, o rosto e os dentes sujos de sangue e as mãos igualmente imundas contendo miúdos que conseguia arrancar daquele indivíduo que não estava só desmaiado: estava morto e sendo devorado. Mas a pior parte não foi flagrar aquele ato de canibalismo, e sim reconhecer naquele canibal selvagem John Baker e na vítima, Thomas Brezina.


Qualquer fio de pensamento fugiu à mente do jovem Visconti, que apressadamente fechou a porta à sua frente, olhando para os lados, o coração ribombando contra suas costelas, uma sensação de insensibilidade aflorando em sua pele, e correu pelos corredores, o disfarce e discrição esquecidos. Esperara por tudo naquele lugar - menos por aquilo.

Esqueceu o elevador, optando pelas escadas; enquanto corria, uma luz veio-lhe à mente, fazendo-o apertar o alarme de incêndio. Sem esperar pela reação das pessoas, desceu as escadas aos pulos, suas pernas ágeis e compridas praticamente saltando lances e, no primeiro andar, juntou-se às pessoas que se retiravam do prédio temerosas por um incêndio. Não demorou a encontrar Mauricio que, de olhos esbugalhados e celulares ainda nas mãos, observava, abobado, as pessoas afastarem-se do prédio, visivelmente desejoso de se afastar também. Foi com alívio que seu olhar encontrou o de Carlos.

- O que está acontecendo? É fogo, é o quê?


- Fogo chega a ser uma brisa bem gostosa perto do que eu vi. - respondeu Carlos com urgência, segurando o guidão da moto - Ande, suba aí e vamos logo cair fora!

Não foi preciso pedir duas vezes; Mauricio já ocupara o banco traseiro, enfiando o celular no bolso desajeitadamente. Carlos estava para ligar a moto quando gritos ecoaram em algum lugar do prédio. Sem repensar seus atos, concentrou-se apenas no ato de ligar a moto, que despertou com um estrondo, tendo em vista afastar-se dali o mais rápido que podia.


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O trânsito caótico no centro da cidade enfim parara; isso se devia à grande quantidade de carros abandonados atrapalhando a passagem, ora acidentados, ora deixados de lado por causa das ruas intransitáveis. Agora o caos havia se espalhado pela periferia até então calma, visto que os habitantes de Raccoon City estavam cada vez mais decididos de que, àquela altura do campeonato, abandonar o lugar era a melhor opção.
Em meio a carros que ainda insistiam em avançar, procurando alguma brecha para escapar, e pessoas, separadas ou unidas, que corriam pelas ruas e calçadas, ora fugindo de vítimas daquela epidemia, ora tentando sair da cidade, um jipe avançava à toda, aparentemente desgovernado, dirigido por um homem de chapéu de feltro, óculos escuros e cigarro na boca; por onde passava, a música que tocava em seu toca-CD ecoava com brutalidade:

"OH! Yeah yeah yeah yeah!

All the vixens stand in line
(Todas as virgens permanecem na linha)

Waiting for my fright night
(Esperando pela minha noite de terror)

Be the new flesh for the sacrifice!"
(Pela nova carne do sacrifício)



O jipe oscilou, desviando-se de um carro parado no meio da rua...


(Sangue do meu sangue, carne da minha carne... custará a minha carne, se for preciso, para tomar as suas, seus filhos da puta...)


William Hoffman apertava com tanta força o volante com uma das mãos que os nós dos dedos estava brancos; o outro braço estava apoiado na porta; dirigia pelas ruas, indiferente ao pânico generalizado, fazendo coro à música alta prestes a estourar seus tímpanos, mas que não estouraria. Por quê? Porque o sangue subira-lhe aos ouvidos, protegendo-os da música e enchendo-lhe de cólera...


"Screaming out the mating call

(Gritando para fora da chamada de acoplamento)

I've become the lord of love"
(Eu me torno o senhor do amor)

"Oh, amor... vou precisar muito de você, minha querida...", pensou Will, dando um meio sorriso e tragando a fumaça do cigarro enquanto dava um tapa na magnum, que ocupava o banco ao lado, "Você vai me ajudar a batizar aqueles desgraçados com o meu amor..."


Cólera. Era essa a palavra. Cada célula de seu corpo era pura ódio... ódio oriundo da dor...


Uma virada brusca, quase atropelou dois jovens... coitados, pensam que irão sobreviver...



"I breake your will

(Eu quebro sua vontade)

I'll break your will for good,
(Eu posso quebrar sua vontade por bem)
I treat you like a brute...
"
(Eu trato você como um bruto)



Como um bruto? Eles ainda não viram nada...



"Who's your daddy,

(Quem é o seu papai?)

Say, who's your daddy?

(Diga, quem é o seu papai?)
Who puts you in your place?
(Quem pôs você em seu lugar?)
Who's your daddy,
(Quem é o seu papai)

Bitch, who's your daddy?
(Puta, quem é o seu papai?)
Surrender and obay, who's your daddy?
"
(Desista e obedeça, quem é o seu papai?)


Um sorriso obscuro de aprovação àquelas palavras, outra guinada brutal, e uma caixa de correios pareceu pular fora do lugar para o jipe poder passar, enquanto uma família de mãos dadas e malas nas costas gritaram, assustadas, e desviaram-se sem real necessidade do veículo.
Podia ver, de relance, correria para fora de centros comerciais, objetos arremessados pelo ar, e até algumas daquelas pessoas adoecidas - se é que ainda eram pessoas - caminhar lentamente pela cidade, enquanto avançavam nos indivíduos mais próximos. Seria uma cena triste, assustadora, traumatizante, se a suprema dor que aquelas últimas horas haviam lhe causado não fosse maior. Ela funcionava como uma salvaguarda para todas as aflições, clareando sua mente para algumas portas e obscurecendo-a para outras. Nada mais lhe importava. Precisava chegar àquele lugar...


"Get down, get down

(Se abaixe, se abaixe)

Lay down, lay down,
(Reverencie, reverencie)

Stay down, stay down,
(Permaneça abaixado, permaneça abaixado)
for daddy!"
(pelo papai!)



... e abaixar certas cabeças...


(Como fora tão burro, recebera tantas notificações...)


... pelo papai que se aproximava...

(... era tudo tão suspeito, Alice vivia dizendo...)


... abaixar para sempre...

(... e tudo o que fizera fora trabalhar feito burro de carga...)


... e a donzela que repousava ao seu lado ajudaria nisso...


(... para ver sua família morrer diante de seus olhos!)


... e não haveria escapatória.



"Who's your daddy,

(Quem é o seu papai)

Say, who's your daddy?"
(Diga, quem é o seu papai?)


Mataria um por um, afinal...


(Fechei o bico o tempo todo, ah, aqueles desgraçados irão pagar...)


Quem era o papai?


À medida que se aproximava da gigantesca ponte de saída de Raccoon City, o número de vivos aumentava e o de mortos diminuía radicalmente. O céu adquirira um belo tom pervinca, o crepúsculo já nos bastidores, preparando-se para um espetáculo que absolutamente ninguém naquela cidade estava disposto a ver. Vários carros estavam estacionados em qualquer posição na entrada da ponte e, cinqüenta metros à frente, havia uma aglomeração de mais de mil pessoas, todas tentando passar por uma fortaleza recém-feita, de passagem estreita, que dava acesso à saída da cidade. Policiais faziam a segurança não para proteger a população, conforme William notou em instantes, mas para guardar a preciosa saída da cidade. Helicópteros por ali voavam, e uma voz autoritária sobrepunha-se à gritaria com auxílio de um alto-falante:

"Para sair de Raccoon City, todos devem se submeter a um exame individual. Somente pessoas que não foram infectadas podem sair da cidade. Famílias devem se submeter ao exame separadamente. São medidas de segurança."


A população se amontoava em um frenético e forte empurra-empurra, todos tentando desesperadamente chegar à frente para fazer rapidamenteo exame, tentando, por tudo, não se separar de seus entes queridos. William, contudo, ao saltar do jipe enquanto enfiava a magnum nas vestes, não se atentou ao desespero estampado no rosto dessas pessoas, antes retirou os óculos e forçou a vista para o alto da fortaleza, onde havia poucas pessoas devidamente vestidas que assistiam a tudo. Eram poucas dezenas de soldados, cuidadosamente enfileiradas e armados até os dentes, observando a aglomeração abaixo, suas feições pouco discerníveis devido à posição do sol poente. Entre esses homens, um deles Hoffman não tardou a identificar: trajando seu costumeiro terno, uma mão no fone de ouvido, a testa enrugada enquanto observava o empurra-empurra, estava ninguém menos que o Dr. Harker.


William sequer pestanejou; andando rapidamente como uma máquina, o cigarro esquecido no canto da boca, embrenhou-se no meio da multidão, empurrando sem ver, os olhos fixos naquela única figura que fora um dos principais responsáveis pelas mortes de Alice e Maryane Hoffman.

A música do Lordi que ouvira ainda ecoava pelo local, abafada pelas vozes da população remanescente de Raccoon City. Preocupado apenas em avançar, William contornou a multidão, escolhendo beiradas, até chegar, com relativa facilidade, na dianteira, onde pôde ver melhor os soldados armados que guardavam os muros da cidade; algumas viaturas estavam paradas, enquanto os homens, de braços dados, continham à força a aglomeração que insistia em avançar.

O céu parecia um pouco apressado na tarefa de escurecer; com um estalo, holofotes acenderam-se no alto, sua luz pálida iluminando a população juntamente com os helicópeteros que voavam em c[irculos, despachando soldados para conter os habitantes inquietos. William, à frenet da aglomeração, e com os holofotes ligados, já podia ver melhor a silhueta no alto que pertencia ao Dr. Harker.


- HARKER! - gritou William, levando as mãos aos lábios para sua voz já ressonante ecoar melhor - SEU FILHO D'UMA PUTA!

Talvez o fato de o Dr. Harker ter uma audição boa o suficiente para escutar seu nome em meio à agitação logo abaixo, ou talvez porque William destacara-se do resto da população, parado e sem nenhum guarda para contê-lo e iluminado por holofotes, aquela figura singular de sobretudo e chapéu negros, Harker olhou para baixo.

- Não é possível... - sussurrou.


Um homem que também escutara o grito corria rumo a William para contê-lo; o jovem o reconheceu imediatamente - era um dos seguranças que tentara pegá-lo na igreja algumas horas antes. Este parou, receoso, ao reconhecer William, e mexeu, desconfortável, o toco de braço enfaixado, sem a mão que, com um tiro, o texano cortara-lhe fora. Seu companheiro, o segurança louro, imitou-o; não perdera nenhuma mão, mas era óbvio que temia que o que acontecera ao outro fosse se repetir com ele.

- Vai mandar suas marionetes para me pegar?! - gritou William a plenos pulmões, seu rosto adquirindo um intenso rubor devido à ira e ao esforço de berrar - Não é capaz de aparecer sem elas, não é, doutor? As bonequinhas já tentaram duas vezes, patrãozinho! Não quer ser homem uma vez na vida e vir você mesmo me pegar? É até bom que acertamos umas contas...

Harker, ignorando as provocações do texano, apertou um botão no seu fone de ouvido; ao seu lado, um de seus asseclas continuava a dar instruções à população com seu alto-falante.


- Traga-o inconsciente, Baxter. - disse Harker ao fone - O que está esperando?

Baxter, nervoso, deu um passo à frente, a mão boa no fone de ouvido. Hesitava; a lembrança de seu braço enfaixado ainda estava um tanto nítida em sua mente e, notando isso, William soltou uma fria e retumbante gargalhada.


- Que foi? Qual o problema, precisa de uma mãozinha, é isso? - e riu da própria piada - Quer uma mãozinha, quer? Se quiser, dou até duas! - e ergueu as próprias mãos, rindo debochadamente.

Crispando os lábios, zangado, e respirando com força, Baxter balançou a cabeça, olhando para William com raiva.

- Eu odeio esse cara... - disse.


Os dois seguranças, temerosos de enfrentar aquela texano amalucado pela terceira vez, contentaram-se apenas em fazer cara feia.


Enquanto William atravessara a multidão por um dos lados da entrada da ponte, obcecado pela imagem daquele que outrora fora um de seus superiores, quatro S.T.A.R.S realizaram um movimento semelhante do lado oposto, conseguindo chegar à frente da aglomeração com ajuda de suas fardas; os policiais, reconhecendo neles seus companheiros, não os barrou quando alcançaram a dianteira.


"Para sair de Raccoon City, todos devem se submeter a um exame individual. Somente pessoas que não foram infectadas podem sair da cidade. Famílias devem se submeter ao exame separadamente. São medidas de segurança."

- Desgraçados... - praguejou Matt baixinho, a mãos na bandoleira, como de costume quando estava fardado - Eles começam a confusão e agora agem como se a população tivesse culpa...

- Sim, mas não temos tempo a perder agora, Matt. - lembrou Ivanova, olhando para os lados, preocupada - Precisamos sair daqui. - e deu um passo à frente, rumo ao portão, onde especialistas examinavam os civis que conseguiam chegar ali.


Matt seguiu-a, e até DB o fez, embora um pouco hesitante; Dave, contudo, apenas olhou para a população, que os ignorava completamente.

- Que foi? - perguntou DB, o primeiro a notar a ausência do amigo.
- Bom, é que... será que é certo? Irmos na frente?

- Do que está falando, Dav? - inquiriu Ivanova, ligeiramente impaciente - Temos tanto direito de sair daqui quanto qualquer pessoa! E nenhum de nós está ferido!


- É, mas... - Dave inspirou profundamente, procurando as palavras certas para se expressar - O capitão é sempre o último a abandonar o navio.

Ivanova balançou a cabeça, incrédula, e deslizou os dedos pelo rosto do amigo, erguendo-o.


- Não somos capitães, Dave. Somos parte da tripulação, apenas isso. - retorquiu ela, aceitando a metáfora.

- Mas nós somos os S.T.A.R.S. DB estava certo, deveríamos primeiro garantir a segurança de cada sobrevivente, até o último, antes de tentarmos sair da cidade. Deveríamos morrer lutando por isso, se fosse preciso.


- Você enlouqueceu, Dave?! - exclamou Matt - Escute aqui... O rapaz também se aproximou, a largos passos, do amigo, tomando o cuidado de manter contato visual com ele; juntamente com DB, os três S.T.A.R.S formaram um pequeno círculo. Dave parecia um pouco alheio à presença dos amigos e, apesar de encarar Matt, que estava a poucos centímetros à sua frente, fixando-o, seus olhos pareciam desfocados.

- Veja, Dave... - disse Matt, indicando a multidão com um gesto rápido - Das trezentas mil pessoas de Raccoon City, estes são os sobreviventes... o número não deve chegar a dois mil. Você entende? Mais de noventa por cento da população de Raccoon City está lá atrás, morta duas vezes, pelo vírus e por nós, ou rondando pelas ruas, sem alma, e atacando qualquer ser vivente... sem alma, entendeu? Você é espiritualista, você sabe disso... mais de duzentos e noventa e oito mil pessoas estão lá atrás, sem contar seus bichos de rua e de estimação, em um estado que somente a desgraçada da Umbrella pode definir com precisão! Agora olhe para nós: somos quatro caras armados com uma munição limitada, e você acha mesmo que temos chance de fazer algo útil? - nesse instante, Dave abriu a boca para responder, anormalmente quieto, mas Matt o interrompeu com uma leve sacudida - Não dá mais, Dave, acabou! Não há nada para protegermos lá atrás. NADA, entende? Quantas vezes, vindo para cá, chegamos tarde demais? Quantas daquelas criaturas infectadas nós ignoramos para poupar munição? Não dá mais, cara. A coisa mais digna que podemos fazer agora é sobreviver e sair desta maldita cidade. Faça isso por todos... por Sara. - acrescentou, e Dave finalmente pareceu estar atento ao que o amigo dizia; seus olhos, fixos em um ponto à direita dos olhos do amigo, fixaram-se exatamente em suas pupilas, e
Dave deu um leve sorriso.

- Você tem razão... e você também, Ivy... tem gente lá fora...

-... nos esperando, é isso aí! - concordou Ivanova, abrindo um largo sorriso - Agora vamos!


Ivanova e Matt abraçaram Dave pelos ombros, postando-se um de cada lado do amigo e conduzindo-o à saída da cidade; haviam dado quatro passos quando Matt disse "espere" e olhou para trás. DB não saíra do lugar.

- E agora? - indagou.

- Vão vocês. Eu fico.

- Como é que é? - disse Ivanova, sem entender, soltando Dave e olhando para DB, incrédula - O que você está dizendo, Dan?!


- Você me ouviu. - afirmou DB, no mesmo tom comedido de sempre - Vocês vão e eu fico. O sorriso no rosto de Dave se desfez.

- Por que, DB? O que aconteceu?

DB deu um tapa no emblema que carregava no peito; era diferente do dos amigos, indicando uma patente superior.

- Eu sou o capitão do navio, gente. Eu devo ficar. Vocês fizeram o que foi preciso, e da melhor forma, e eu agradeço por tudo, mas... eu devo ficar.


- Não seja idiota, cara! - retrucou Matt, irritado, girando o corpo todo para encarar o amigo - Não ouviu o que eu acabei de dizer?

- Ouvi perfeitamente, Matt - confirmou DB, calmo - E você está certo. Mas ainda prefiro ficar, mesmo que não tenha a mínima chance de enfrentar mais duzentos mil infectados. Enquanto houver um sobrevivente que ainda não saiu da cidade, eu ficarei para tentar garantir sua sobrevivência. Se... se eu não conseguir sair da cidade - nesse momento o rapaz pigarreou, autoritário - apenas peço que contatem minha família, em Los Angeles. É aqui que nos separamos... foi um privilégio servir ao lado de vocês.

Matt aproximou-se do amigo, sério e contrariado.

- Está certo, mas guarde os elogios para depois, cara. Vou com você.

- É minha missão, não a sua.


- E alguma vez essa desculpa de ter uma missão solitária colou, cara? Se quer ficar, então fique, mas ficarei contigo.

- Vocês não entenderam... - disse DB lentamente, porém Ivanova o interrompeu, sorrindo e se aproximando.

- Você que não entendeu, seu mandão. Iremos com você.


Dave assentiu solenemente e completou:

- Até o fim.

DB, o capitão do time, percorreu com o olhar os quatro amigos, um por um, sem encontrar a menor sombra de dúvida em sua resolução. Engoliu em seco, então, tentando esconder o quanto se sentia comovido. Tentou dizer algo, mas preferiu calar-se ao notar que sua voz sairia embargada.

- E já pode começar a primeira etapa. - acrescentou Matt, no intuito de ajudar o amigo a se recompor - Qual é o plano?


DB assentiu, suspirando profundamente, e quando falou, sua voz recuperara a firmeza de sempre:

- Ficar aqui enquanto os sobreviventes saem da cidade e manter a ordem. Todos a postos!


Os jovens S.T.A.R.S., todos de armas não mão, então, postaram-se próximo à população, vigiando-a.

Os minutos passaram-se como se apressados, e o crepúsculo manifestava-se sem esperar nenhum aplauso. As pessoas, cada vez mais apavoradas, acotovelando-se e balançando-se como uma maré viva, tentavam chegar à saída da cidade; os exames aconteciam muito devagar, pois eram poucas as pessoas examinadas por vez. Os soldados, no alto, não se mexiam muito, a não ser para transmitir mensagens pelo fone, e Harker comunicava-se constantemente com algum desconhecido, visivelmente ocupado demais para dar total atenção a Hoffman. Enquanto, de um lado, os S.T.A.R.S observavam tudo o que se passava, de outro, o ousado civil e advogado William Hoffman mostrava-se cruelmente satisfeito com o temor que aqueles dois seguranças lhe tinham. Cansado de rir-se deles, o jovem tentou apropximar-se do portão, decidido a sair da cidade para enfrentar Harker, porém, ao se aproximar, policiais que haviam notado seu comportamento instanrepentinamente apontaram suas armas; William, o cigarro no canto da boca, sorriu diabolicamente, erguendo os braços em sinal de rendição.

- É... os cachorrinhos dele estão muito perigosos...

Olhou, então, para o mais jovem dos policiais, que apontava-se um rifle com os olhos arregalados, o suor acumulado sob os lábios; o jovem texano, então, baixou a mãos, virando-se para se retirar, antes dizendo ao rapaz:

- Que foi, filho? Acha mesmo que me ameaça com uma arma travada?

Aquela observação inesperada pareceu deixar os policiais mais nervosos, e o rapazinho quase deixou cair o próprio rifle de susto; William por sua vez, recuou, pensativo e despojado, os olhos na multidão, sem vê-la, quando repentinamente um ruído estrangulado ecoou na dianteira da aglomeração.


Traumatizadas com aquele som desagradavelmente familiar, as pessoas recuaram imediatamente, abrindo um círculo na aglomeração; um espaço ocupado por um homem pálido (talvez por causa da luz direta que recebia dos holofotes?), que se agarrava a uma garotinha (sua filha?) para se manter em pé. O homem em questão soltou um segundo grito, que mais pareceu um rosnado, e estatelou no chão, diante de centenas de olhares.

- Papai! - gritava a menina - Papai! Estamos quase lá, levanta!

Alguns policiais avançaram por aquela brecha, rumo ao homem que instantaneamente despertou, mordendo a perna da garotinha; enquanto os guardas abatiam o homem a tiros, os quatro S.T.A.R.S passavam visualmente um pente fino na multidão, à procura de outro infectado em alto grau; William, por outro lado, ergueu os olhos para Harker, que se comunicava através de seu fone de ouvido com um interlocutor desconhecido.


Repentinamente, um alarme soou, e as portas de saída começaram a se fechar; na mesma hora, as pessoas desataram a correr, civis e policiais, tentando chegar à saída; apenas os especialistas que realizavam os exames e os guardas próximos conseguiram alcançá-la, inclusive Baxter e Lorry. Enquanto o portão era selado com um ruído surdo, a voz de Harker ecoou aos quatro ventos, através do ampliador de voz que lhe fora entregue:

- Atenção, senhores, por favor, retornem a suas casas, que está tudo sob controle. Estamos contendo a infecção.


Imediatamente, a população manifestou-se, gritando histericamente e avançando contra os muros da cidade; os quatro S.T.A.R.S também olhavam para cima, estupefatos, e o grito de Matt ("Canalha!") pôde ser ouvido. Estreitando os olhos, Harker acrescentou, sua voz fria sobrepondo-se ao vozerio indignado dos habitantes remanescentes:


- Os senhores têm três segundos para abandonar a ponte. - e entregou o alto-falante para o soldado da Umbrella postado ao seu lado; este, com sua voz mais jovem que a de Harker, continuou:

- A permissão para atirar foi consentida. - e ergueu a própria arma.

William, contudo, ainda olhava, os olhos apertados, para Harker, que relanceou os olhos em sua direção antes de se afastar. A voz do soldado começou a contar:


- Um...


- Vão abrir fogo, mesmo... - disse Ivanova, chocada.


- Dois...


- Não pode ser... - comentou Dave.

- Três.

- CORRAM! - gritou DB inesperadamente para a população.
Como se acompanhasse sua voz e a de tantos outros, o som de tiros ecoou pelo lugar, e as pessoas, atemorizadas, deram as costas à fortaleza, correndo das balas que eram disparadas a esmo.

- Estão correndo para os braços da morte... - observou Matt.

De fato, a cidade era visível ao longe, parecendo tranqüila e comum; os postes já estavam acesos. Entretanto, os quatro S.T.A.R.S, ainda parados junto aos muros, sabiam o flagelo naquelas ruas, becos e construções que aguardava aquelas pobres pessoas, e estas sabiam também; todos que corriam estavam conscientes do que os esperava, mas tudo o que tinham na cabeça era o instinto básico, comum a qualquer ser vivo, até mesmo aos infectados: sobreviver. E continuavam a correr de encontro à morte certa, perfeitamente cientes disso - não havia escolha.


- Saiam vocês também! - berrou um soldado para os quatro jovens - Ou abriremos fogo novamente!

Lançando um olhar gelado à silhueta no alto, esta de feições indistinguíveis por estar atrás dos holofotes, DB pôs-se a andar velozmente rumo à cidade, seguido de perto pelos companheiros. Ao chegarem ao carro, Ivanova, séria, olhou para o lado, descobrindo outro retardatário: um homem de sobretudo e chapéu de feltro que, pelo visto, também não se intimidava facilmente com tiros, acabara de entrar em seu jipe, ignorando-os, o rádio sintonizado em uma música de heavy metal. Ele também deu marcha à ré para retornar a Raccoon City, sem esboçar medo algum. E que todos fossem abençoados naquela triste empreitada...

Enquanto os dois carros, afastavam-se, finalmente o soldado no alto dos muros da cidade baixou sua arma e o alto-falante, contemplando a população que desaparecia ao longe, rumo à cidade. Era um homem jovem, não carregava trinta anos na bagagem, a pele morena mais escura do que o normal por causa das sombras que se formavam em seu corpo, o rosto anguloso de traços sutis inexpressivos, os olhos escuros e fixos à frente.


- Fez um ótimo trabalho, Havok. - disse-lhe um companheiro às suas costas - Temos ordens de permanecer aqui e garantir que ninguém saia.

- Algum prazo, segunda ordem? - perguntou o rapaz.


- Não. Esta será uma longa noite...


Havok assentiu. Ou outro homem colocou-se ao seu lado, inclinando-se para frente e apoiando os braços no muro; não era muito mais velho que ele. Seu tom mudou, tornando-se menos robótico, e sua voz soou mais baixa:

- O que você acha que vai acontecer com essa gente, com esta cidade?
- Isso - respondeu Havok, sem abandonar a firmeza na voz e a determinação que aprendera no exército - não é algo que nos interesse. Temos ordens a cumprir, Yexley.


Yexley apenas confirmou com a cabeça lentamente, um tanto conformado em não encontrar humanidade naquele homem, porém sem esconder a desagradável sensação de ser incompreendido e estar sozinho em meio àquela gente desumana da Umbrella e do exército. Sem dizer uma palavra, endireitou-se com um leve suspiro e iniciou a caminhada pelo corredor, montando guarda.