Assim, às onze horas da manhã, a jovem médica abriu os olhos, encontrando-se em seu quarto, à meia-luz. Consultando o relógio à mesa-de-cabeceira, ergueu-se e foi tomar um banho.
Não tinha o hábito de demorar; quinze minutos depois, deu-se por limpa e inteiramente vestida, totalmente acordada e a cabeleira úmida. Arrumou a cama de seu quarto e abriu as janelas; caminhou pela casa vazia, parando à cozinha para apanhar algo para comer. A mesa estava arrumada para o brunch, como normalmente William a deixava antes de levar Mary à escola.
Notou a ausência do marido, mas não estranhou; sabia que ele praticava tiro e gostava de dar algumas voltas, e isso nunca a incomodara. Com naturalidade, apanhou uma xícara de café enquanto lia o jornal do dia, cuidadosamente colocado no balcão pelo esposo.
Uma das notícias abordava novos fármacos patenteados pela Umbrella; correndo os olhos pelas linhas, Alice ergueu as sobrancelhas. Não gostava daquela corporação. Trabalhava em um hospital associado à Umbrella, William era advogado da Umbrella, mas não gostava, e tinha ótimos motivos para isso.
Bem mais que uma vez, William lhe mostrara alguns papéis de patentes que ele tinha de despachar. Eles a deixaram com o pé atrás; tratava de experimentos, experimentos muito estranhos com fins duvidosos, tudo camuflado em pesquisas farmacêuticas ou para a empresa de cosméticos. Certamente, da maneira como haviam sido colocados, os estranhos detalhes que o casal percebera passariam despercebidos no cotidiano de outras pessoas que passavam o dia aprovando e arquivando papéis. Contudo, para aquele advogado que não tinha pressa de fazer nada e tinha de mexer apenas com documentos da Umbrella Corporation, esses míseros detalhes foram suficientes para convocar a profissional em Ciências Médicas mais próxima que tinha - sua mulher.
E não fora em vão. Para Alice, aquilo tudo era muito estranho. A empresa trabalhava com vírus. Vírus... aqueles elementos visíveis apenas em microscópios especializados, tão estranhos que possuíam características bióticas e abióticas, mutáveis ao extremo... a médica sabia o suficiente sobre vírus para concluir que não se podia "brincar" com eles.
Estava clara a verdadeira intenção da empresa: construir armas biológicas. Vírus não poderiam ser usados como medicamentos, pois possuíam altíssima capacidade de sofrer mutação; não se podia controlar esses seres. E tampouco se encaixava como um cosmético; a idéia de injetar vírus em quem quisesse fazer limpeza de pele ou rejuvenescimento era ridícula. O que a Umbrella chamava nos papéis de avanço na medicina, Alice chamava de burrice. Conhecia o suficiente no campo para dizer que vírus eram desnecessários, um risco inútil. Convivia diariamente com pessoas infectadas pelos mais diversos vírus, desde os inocentes vírus do resfriado às vítimas do HIV. Era, além do mais, uma infectologista e imunologista. Entendia perfeitamente bem que era uma ousadia lidar com aqueles "seres".
Era essa ambição louca, desmedida da Umbrella que ganhava o desprezo silencioso de Alice, que cuidava para não fazer comentários a respeito - William confiava informações de seu trabalho somente a ela, e por uma boa razão: sua boca era o túmulo.
Alice terminou de ler despreocupadamente o jornal, voltou ao seu quarto e apanhou alguns relatórios para colocar em ordem. Seu superior, um médico genial porém desorganizado, não cuidava das fichas dos pacientes, de modo que essa tarefa ficava a cargo da loura.
Alice sentou-se na cama, com a pilha de papéis na mesinha ao lado, onde deixara quando chegara em casa, e já ia apanhar o primeiro da lista quando uma música ecoou pelo aposento; era o celular na sua bolsa. Ela o ligou:
- Alice Hoffman.
- Oi, Alice, é a Laurell. O Henry quer saber se você levou as fichas de ontem.
- Trouxe, estão aqui comigo. Precisa delas agora?
- Não, era só pra... minha nossa, que horror!
- O que foi?
- Ligue a televisão no canal 7, Alice.
Alice apanhou o controle com a outra mão e ligou a televisão do quarto. O canal 7 transmitia o telejornal do meio-dia; a notícia era sobre atos de canibalismo que ocorreram pela cidade durante a manhã.
- Que horror, Laurell!
- É tão estranho, parece que tudo ocorre ao mesmo tempo, veja...
Aquelas palavras foram repetidas pela mente da loura três vezes... ao mesmo tempo? De repente dera um acesso de canibalismo nos cidadãos?
Então, a câmera de um repórter atrapalhado focou um dos "canibais", que atacara um homem na rua e era contido por dois policiais. Alice fixou o olhar naquele louco: estava pálido, terrivelmente pálido, branco como cera, e parecia muito ferido; sangue escorria pelas suas vestes rasgadas na altura do ombro, mas o repórter dizia que o ferimento já estava ali antes de ser abordado pela polícia. E não era só isso: alucinado, o homem gritava, emitindo ruídos primitivos, os dentes amarelos e os olhos brancos; era uma cena aterradora.
Só de olhar para aquele homem, a médica detectou traços estranhos que se repetiam nos outros delinqüentes detidos na delegacia àquela manhã (a câmera dava closes em vários rostos furiosos que tentavam se soltar enquanto mãos e algemas os continham). Aquela palidez acentuada, aqueles lábios brancos davam uma aparência de morte... se as gengivas estivessem amarelas, seria sinal de falência hepática, mas eram os dentes que estavam, como se aquelas pessoas fossem animais carnívoros e irracionais... os ruídos primitivos indicavam retrocesso intelectual altíssimo; perda da capacidade de se comunicar, perda de civilidade. Não eram rebeldes, não eram vândalos, eram... animais. A postura inadequada, perda do controle dos movimentos do corpo e os urros evidenciavam isso.
E o estranho, o mais estranho, era que todas aquelas pessoas estavam feridas em alguma parte do corpo. Não parecia ser hemorragia, pois o sangramento não parecia ser contínuo e não havia perda de forças... era como se tudo fosse uma...
(síndrome?!)
Laurell agora falava com outra pessoa, embora o telefone estivesse ainda ligado; Alice ainda mantinha os olhos no noticiário, tentando diagnosticar aquilo; como médica, sempre tivera o hábito de diagnosticar as pessoas ao redor, quando elas faziam algo estranho. Certa vez, identificara uma bolha de ar no motorista de um ônibus, quando ainda estava na faculdade; fizera-o estacionar rapidamente, o que fora uma sorte, pois o homem começara a convulsionar quando a bolha atingira uma parte vital.
- Alice, ainda está com a televisão no canal? - perguntou Laurell abruptamente.
- S-sim.
- Horroroso, não? Sabe o que é mais estranho? O hospital entrou em quarentena esta manhã, alto risco de infecção, foi o que falaram. Uma pessoa doente havia fugido, havia sangue espalhado... e o Luke acabou de me dizer que um desses delinqüentes foi morto pela polícia ao reagir, um tiro na cabeça... e o Luke verificou o corpo, disse que a hora da morte não batia com o momento em que fora baleado...
- Como assim?
- Pelo que ele viu, e ainda acha que cometeu um erro, e deve ter cometido, mesmo, Alice! Porque, segundo ele, o corpo estava morto duas horas antes de levar o tiro!
- Morto? Mas morto de quê?
- Parece que havia uma lesão no pescoço do homem... deve ter infeccionado.
- Só se a lesão fosse um tanto antiga... ninguém morre de infecção em Raccoon City!
- Isso é outro ponto estranho... a infecção parece ter levado três horas para matá-lo. A lesão foi muito feia... uma mordida, é o que parece. E a Erin diz que a marca de mordida não é de nenhum animal da região!
A testa franzida, Alice ouviu tudo em silêncio; tinha que haver algum erro nos cálculos de Luke, não era possível...
Então seus olhos voltaram à televisão, onde uma mulher assustadoramente pálida, com olheiras roxas e dentes arreganhados, tentava morder o repórter, que se aproximara demais. Essa imagem trouxe as palavras "Umbrella Corporation" à sua mente; então, fez-se a luz...
Pessoas com sensos primitivos aguçados, todas se manifestando ao mesmo tempo.
Infecção.
Mordida.
Sangue.
Ferimentos.
Umbrella.
Vírus.
Patente.
Quarentena.
Como um filme que se passava em câmera rápida em sua cabeça, Alice viu os documentos mostrados por Will... a conversa entre eles... as cenas mostradas no noticiário, a voz de Laurell... vírus.
Isso tinha dedo da Umbrella Corporation.
A resposta formou-se em sua mente como se estivesse em letras de neon: Umbrella finalmente perdera o controle do vírus. E agora ele estava se espalhando por contato sanguíneo.
Foi como se seu estômago houvesse despencado alguns centímetros; a infecção ultrapassara as paredes do laboratório e estava ali, pairando ao redor dela, e
(Maryane e William!)
precisava agir imediatamente... não parou para pensar nos exatos efeitos do vírus; não era necessário. Não queria saber como o corpo morria mas ainda mantinha vivo um animal que queria morder tudo o que alcançasse. A única coisa que queria, naquele momento, era encontrar sua família.
- Laurell, saia da cidade. - disse Alice, e desligou o celular, discando o número de William.
Entretanto, ninguém atendia; Alice praguejou em voz alta e calçou-se; precisava buscar Mary.
Na sala, deixou o celular na mesinha e apanhou um bloco de notas, rabiscou um bilhete para o marido, pregou-o à geladeira e saiu da casa. Não entrara em detalhes, tamanha era a pressa; apenas avisara o marido para ficar em casa, podia explicar depois, depois que se certificasse de que estava tudo bem com a filha... já não pensava direito. Tinha de buscar Mary.
- Afinal, o que a Umbrella deve ter aprontado exatamente? - perguntou Mauricio.
Tomando um gole exagerado, William respondeu:
- Se eu te contar, você caga na calças.
- O Will é o que mais sabe a respeito. - respondeu Carlos astutamente - Ele é advogado deles, deve ter passado a mão em algumas coisinhas que deixariam muita gente desgostosa...
- Gente tipo o Erek. - acrescentou o texano, com um sorriso enviesado; Carlos aprovou.
- Mas o quê, exatamente? - insistiu Mauricio.
- Sigilo profissional, filho. - respondeu William, olhando para o fundo de seu copo antes de enchê-lo.
- Mas se põe todos nós em risco...
- O único risco que você enfrentou até agora foi o de uma bala no seu olho. - respondeu William com tranqüilidade.
- O que me intriga é a Bethany. - comentou Carlos - Onde aquela melindrosa se meteu...
- Ficar preocupado não vai adiantar, Carl, precisamos de uma idéia, se quisermos encontrá-la.
- É, mas toda hora que penso em onde ela estaria, me vem a imagem daquele Harker... puta sujeito mala, querendo tacar vírus na gente...
- Se ela virou ratinho do cara, não podemos fazer nada, precisamos de coisas construtivas. - respondeu William.
- Falou, vamos tentar também não imaginar Alice e Maryane Hoffman sofrendo as conseqüências do que você andou lendo enquanto exercia a advocacia na corporação...
William ignorou-o com um sorriso conformado.
- Se não quer se acalmar, não tente tirar a calma dos outros, Carl.
- Eu estou calmo, sempre estou calmo. Só estou... deveras preocupado. - retorquiu o outro.
- Eu também. - disse uma voz - Passei no apê da Bees, e nem sinal dela. Toquei o interfone e tudo o mais... mas nada. Se eu ao menos tivesse a chave...
Todos ergueram os olhos para Erek, que acabara de aparecer. Embora estivesse um pouco suado, seus cabelos úmidos e o forte cheiro de desodorante denunciaram o banho que ele tomara. Por uma incrível coincidência, também trajava vestes negras, embora fossem diferentes das de Carlos e Will; usava uma camiseta sem mangas e luvas furadas nos dedos. Sua calça larga era cheia de bolsos, e usava tênis que pareciam botas. Trazia uma mochila esportiva também preta às costas.
- Ela não está em casa, então... - disse Carlos - E o que você trouxe aí?
- Coisas úteis para uma possível viagem, Carl. - e, virando-se, para Will - Agora que estamos todos aqui, têm alguma idéia de como encontrar a Bees? Não podemos sair da cidade sem ela.
- Sente aí. - disse William, indicando a cadeira vazia ao seu lado, e Erek obedecendo, colocando a mochila no chão - Tudo o que sabemos sobre a Bees é que, depois de me ver, sumiu. Não voltou ao trabalho, não foi a lugar algum.
- Mas o irmão dela está na cidade. - lembrou o rapaz - E se telefonássemos pra ele, pedindo notícias?
- Bem lembrado. Alguém tem o número dele? - indagou o advogado, olhando para todos na mesa; Mauricio, a um olhar dele, apanhou o celular.
- Eu tinha no meu celular. - respondeu Carlos - Mas não sei de cor.
- Eu também tinha, mas meu celular sumiu. Eu o tinha levado para a mansão Spencer, mas nos pegaram... - comentou Erek.
- Ela tem algum outro contato na cidade? - perguntou Mauricio, ainda com o aparelho na mão.
- Cássio. - respondeu William, tomando um gole - Mas pode estar grampeado, eles são colegas de escritório.
- Mais algum?
- Samuel Allen, o jornalista. - respondeu o texano - Mas eu não tenho o número dele.
- Nem eu. - respondeu Carlos; Erek apenas fez que não com a cabeça.
- Mas poderíamos ir até o local de trabalho dele. - lembrou Erek - Falar com ele, se possível.
- Como você veio para cá? - perguntou William.
- Moto. Essas ruas estão intransitáveis de carro.
- Então você pode dar um pulo lá e voltar; eu fico aqui. Quero esperar Alice e Mary chegarem.
- Ah... e como elas estão?
- É o que quero saber. - respondeu o rapaz, endireitando os óculos escuros com o dedo - Ligue para minha casa. - acrescentou, fazendo um aceno de cabeça para Mauricio, que tornou a apanhar o aparelho.
Segundos se passaram, em que Erek tomava um gole de água mineral.
- Ninguém atende. - disse Mauricio, desligando.
William fez um aceno de compreensão, sério; entrementes, Carlos olhava fixamente para o alto, um pouco acima do chapéu do amigo.
- Ei, Dick - disse o rapaz para o homem ao balcão - Pode aumentar um pouco, fazendo favor?
Dick aumentou o volume de uma televisão instalada no alto; os quatro rapazes olharam para ela.
Um plantão informava sobre estranhos acontecimentos consecutivos pela cidade. Havia ataques de delinqüentes, pessoas visivelmente doentes, que queriam arrancar a dentadas tudo que estivesse à frente. A aparência delas era medonha; palidez acentuada, olhos girando nas órbitas, ferimentos pelo corpo. As cenas seguintes mostravam os acidentes de trânsito que ocorriam pela cidade, aumentando os engarrafamentos; os bombeiros e o pessoal do pronto-socorro procurava vítimas em meio aos carros destruídos. A prefeitura parecia desestruturada com essas estranhas ocorrências, e os entrevistados, segundo os repórteres, não davam respostas satisfatórias. Então, a cena seguinte mostrou a Escola Primária de Raccoon City em pleno caos; repórteres e jornalistas se acumulavam para tirar fotos de pessoas que corriam, desabaladas para fora da escola. A repórter do plantão disse:
- Podemos ouvir gritos no interior da escola, e a polícia vem chegando...
A câmera flagrou a chegada de alguns policiais e seus cachorros treinados. Então, focou uma das janelas da escola, de onde ouvia-se um grito distante.
- Não se sabe o que está acontecendo em Raccoon City - prosseguiu a mulher, assustada - Mas essa série de estranhos acontecimentos apontam para uma única fonte, ainda desconhecida. Há quem diga que uma praga está se espalhando pela cidade, a polícia tenta tomar providências...
William ergueu-se subitamente, atraindo os olhares dos três acompanhantes.
- Não esperem por mim. - disse ele, tomando um último gole.
- Aonde vai? - perguntou Mauricio.
- Buscar minha filha. - e saiu do bar.
Havia engarrafamentos em algumas ruas; evitou-os ao máximo, sempre excedendo a velocidade. Se a polícia a flagrasse, tudo bem. A única coisa que poderia pará-la seria a filha. Tinha de encontrá-la. tinha de encontrar Maryane.
Oh, como pudera ser tão idiota? Os documentos da Umbrella eram suficientes para qualquer pessoa sensata cair fora da cidade... não deviam ter continuado ali, no quintal de uma corporação daquelas... de que estava brincando, afinal? Tanto ela quanto William poderiam se arranjar em qualquer lugar. Por que ficara na cidade, sabendo o que a empresa estava fazendo?
Ah, se algo acontecesse a Mary ou Will... seria sua culpa. Ela era médica, entendia melhor do que o marido a falta de nexo nos documentos... poderia ter dado um basta naquilo, sabia que Will concordaria, sabia que compreenderia...
Mas não. Agora, "delinqüentes" estavam à solta... por favor, eram pessoas DOENTES! Pessoas inocentes que sofriam as conseqüências de sua ignorância com relação à extrema falta de responsabilidade da corporação...
Novamente, sua mente retornou a Will e Mary, e o pânico invadiu-a de tal forma que precisou fazer uma curva perigosa para não colidir com o carro à frente; entrou na calçada, como conseqüência, e teria colidido com a parede de um prédio se não tivesse freado a tempo.
O airbag foi acionado, e Alice, os cabelos à frente do rosto, respirou com força, ofegante como se houvesse corrido uma maratona. Olhou pelo retrovisor e tentou ligar o carro; ele não queria pegar.
- Por favor... - sussurrou - Por favor... só hoje... por favor...
Como se estivesse comovido com o pedido, o motor cedeu com um ronco e, aliviada, Alice retornou à rua, dirigindo com força total para a escola.
Na rua e em sua mente, reinava o caos, absoluto. As buzinhas, os pneus cantando e os freios ecoavam como música se comparados com o turbilhão de pensamentos misturados ao terror que Alice Jane Hoffman experimentava naqueles minutos sem fim. Oh, como desejava que seu carro pudesse voar, voar o mais depressa possível até aquela maldita escola daquela maldita cidade para poder pegar sua filha... sua única filha. Sua e de William.
"Ah, Will... onde está você? Você está bem? Ah, Will..."
Nunca Alice conhecera tão bem o medo quanto naqueles instantes torturantes em que ela tentava reaver a sua família.