sábado, 21 de fevereiro de 2009

Nove: Diagnóstico

Era fato que Alice Hoffman passava as manhãs adormecida após noites de plantão. Era nesses dias que seu marido, William, levava a pequena Maryane à escola.

Assim, às onze horas da manhã, a jovem médica abriu os olhos, encontrando-se em seu quarto, à meia-luz. Consultando o relógio à mesa-de-cabeceira, ergueu-se e foi tomar um banho.

Não tinha o hábito de demorar; quinze minutos depois, deu-se por limpa e inteiramente vestida, totalmente acordada e a cabeleira úmida. Arrumou a cama de seu quarto e abriu as janelas; caminhou pela casa vazia, parando à cozinha para apanhar algo para comer. A mesa estava arrumada para o brunch, como normalmente William a deixava antes de levar Mary à escola.

Notou a ausência do marido, mas não estranhou; sabia que ele praticava tiro e gostava de dar algumas voltas, e isso nunca a incomodara. Com naturalidade, apanhou uma xícara de café enquanto lia o jornal do dia, cuidadosamente colocado no balcão pelo esposo.

Uma das notícias abordava novos fármacos patenteados pela Umbrella; correndo os olhos pelas linhas, Alice ergueu as sobrancelhas. Não gostava daquela corporação. Trabalhava em um hospital associado à Umbrella, William era advogado da Umbrella, mas não gostava, e tinha ótimos motivos para isso.

Bem mais que uma vez, William lhe mostrara alguns papéis de patentes que ele tinha de despachar. Eles a deixaram com o pé atrás; tratava de experimentos, experimentos muito estranhos com fins duvidosos, tudo camuflado em pesquisas farmacêuticas ou para a empresa de cosméticos. Certamente, da maneira como haviam sido colocados, os estranhos detalhes que o casal percebera passariam despercebidos no cotidiano de outras pessoas que passavam o dia aprovando e arquivando papéis. Contudo, para aquele advogado que não tinha pressa de fazer nada e tinha de mexer apenas com documentos da Umbrella Corporation, esses míseros detalhes foram suficientes para convocar a profissional em Ciências Médicas mais próxima que tinha - sua mulher.

E não fora em vão. Para Alice, aquilo tudo era muito estranho. A empresa trabalhava com vírus. Vírus... aqueles elementos visíveis apenas em microscópios especializados, tão estranhos que possuíam características bióticas e abióticas, mutáveis ao extremo... a médica sabia o suficiente sobre vírus para concluir que não se podia "brincar" com eles.

Estava clara a verdadeira intenção da empresa: construir armas biológicas. Vírus não poderiam ser usados como medicamentos, pois possuíam altíssima capacidade de sofrer mutação; não se podia controlar esses seres. E tampouco se encaixava como um cosmético; a idéia de injetar vírus em quem quisesse fazer limpeza de pele ou rejuvenescimento era ridícula. O que a Umbrella chamava nos papéis de avanço na medicina, Alice chamava de burrice. Conhecia o suficiente no campo para dizer que vírus eram desnecessários, um risco inútil. Convivia diariamente com pessoas infectadas pelos mais diversos vírus, desde os inocentes vírus do resfriado às vítimas do HIV. Era, além do mais, uma infectologista e imunologista. Entendia perfeitamente bem que era uma ousadia lidar com aqueles "seres".

Era essa ambição louca, desmedida da Umbrella que ganhava o desprezo silencioso de Alice, que cuidava para não fazer comentários a respeito - William confiava informações de seu trabalho somente a ela, e por uma boa razão: sua boca era o túmulo.

Alice terminou de ler despreocupadamente o jornal, voltou ao seu quarto e apanhou alguns relatórios para colocar em ordem. Seu superior, um médico genial porém desorganizado, não cuidava das fichas dos pacientes, de modo que essa tarefa ficava a cargo da loura.

Alice sentou-se na cama, com a pilha de papéis na mesinha ao lado, onde deixara quando chegara em casa, e já ia apanhar o primeiro da lista quando uma música ecoou pelo aposento; era o celular na sua bolsa. Ela o ligou:

- Alice Hoffman.

- Oi, Alice, é a Laurell. O Henry quer saber se você levou as fichas de ontem.

- Trouxe, estão aqui comigo. Precisa delas agora?

- Não, era só pra... minha nossa, que horror!

- O que foi?

- Ligue a televisão no canal 7, Alice.

Alice apanhou o controle com a outra mão e ligou a televisão do quarto. O canal 7 transmitia o telejornal do meio-dia; a notícia era sobre atos de canibalismo que ocorreram pela cidade durante a manhã.

- Que horror, Laurell!

- É tão estranho, parece que tudo ocorre ao mesmo tempo, veja...

Aquelas palavras foram repetidas pela mente da loura três vezes... ao mesmo tempo? De repente dera um acesso de canibalismo nos cidadãos?

Então, a câmera de um repórter atrapalhado focou um dos "canibais", que atacara um homem na rua e era contido por dois policiais. Alice fixou o olhar naquele louco: estava pálido, terrivelmente pálido, branco como cera, e parecia muito ferido; sangue escorria pelas suas vestes rasgadas na altura do ombro, mas o repórter dizia que o ferimento já estava ali antes de ser abordado pela polícia. E não era só isso: alucinado, o homem gritava, emitindo ruídos primitivos, os dentes amarelos e os olhos brancos; era uma cena aterradora.

Só de olhar para aquele homem, a médica detectou traços estranhos que se repetiam nos outros delinqüentes detidos na delegacia àquela manhã (a câmera dava closes em vários rostos furiosos que tentavam se soltar enquanto mãos e algemas os continham). Aquela palidez acentuada, aqueles lábios brancos davam uma aparência de morte... se as gengivas estivessem amarelas, seria sinal de falência hepática, mas eram os dentes que estavam, como se aquelas pessoas fossem animais carnívoros e irracionais... os ruídos primitivos indicavam retrocesso intelectual altíssimo; perda da capacidade de se comunicar, perda de civilidade. Não eram rebeldes, não eram vândalos, eram... animais. A postura inadequada, perda do controle dos movimentos do corpo e os urros evidenciavam isso.

E o estranho, o mais estranho, era que todas aquelas pessoas estavam feridas em alguma parte do corpo. Não parecia ser hemorragia, pois o sangramento não parecia ser contínuo e não havia perda de forças... era como se tudo fosse uma...

(síndrome?!)

Laurell agora falava com outra pessoa, embora o telefone estivesse ainda ligado; Alice ainda mantinha os olhos no noticiário, tentando diagnosticar aquilo; como médica, sempre tivera o hábito de diagnosticar as pessoas ao redor, quando elas faziam algo estranho. Certa vez, identificara uma bolha de ar no motorista de um ônibus, quando ainda estava na faculdade; fizera-o estacionar rapidamente, o que fora uma sorte, pois o homem começara a convulsionar quando a bolha atingira uma parte vital.

- Alice, ainda está com a televisão no canal? - perguntou Laurell abruptamente.

- S-sim.

- Horroroso, não? Sabe o que é mais estranho? O hospital entrou em quarentena esta manhã, alto risco de infecção, foi o que falaram. Uma pessoa doente havia fugido, havia sangue espalhado... e o Luke acabou de me dizer que um desses delinqüentes foi morto pela polícia ao reagir, um tiro na cabeça... e o Luke verificou o corpo, disse que a hora da morte não batia com o momento em que fora baleado...

- Como assim?

- Pelo que ele viu, e ainda acha que cometeu um erro, e deve ter cometido, mesmo, Alice! Porque, segundo ele, o corpo estava morto duas horas antes de levar o tiro!

- Morto? Mas morto de quê?

- Parece que havia uma lesão no pescoço do homem... deve ter infeccionado.

- Só se a lesão fosse um tanto antiga... ninguém morre de infecção em Raccoon City!

- Isso é outro ponto estranho... a infecção parece ter levado três horas para matá-lo. A lesão foi muito feia... uma mordida, é o que parece. E a Erin diz que a marca de mordida não é de nenhum animal da região!

A testa franzida, Alice ouviu tudo em silêncio; tinha que haver algum erro nos cálculos de Luke, não era possível...

Então seus olhos voltaram à televisão, onde uma mulher assustadoramente pálida, com olheiras roxas e dentes arreganhados, tentava morder o repórter, que se aproximara demais. Essa imagem trouxe as palavras "Umbrella Corporation" à sua mente; então, fez-se a luz...

Pessoas com sensos primitivos aguçados, todas se manifestando ao mesmo tempo.

Infecção.

Mordida.

Sangue.

Ferimentos.

Umbrella.

Vírus.

Patente.

Quarentena.

Como um filme que se passava em câmera rápida em sua cabeça, Alice viu os documentos mostrados por Will... a conversa entre eles... as cenas mostradas no noticiário, a voz de Laurell... vírus.

Isso tinha dedo da Umbrella Corporation.

A resposta formou-se em sua mente como se estivesse em letras de neon: Umbrella finalmente perdera o controle do vírus. E agora ele estava se espalhando por contato sanguíneo.

Foi como se seu estômago houvesse despencado alguns centímetros; a infecção ultrapassara as paredes do laboratório e estava ali, pairando ao redor dela, e

(Maryane e William!)

precisava agir imediatamente... não parou para pensar nos exatos efeitos do vírus; não era necessário. Não queria saber como o corpo morria mas ainda mantinha vivo um animal que queria morder tudo o que alcançasse. A única coisa que queria, naquele momento, era encontrar sua família.

- Laurell, saia da cidade. - disse Alice, e desligou o celular, discando o número de William.

Entretanto, ninguém atendia; Alice praguejou em voz alta e calçou-se; precisava buscar Mary.

Na sala, deixou o celular na mesinha e apanhou um bloco de notas, rabiscou um bilhete para o marido, pregou-o à geladeira e saiu da casa. Não entrara em detalhes, tamanha era a pressa; apenas avisara o marido para ficar em casa, podia explicar depois, depois que se certificasse de que estava tudo bem com a filha... já não pensava direito. Tinha de buscar Mary.





O boteco do Dick ficava a dois quarteirões da casa de William Hoffman, em uma ruela comercial, a única do bairro, e fazia rivalidade com o bar do Jeff. William revezava entre os dois bares, prezando-os com igualdade. Assim, sentados a um canto, em uma mesa que lhes desse uma ampla visão do lugar, estavam os três rapazes - William, Carlos e Mauricio - cada um com um copo cheio à frente.

- Afinal, o que a Umbrella deve ter aprontado exatamente? - perguntou Mauricio.

Tomando um gole exagerado, William respondeu:

- Se eu te contar, você caga na calças.

- O Will é o que mais sabe a respeito. - respondeu Carlos astutamente - Ele é advogado deles, deve ter passado a mão em algumas coisinhas que deixariam muita gente desgostosa...

- Gente tipo o Erek. - acrescentou o texano, com um sorriso enviesado; Carlos aprovou.

- Mas o quê, exatamente? - insistiu Mauricio.

- Sigilo profissional, filho. - respondeu William, olhando para o fundo de seu copo antes de enchê-lo.

- Mas se põe todos nós em risco...

- O único risco que você enfrentou até agora foi o de uma bala no seu olho. - respondeu William com tranqüilidade.

- O que me intriga é a Bethany. - comentou Carlos - Onde aquela melindrosa se meteu...

- Ficar preocupado não vai adiantar, Carl, precisamos de uma idéia, se quisermos encontrá-la.

- É, mas toda hora que penso em onde ela estaria, me vem a imagem daquele Harker... puta sujeito mala, querendo tacar vírus na gente...

- Se ela virou ratinho do cara, não podemos fazer nada, precisamos de coisas construtivas. - respondeu William.

- Falou, vamos tentar também não imaginar Alice e Maryane Hoffman sofrendo as conseqüências do que você andou lendo enquanto exercia a advocacia na corporação...

William ignorou-o com um sorriso conformado.

- Se não quer se acalmar, não tente tirar a calma dos outros, Carl.

- Eu estou calmo, sempre estou calmo. Só estou... deveras preocupado. - retorquiu o outro.

- Eu também. - disse uma voz - Passei no apê da Bees, e nem sinal dela. Toquei o interfone e tudo o mais... mas nada. Se eu ao menos tivesse a chave...

Todos ergueram os olhos para Erek, que acabara de aparecer. Embora estivesse um pouco suado, seus cabelos úmidos e o forte cheiro de desodorante denunciaram o banho que ele tomara. Por uma incrível coincidência, também trajava vestes negras, embora fossem diferentes das de Carlos e Will; usava uma camiseta sem mangas e luvas furadas nos dedos. Sua calça larga era cheia de bolsos, e usava tênis que pareciam botas. Trazia uma mochila esportiva também preta às costas.

- Ela não está em casa, então... - disse Carlos - E o que você trouxe aí?

- Coisas úteis para uma possível viagem, Carl. - e, virando-se, para Will - Agora que estamos todos aqui, têm alguma idéia de como encontrar a Bees? Não podemos sair da cidade sem ela.

- Sente aí. - disse William, indicando a cadeira vazia ao seu lado, e Erek obedecendo, colocando a mochila no chão - Tudo o que sabemos sobre a Bees é que, depois de me ver, sumiu. Não voltou ao trabalho, não foi a lugar algum.

- Mas o irmão dela está na cidade. - lembrou o rapaz - E se telefonássemos pra ele, pedindo notícias?

- Bem lembrado. Alguém tem o número dele? - indagou o advogado, olhando para todos na mesa; Mauricio, a um olhar dele, apanhou o celular.

- Eu tinha no meu celular. - respondeu Carlos - Mas não sei de cor.

- Eu também tinha, mas meu celular sumiu. Eu o tinha levado para a mansão Spencer, mas nos pegaram... - comentou Erek.

- Ela tem algum outro contato na cidade? - perguntou Mauricio, ainda com o aparelho na mão.

- Cássio. - respondeu William, tomando um gole - Mas pode estar grampeado, eles são colegas de escritório.

- Mais algum?

- Samuel Allen, o jornalista. - respondeu o texano - Mas eu não tenho o número dele.

- Nem eu. - respondeu Carlos; Erek apenas fez que não com a cabeça.

- Mas poderíamos ir até o local de trabalho dele. - lembrou Erek - Falar com ele, se possível.

- Como você veio para cá? - perguntou William.

- Moto. Essas ruas estão intransitáveis de carro.

- Então você pode dar um pulo lá e voltar; eu fico aqui. Quero esperar Alice e Mary chegarem.

- Ah... e como elas estão?

- É o que quero saber. - respondeu o rapaz, endireitando os óculos escuros com o dedo - Ligue para minha casa. - acrescentou, fazendo um aceno de cabeça para Mauricio, que tornou a apanhar o aparelho.

Segundos se passaram, em que Erek tomava um gole de água mineral.

- Ninguém atende. - disse Mauricio, desligando.

William fez um aceno de compreensão, sério; entrementes, Carlos olhava fixamente para o alto, um pouco acima do chapéu do amigo.

- Ei, Dick - disse o rapaz para o homem ao balcão - Pode aumentar um pouco, fazendo favor?

Dick aumentou o volume de uma televisão instalada no alto; os quatro rapazes olharam para ela.

Um plantão informava sobre estranhos acontecimentos consecutivos pela cidade. Havia ataques de delinqüentes, pessoas visivelmente doentes, que queriam arrancar a dentadas tudo que estivesse à frente. A aparência delas era medonha; palidez acentuada, olhos girando nas órbitas, ferimentos pelo corpo. As cenas seguintes mostravam os acidentes de trânsito que ocorriam pela cidade, aumentando os engarrafamentos; os bombeiros e o pessoal do pronto-socorro procurava vítimas em meio aos carros destruídos. A prefeitura parecia desestruturada com essas estranhas ocorrências, e os entrevistados, segundo os repórteres, não davam respostas satisfatórias. Então, a cena seguinte mostrou a Escola Primária de Raccoon City em pleno caos; repórteres e jornalistas se acumulavam para tirar fotos de pessoas que corriam, desabaladas para fora da escola. A repórter do plantão disse:

- Podemos ouvir gritos no interior da escola, e a polícia vem chegando...

A câmera flagrou a chegada de alguns policiais e seus cachorros treinados. Então, focou uma das janelas da escola, de onde ouvia-se um grito distante.

- Não se sabe o que está acontecendo em Raccoon City - prosseguiu a mulher, assustada - Mas essa série de estranhos acontecimentos apontam para uma única fonte, ainda desconhecida. Há quem diga que uma praga está se espalhando pela cidade, a polícia tenta tomar providências...

William ergueu-se subitamente, atraindo os olhares dos três acompanhantes.

- Não esperem por mim. - disse ele, tomando um último gole.

- Aonde vai? - perguntou Mauricio.

- Buscar minha filha. - e saiu do bar.





Se william Hoffman tivesse chegado à sua casa vinte minutos antes, teria visto Alice sair cantando pneu. A médica dirigia apressadamente, pegando atalhos pela cidade; a escola ficava do outro lado, por isso precisava chegar o mais rápido possível.

Havia engarrafamentos em algumas ruas; evitou-os ao máximo, sempre excedendo a velocidade. Se a polícia a flagrasse, tudo bem. A única coisa que poderia pará-la seria a filha. Tinha de encontrá-la. tinha de encontrar Maryane.

Oh, como pudera ser tão idiota? Os documentos da Umbrella eram suficientes para qualquer pessoa sensata cair fora da cidade... não deviam ter continuado ali, no quintal de uma corporação daquelas... de que estava brincando, afinal? Tanto ela quanto William poderiam se arranjar em qualquer lugar. Por que ficara na cidade, sabendo o que a empresa estava fazendo?

Ah, se algo acontecesse a Mary ou Will... seria sua culpa. Ela era médica, entendia melhor do que o marido a falta de nexo nos documentos... poderia ter dado um basta naquilo, sabia que Will concordaria, sabia que compreenderia...

Mas não. Agora, "delinqüentes" estavam à solta... por favor, eram pessoas DOENTES! Pessoas inocentes que sofriam as conseqüências de sua ignorância com relação à extrema falta de responsabilidade da corporação...

Novamente, sua mente retornou a Will e Mary, e o pânico invadiu-a de tal forma que precisou fazer uma curva perigosa para não colidir com o carro à frente; entrou na calçada, como conseqüência, e teria colidido com a parede de um prédio se não tivesse freado a tempo.

O airbag foi acionado, e Alice, os cabelos à frente do rosto, respirou com força, ofegante como se houvesse corrido uma maratona. Olhou pelo retrovisor e tentou ligar o carro; ele não queria pegar.

- Por favor... - sussurrou - Por favor... só hoje... por favor...

Como se estivesse comovido com o pedido, o motor cedeu com um ronco e, aliviada, Alice retornou à rua, dirigindo com força total para a escola.
Na rua e em sua mente, reinava o caos, absoluto. As buzinhas, os pneus cantando e os freios ecoavam como música se comparados com o turbilhão de pensamentos misturados ao terror que Alice Jane Hoffman experimentava naqueles minutos sem fim. Oh, como desejava que seu carro pudesse voar, voar o mais depressa possível até aquela maldita escola daquela maldita cidade para poder pegar sua filha... sua única filha. Sua e de William.
"Ah, Will... onde está você? Você está bem? Ah, Will..."
Nunca Alice conhecera tão bem o medo quanto naqueles instantes torturantes em que ela tentava reaver a sua família.
Mais do que muitos ali, mais até do que Bethany e Richard Yenne, Carlos Visconti, Erek Leon, Samuel Allen, Cássio Spohr e Liane Marquez, ela tinha a resposta. Nem mesmo William Hoffman tinha tantas respostas quanto ela.
Mas eram essas respostas que a horrorizavam mais do que tudo. Sabia perfeitamente o que aconteceria a quem amava se aquela coisa da Umbrella chegasse a eles.
E temia isso mais do que tudo.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Oito - Os três significados de "Trânsito"

Primeiro significado: andar, movimento. Movimento, transporte de idéias, no contexto.
Em um beco de Raccoon City, um carro estava estacionado. O motorista era um rapaz forte e sério; o passageiro ao lado, outro rapaz, só que mais carismático e tagarela, e, atrás, a única moça, Liane.
Cássio contou aos dois como Bethany estivera estranha àquela manhã e como ele desprezara as palavras dela; contou como, algumas horas depois, William telefonara atrás dela, e como um homem aparecera do nada no escritório perguntando por ela, pensando em interrogá-lo também. Em seguida, Richard compartilhou com os dois as informações estranhas que recebera no hospital de Carlos e Erek, além da presença de Harker.
- Erek é maluco, tem essa paranóia sobre a Umbrella há séculos. - comentou Cássio - Vivia me acusando de ser traidor da raça humana só porque eu fui contratado e ele não...
- Mas e Beth e Carlos, Cássio? - lembrou Liane astutamente - Você não estudou com Bethany tanto tempo quanto eu. Ela sempre foi puxa-saco de professores, não aceitava uma única palavra contra eles! Discutimos muito por isso, ela simplesmente odeia que os critiquem... e quando foi contratada pela Umbrella, defendeu os superiores do mesmo jeito... Cássio, se ela disse tudo o que te disse... Meu Deus, não quero nem imaginar o que a fez adotar uma atitude tão oposta...
- É, eu notei a diferença nas idéias dela de ontem pra hoje, por isso estou aqui.
- Mas não notou o suficiente para acreditar! - exclamou Liane, indignada - Você devia ter acreditado na mesma hora e tentado ver o que estava errado! Foi preciso um cara estranho cutucar sua bunda para você se mexer! Ela não está no trabalho e não atende a telefonemas, e agora o Richard vem me dizer que ela está desaparecida e corre perigo!
- Liane... - disse Richard com voz controlada.
- Eles quase usaram Carlos e Erek como cobaias, e teriam usado se eles não fossem mais espertos! Nem quero saber o que estão guardando para ela...
- Liane! - repetiu Richard, zangado - Você está histérica. Se você se acalmar, vai poder enxergar uns pontos que a lógica limitada de uma pessoa desesperada não alcança.
- Ah, é? E qual é?
- Bethany está desaparecida, não capturada. Se perguntaram a Cássio onde ela estava, é porque ainda estão atrás dela. Não adianta culpar o cara, já está feito e ele já acredita nela. Agora precisamos estar um passo à frente e saber onde ela estaria.
- Tentaria contatar os amigos. - disse Liane, raciocinando.
- Não se soubesse dos telefones grampeados.
- Tentaria... sair da cidade?
- Não sem notícias dos amigos. Se existe um risco, ela faria questão de ver se estão todos bem.
- Então estaria... atrás dos amigos?
- Isso mesmo.
- Com certeza não encontrou Carlos ou Erek... nem Will. - disse Cássio - São só esses os amigos dela na cidade, não?
- Não, tem o Samuel. - lembrou Liane, que puxava rapidamente pela memória - Telefone para ele, eu tenho o número.
Cássio tirou o celular do bolso, e já ia discar os números ditados pela garota quando, sem aviso, Richard arrancou-lhe o aparelho da mão.
- Se queriam interrogar você, e se você é amigo dela, deve estar grampeado também. - avisou - Liane, ligue do seu.
- Certo...
Liane discou o número e aguardou.
- Tá chamando... mas ninguém atende. - avisou, tensa - Caiu na caixa postal. - finalizou, alguns instantes depois.
- Tente o do Will.
Contudo, nem Will, nem Carlos e nem Erek atendiam celulares.
- Todos devem saber que está grampeado, por isso deixaram de lado. - concluiu Richard, desanimado.
- O Samuel não saberia. - retorquiu a moça - E é muito estranho ele não atender... será que...
Uma música ecoou pelo carro; era o celular de Liane dando sinal de vida. Ela atendeu:
- Liane Marquez.
Silêncio.
- Ela não chegou até aí, Rachel? Nem Samuel? Como? - pausa - Eles disseram que iam?
Silêncio. Richard, sério, e Cássio, lívido, olhavam para a moça, que olhava para as próprias coxas, a testa vincada.
- Calma... deve acontecido alguma coisa no carro ou algo assim... calma, eles vão chegar... eu sei... olha, estou em Raccoon City agora, se for para ir aí, você teria que esperar mais tempo... ok, ok. Olhe, parto em dez minutos, tudo bem? Eu não a encontrei, mas eu vou para aí, ok? Richard não atende porque está aqui comigo, em Raccoon... relaxa, eu já estou indo.
Quando ergueu os olhos, desligando o telefone, Liane encontrou os de Richard; este parecia aborrecido.
- É Rachel?
- Sim, está uma fera porque nem Beth e nem Samuel apareceram pra ficar com o Phil...
- Ah, sim, ela acha que todo o mundo tem cara de babá. - comentou Richard - Como se ninguém tivesse mais nada pra fazer... espere aí, você disse que Samuel ia tomar conta do Phil? Quem ia fazer isso era a Bethany!
- Parece que ela combinou com ele... mas nenhum dos dois chegou lá.
- Parece que Samuel está dentro da coisa, de alguma forma, então... - concluiu Richard, pensativo.
- É, mas agora eu disse pra sua irmã que ia pra lá pra ficar com o Phillip.
Richard girou os olhos nas órbitas.
- Você não fez isso!
- Ela estava desesperada, disse que estava atrasada para um montão de coisas...
- Ela SEMPRE está atrasada para um montão de coisas e sempre acaba resolvendo tudo. Se você não for, ela não larga mais do seu pé, mas não ligue. Tem coisas mais importantes em jogo agora.
- É, mas e se Bethany e Samuel desapareceram justamente porque estão indo para lá agora?
Richard e Cássio entreolharam-se.
- Você quer ir para lá? - perguntou Cássio à garota.
- Quero. É o melhor a fazer no momento.
Richard suspirou.
- Certo, mas vamos ficar de olho... e ver se encontramos Bethany.
Com essa resolução, Richard Yenne deu a partida para sair do beco.
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Segundo significado: afluência de veículos e pedestres.
O trânsito confuso e a longa distância até o bairro onde William morava fez o jipe estacionar próximo à sua casa meia hora após o encontro com Carlos.
Os Hoffman residiam em um confortável sobrado localizada em uma alameda afastada, fresca e agradável. O vento suave que sacudia as árvores frondosas, os jardins grandes e bem-cuidados e as casas bonitas e afastadas tornavam o ambiente leve e gostoso, e o silêncio era tranqüilizador, em oposição ao temor que as três pessoas no automóvel sentiam.
Estacionaram do outro lado da alameda, de modo que tiveram uma visão ampla da casa; a garagem estava vazia.
- O carro dela não está lá. - observou William.
- Então não deve ter ninguém lá. - concluiu Mauricio.
Carlos abriu o porta-luvas do carro, retirou um binóculo de alta precisão e levou-o aos olhos.
- Pelas janelas, parece tudo em ordem. - disse - Sem movimento.
- Acha que a levaram como refém? - perguntou Mauricio, aparentemente interessado.
- Não no carro dela, filho. - respondeu William - Sei o modelo, cor e placa, e ele tem rastreador, eu poderia ativá-lo quando quisesse.
- Mas poderia ser cilada, não? Você seguiria o carro e cairia em uma...
- Ah, sim, e eu seguiria o carro pelado, mãos pra cima, gritando "não atire", né...
- Então qual é a sua teoria?
- Vamos colocar da seguinte forma... - William tirou o cigarro da boca, soprou a fumaça e, com o objeto entre os dedos, prosseguiu calmamente - Pelo que sei, a Umbrella está enrascada. Se meteu com o que não devia e, se o que a Bethany, uma amiga nossa, diz for verdadeiro, ela anda cheia de problemas. Não vai colocar todos os esforços em pegar meia dúzia de jovens quando têm um problemão pra resolver. Achei que estariam me esperando em casa, com minha mulher como refém, mas se ela não está e o carro também não... seqüestrá-la é mais trabalho pra Umbrella... descenecessário, mais custo que benefício.
- Não vejo nenhuma movimentação na sua casa, cara. - informou Carlos, que ainda segurava o binóculo.
- É porque não há, então. - e, virando-se para Mauricio e colocando o cigarro na boca - Tem celular aí, filho?
O rapaz enfiou a mão no bolso e lhe entregou o aparelho.
- Eles vão vir atrás de mim também? - perguntou, nervoso.
- Pensa, filho. Eles não querem mais uma dor de cabeça. Pouco estão se lixando pra você. - acrescentou discando um número.
- Então... por que estou aqui?
- Se quiser - disse Carlos, guardando o binóculo no porta-luvas -, pode se mandar. Estamos encrencados e certamente teríamos dado no pé se alguns de nossos amiguinhos não tivessem desaparecido misteriosamente. Eu já disse no caminho, a Umbrella perdeu controle de um de seus projetos, e agora Raccoon City está em perigo.
- Vocês vão sair da cidade?
- É o que planejamos.
- Nesse caso, fico com vocês.
- Por quê? Tá a fim de mim ou do Will?
- Brincou? Essa cidade está um caos! - disse o rapaz - Já que estou aqui, saio da cidade com vocês. Não vou conseguir passar por aquilo sem um carro! - acrescentou, apontando para trás com o polegar; a alameda, por ficar na periferia, localizava-se em uma colina, de modo que a região central da cidade era visível às costas dos rapazes, bem como as ruas caóticas.
- Ninguém atende, nem em casa e nem no celular dela. Acho que ela deixou o celular em casa, tem o hábito de fazer isso. - disse William, devolvendo o celular a Mauricio - Mas, por via das dúvidas... - e saltou do jipe.
- Aonde vai? - perguntou Mauricio.
- Dar uma checada. - informou o texano, cigarro no canto da boca - Vocês dois fiquem aqui. - o rapaz contornou o jipe pela parte frontal, automaticamente olhando para os dois lados para atravessar a rua; súbito, parou - Ah, é, - disse, voltando e enfiando a mão na canela; sacou o revólver e passou-o para Carlos - Em caso de necessidade... se ficar feio, disque o número de casa, tá no celular do garoto aí... já volto.
- Rápido, temos de estar no bar do Dick em poucos minutos! - avisou Carlos.
- Se eu demorar, vão sem mim. - retorquiu o texano, já de costas, fazendo um sinal com o polegar e afastando-se em direção à casa.
William, arma em punho e chave na outra mão, adentrou na própria casa como se espionasse o quartel-general inimigo. Cuidadosamente avançou, registrando a casa arrumada como a deixara horas antes. Caminhou por todos os cômodos, em silêncio, seus passos por vezes ecoando em contato com o piso limpo. Registrou a chamada não-atendida na caixa de entrada do telefone que ele mesmo efetuara instantes antes, e até encontrou o celular da esposa sobre a mesinha-de-centro. Quando estava no corredor, ouviu vozes no quarto; prendendo a respiração, avançou, a magnum apontada para o teto, em posição...
Tomando uma decisão, abriu a porta de seu quarto com um chute e apontou a arma para frente.
Não havia ninguém. As vozes vinham da televisão, ligada no canal 7 e exibindo um programa qualquer vespertino. Pelo visto, fora esquecida ligada.
- Pressa? - sussurrou William; lentamente, abaixou-se para olhar embaixo da cama. Nada, nenhum vestígio. A cama fora arrumada, a roupa trocada... a suíte estava vazia.
Foi à cozinha. Chegando lá, novidades: um bilhete pregado na geladeira com a letra de Alice:
"Amor, fui buscar Mary. Por favor, nos espere. Eu amo você!"

William arrancou do ímã que o segurava e fixou-o. Conhecia a letra de Alice; a despeito do que diziam da caligrafia de médico, a dela era perfeitamente legível, redonda e ligeiramente inclinada. Notou, contudo, que naquele bilhete, a letra estava mais inclinada que o normal, indicando pressa; já vira aquilo antes.

Alice sempre deixava bilhetinhos na geladeira para avisar quando ia a algum lugar; William nunca os cobrara, tampouco reclamara deles. Adorava como a esposa sempre se lembrava dele, de mantê-lo atualizado, despreocupado. Não entrava em detalhes, apenas avisava, à guisa de "está tudo bem e não quero que fique desinformado". Por maior que fosse a pressa, sempre escrevia "eu amo você" no final. Ou simplesmente "E.A.V", quando realmente estava com muita pressa. Mas nunca se esquecia. Nunca.

William sorriu e saiu da casa. Na rua, tudo parecia normal; Carlos e Mauricio acompanharam com os olhos sua chegada ao jipe.

- Tudo sob controle, ela foi buscar Mary.

- Encontrou algo de valor? - perguntou Carlos, propositalmente imitando um bandido no jeito de falar.

- Televisão ligada, celular esquecido e bilhete na geladeira. Mas o resto parecia normal.

- E qual vai ser o veredicto, Dr. Hoffman?

- Vamos no Dick. Damos um tempo e tento ligar para ver se ela voltou.

- Não deixou bilhete pra ela, respondendo? - perguntou Mauricio.

- Nenhuma pista sobre meu paradeiro. Não vou facilitar para os babacas da Umbrella; fico por perto, de olho, sem que fiquem de olho em mim. - e, acendendo outro cigarro, William deu a partida no carro.

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Terceiro significado: Morte.

Já passava de uma hora da tarde quando o carro de Richard avançou pelas ruas de Raccoon City; avançar pelo menos era a intenção. O rapaz não conhecia as ruas da cidade, de modo que pegava as principais, e a maioria ainda estava engarrafada.

- Que diabos está havendo? Se estivéssemos em Manhattan, eu até entenderia.

- Deve ser o horário de almoço. - disse Liane, sentada bem no meio do banco traseiro, as mãos cruzadas no colo, o corpo ligeiramente inclinado para frente.

- Já faz uma hora que ele começou! - retorquiu o rapaz, impaciente- Falamos de uma porção de coisas estranhas e você me vem com essa desculpa?

- E você acha que o tráfego tem alguma relação com a Umbrella?

- Umbrella culpada pelos problemas no trânsito? Não é tão grave, é? - riu-se Cássio.

Richard deu um giro no volante.

- Que sotaque de bosta você tem, hein?

Cássio sorriu, conformado.

- O que importa é que dá pra entender. Não pense que tenho vontade de ter nascido aqui, me orgulho muito de minhas raízes.

Pararam em um engarrafamento; Richard apoiou o cotovelo na janela do carro, passando a mão distraidamente pelos cabelos castanhos muito rebeldes.

- Aonde terá se metido a Bethany... - murmurou - Só dando trabalho...

- Ela não tem culpa por trabalhar para uma merda como a Umbrella. - retrucou Liane - Não poderia prever isso nunca...

Richard encarou a moça pelo retrovisor.

- Será que tenho permissão para reclamar dentro do meu carro sem que me encham o saco?

Liane ia responder quando seu celular tocou.

- É Rachel. - disse, olhando para o visor, sem atender - Estamos demorando para sair da cidade, deve ser isso...

- Dê aqui. - disse Richard, estendendo a mão para trás e apanhando o aparelho - Oi, Rachel? O trânsito está uma merda, vai ter que pagar uma babá. - breve pausa - Rachel, não dá pra ir mais rápido que isso, você conhece umas técnicas de teleporte? Então se vira, que vamos demorar, e não adianta xingar que isso não vai acelerar as coisas. Tô no meio de um engarrafamento, isso acaba com a alegria de qualquer um. Tchau. - e desligou, devolvendo o celular à dona.

- Ficar nervoso também não vai ajudar. - disse Cássio com um sorriso.

Richard resmungou baixinho, de cara fechada. Dez minutos depois, puderam avançar dois metros.

- Vire à esquerda, conheço um atalho. - informou o brasileiro.

O médico obedeceu, manobrandoo automóvel com poucos movimentos; o carro virou, entrando na contramão no outro lado da avenida e seguindo em frente para desembocar em uma rua estreita e vazia.

- Aquela avenida lá na frente parece mais animada... - comentou Cássio, olhando atentamente - Pode ir...

Em silêncio, Richard seguiu as instruções; depararam com uma avenida com trânsito normal e seguiram adiante. Passaram por alguns quarteirões.

- Você que manda aqui, Cássio. - concluiu Liane, sorrindo para o rapaz - Conhece os segredos das ruas de Raccoon City...

Cássio, com o braço apoiado na janela aberta, tamborilou do lado de fora do carro, muito cheio de si.

- Seja como for, precisamos entrar em contato com Bethany ou os amigos dela em algum momento. - disse Richard, sério, espiando por todos os espelhos com o rabo dos olhos - Devem estar passando por umas poucas e boas.

Liane colocou a mão em seu ombro.

- Eu sei que ela é sua irmã, mas fica calmo. A Bethany é doida, mas é esperta e vai se dar bem.

Suspirando, Richard abriu a boca para dizer algo; contudo, ninguém nunca chegou a saber o que era, porque, naquele instante, o rapaz viu pelo retrovisor um caminhão vindo perpendicularmente ao automóvel. As últimas coisas que Richard viu e ouviu foram um estrondo na traseira do carro... gritos... tudo girou à sua volta, carros surgiram de todos os lados... um ruído de vidro estilhaçando na parte de trás, mais gritos... outra colisão, de lado e, sem aviso, uma cortina negra caiu sobre seus olhos, abafando os ruídos ao seu redor.

Sete - As peças se movimentam

Disfarçados de faxineiros, Carlos e Erek precipitaram-se pela saída; cuidaram para que dois homens com ares de seguranças na entrada não os vissem. Em seguida, saíram pelas ruas da cidade, ainda olhando, desconfiados para os lados.
- Precisamos contatar Bees e Will. - avisou Erek.
- Da última vez que contatei um deles, fui parar em um hospital pelado e quase virei cobaia. - retorquiu o amigo.
Leon o encarou; apesar do que dissera, Carlos estava visivelmente preocupado com os amigos.
- Vamos nos comunicar por outros telefones. - decidiu o rapaz - Vamos nos separar e...
- Não, se for para enfrentar Harker e seus lacaios, temos que ficar juntos! - discordou Erek na mesma hora.
- Quando Harker ficar com saudade da gente, ele e os outros viadinhos vão avisar que tem dois caras perambulando por aí... em dois, chamamos atenção, separados, não, sacou?
Erek franziu a testa, compreendendo.
- Precisamos calcular nossos passos, então.
- Yep. Se chegaram até a gente, chegaram até Bethany e Will, também, então não devemos procurá-los na casa deles. Bethany me disse que falaria com Will, e duvido que ela esteja no trabalho dela ou na casa dela. Will não fica em casa de manhã quando a mulher tem plantão... e ele leva a filha pra escola...
- Então...?
Carlos coçou a cabeça.
- Onde você acha que Will estava quando Bees o encontrou?
- Sei lá... Will se faz em casa em qualquer bar que encontra... mas se eles foram pegos, onde estariam?
- Vamos deduzir que não foram pegos, Erek. Vamos para nossas casas e nos trocamos pra não dar na vista... você telefonará para o segundo telefone público mais perto de minha casa, na Walk Street daqui a uma hora!

- Que horas são?
- Onze e cinqüenta e cinco.
- Combinado, então.
Assim, os dois amigos se separaram.



Meio-dia em Raccoon City. Bethany estava desaparecida; Will escapara da cilada na igreja; Carlos e Erek iam respectivamente para suas casas; Cássio e Liane encontravam-se por acaso; Richard rumava para a indústria onde a irmã trabalhava; Samuel estava em casa. Como peças de xadrez, esses jovens moviam-se pela cidade de forma independente.
No Hospital de Raccoon City, em uma salinha, um homem apareceu à porta.

- Conseguimos, senhor - disse ele para outro que aguardava na sala - Suspeitas confirmadas; o hospedeiro foi contido.
- Ótimo. - disse Dr. Harker, assentindo.
- Mas ele espalhou a infecção...
- Como?
- Um dos médicos, Conrad Parker... ele conseguiu conter o suspeito no depósito, mas foi ferido...
- O idiota entrou lá sem noticiar a segurança?
- Sim, senhor.
- Ninguém o mandou desobedecer às normas. Coloque os dois em observação.
- Já fizemos. Estão sedados.
- Nesse caso, iniciem o projeto GT.
- Não podemos, senhor. - disse outro homem, que chegara segundos antes - Leon e Visconti escaparam.
Harker, que até então mantivera-se de costas, virou-se.
- Como assim? - perguntou lentamente.
- Eles escaparam, senhor.
Harker olhou de um homem para o outro.
- Eles estavam trancafiados em um quarto, atados nas mãos, tronco e pés, em um hospital em quarentena. E você vem me dizer que eles... escaparam?
- Devem ter arrumado um jeito de se soltarem...
Dr. Harker deu um soco na mesa.
- E as câmeras de vigilância?
- Não estavam acessíveis por causa das medidas de segurança, não pudemos chegar ao último andar...
Um celular tocou. Harker atendeu-o, erguendo a outra mão para silenciar os homens.
- Harker.
Silêncio.
- Escapou? Acabou com a igreja? - parecia furioso e, ao mesmo tempo, estarrecido - Eu não quero saber se ele estava armado, Lorry, vocês deviam tê-lo agarrado! Eu não quero saber, ele era um, vocês eram dois! Diabos, vocês só servem para gastar munição? Quatro adolescentes escaparam por entre nossos dedos esta manhã, e tudo por causa de inúteis que não tomaram as medidas certas... como assim, "o que vamos fazer"? Vão atrás deles, e não entre em contato se não tiver uma boa notícia. - e desligou.
Inspirando com força, o homem virou-se para os outros dois.
- Monitorem os hospedeiros. Mantenham isolados, vocês conhecem as regras.
Os dois homens assentiram e retiraram-se.


Samuel combinara de se encontrar com Bethany na casa da irmã dela, em Saint Catherine. No horário combinado, ele telefonou para a moça para confirmar. Entretanto, o celular dela tocou até a ligação cair. Três vezes. Telefonou para a casa da garota; caiu na secretária eletrônica.
- Alô, Bethany, é o Samuel - disse - Escute, eu queria falar com você para confirmar a ida à casa da sua irmã... você não atende o celular, então liguei para sua casa... ok? Gostaria que entrasse comigo assim que puder. Beijos.
Caminhando pela sala do apartamento, o rapaz telefonou, então, para a casa da irmã dela:
- Rachel Finnigan.
- Alô, Rachel... é o Samuel, amigo da Bethany...
- Eu me lembro de você!
- Ah, sim... pois então, ela me disse que estaria aí para ficar com o Phil... quero dizer, a gente se encontraria aí, ela chegaria depois, e ficaríamos com Phil até você voltar... ela já está aí?
- Não, ainda não. Está atrasada.
- Ela disse que atrasaria, e que era para eu chegar antes...
- Ah... obrigada por vir também! Eu preciso mesmo fazer essa viagem, muitas coisas para resolver...
Samuel, com os olhos girando para o teto, esperou Rachel terminar seu monólogo sobre a importância dessa viagem, até que um ponto lhe chamou a atenção:
- ... e dois dias são suficientes para eu colocar em ordem...
- Espere aí - interrompeu-a o rapaz - Dois dias?
- Sim, Bethany vai ficar dois dias aqui, assim como você...
- Não... ela me disse que era apenas uma tarde.
- Uma tarde? Não, não, são dois dias, está combinado...
- Rachel - disse Samuel lentamente, como se tentasse mostrar algo muito simples que ninguém compreendia - Ela me disse que seria apenas uma tarde e que se atrasaria um pouco. Foi só isso que disse.
- Bom, você pode ficar só uma tarde, você trabalha, não é, querido? Mas ela tem que ficar dois dias, Phil não pode ficar sozinho, é apenas uma criança, tem só três aninhos...
- Hmm... - fez Samuel; desta vez, não teria paciência para agüentar outro monólogo - Então ela não chegou?
- Não, suponho que seja o atraso previsto por ela...
- Certo... obrigado, Rachel.
- De nada... você já vem, né? Não posso me atrasar.
- Ahm... sim. Tchau. - e desligou.
Suspirando, o rapaz pensou rapidamente. Bethany dissera que era apenas uma tarde... ela não estava empurrando Samuel para cuidar do garoto, isso não era do feitio dela... provavelmente, não dissera que ficaria dois dias porque lhe parecera óbvio que o rapaz passaria a tarde com ela, iria embora e ela ficaria com o menininho...
Mas não estava em casa e nem nada casa da irmã, e não atendia o celular. Era verdade que Bethany odiava celulares, porém não deixava de atender ligações. Estaria em reunião? Ou ocupada com seus afazeres?

Telefonou para o escritório dela; novamente, tocou até cair. Provavelmente, ela e seus companheiros estavam em horário de almoço...
Telefonou, então, para a secretaria de onde ela trabalhava. Finalmente, alguém atendeu.
- Bethany Yenne está aí? - perguntou o rapaz.
Pausa.
- Ela... está ocupada, senhor. - respondeu uma voz feminina do outro lado da linha - Em que posso ajudá-lo?
- Preciso falar com ela... onde ela está?
- Está ocupada. Estará disponível mais tarde.
- Quando?
- Às... dezesseis horas, senhor.
- Obrigado. - respondeu o rapaz, registrando a hesitação da moça.

Algo não batia; Bethany dissera que iria se atrasar uma hora apenas, e não quatro. Não era do feitio dela essas complicações; normalmente, gostava de deixar tudo minuciosamente explicado. Se tivesse um dever que perigasse durar quatro horas, evidentemente não teria marcado nenhum encontro com o amigo; ela gostava de estar sempre um passo à frente das adversidades. Se marcara de se encontrar com ele na casa de Rachel, era porque tinha certeza de que estaria lá.
Parou de andar de um lado a outro da sala e sentou-se na poltrona, fechando os olhos. Lembrou-se da última conversa dos dois, ao telefone.
Ela parecia tensa, apressada, como se quisesse dizer algo... conhecia a amiga tempo suficiente para saber quando ela tentava parecer calma sem estar. Sempre dissera que ela era tensa, mas havia uma diferença entre a tensão normal e a de hoje... era como se escondesse algo.
Ligou a televisão. No canal 7 de Raccoon City, era transmitido um plantão que informava um estranho ataque de um homem contra uma mulher, em um aberto gesto de canibalismo; espantado, a mente do jovem voltou-se às fotos que o free-lance tirara...
Samuel Allen sentia-se tenso. As estranhezas de Bethany, aquelas malditas fotos, essa reportagem...
Súbito, ergueu-se. Iria à casa da amiga. Se não a encontrasse, iria até o local de trabalho dela. Estava começando a se sentir paranóico, e o melhor era eliminar, uma a uma, as perguntas que se formavam em sua mente.


Um jipe avançava pelas ruas de Raccoon City; o motorista era o texano, advogado e pistoleiro nas horas vagas William Hoffman.
- Você viu aquilo? - perguntou o homem que estava no banco do passageiro - Quem eram aqueles homens? O que eles queriam?
- Soldados da Umbrella - respondeu William - Não faço idéia do que eles queriam, e decididamente estou aqui justamente porque não me interessa saber!
- O que eles querem com você?
- Coisa boa não deve ser.
- Cara... - disse o outro, passando as mãos pelos cabelos, ainda embasbacado - Você simplesmente sacou essas armas... e começou a atirar... a sangre frio... achei que fôssemos morrer na sacristia, mas você simplesmente saiu do esconderijo quando eles não estavam atirando, que sorte!
- Sorte nada, filho. - retorquiu Hoffman - Eu sabia que eles não estariam atirando.
- Como?
- Balas não são infinitas. Pelo tiro, dava para ver que eles tinham pistolas, é o que a turma da Umbrella usa... cada pistola dispara no máximo dezoito vezes antes de recarregar. Cada um deles tinha duas pistolas, faça as contas e veja no que dá.
Boquiaberto, os olhos do tamanho de laranjas, o rapaz ainda o encarava.
- Você... você contou as balas?
- E o que você achou que eu estava contando? Carneirinho? Não pode se meter nessas enrascadas se não tiver cérebro, filho.
- Meu nome é Mauricio. Mauricio Vasquez.
- Que seja.
- Aonde está indo?
- Para o lugar de onde não devia ter saído. Recarregue. - acrescentou, tirando as duas armas das vestes e munição e passando-as para Mauricio - Talvez precisemos delas.
O rapaz obedeceu.
- Não pode me deixar ali naquela rua? Trabalho ali perto...
- Você vai me agradecer por carregá-lo comigo. Tem família? - acrescentou, acendendo outro cigarro.
- Não, estão em Salt Lake...
- Nesse caso, dê o fora da cidade enquanto é tempo.
- Por quê?
- Porra, pare de fazer perguntas!
Não estava sendo fácil dirigir pelas ruas da cidade; era horário de almoço, de modo que o trânsito estava caótico; para piorar, aquele dia parecia mais confuso devido a alguns estranhos acidentes em algumas ruas que as tornavam interditadas ou criavam engarrafamentos. Como William morava em uma casa em um bairro tranqüilo e, portanto, afastado, foram-se trinta minutos atravessando parte da cidade. Quando passou por certo trecho, percebeu que estava próximo ao apartamento de Carlos; para sua surpresa, identificou o próprio em um telefone público, e o choque causada pela coincidência da lembrança com a visão quase fê-lo colidir no carro da frente.
- Até que enfim! - exclamou, estacionando o carro e ignorando as interjeições de susto que Mauricio ainda emitia diante da freada brutal; Carlos também o vira.
- O que foi? - perguntou Mauricio, ainda ofegante, com a mão no peito.
- Gente conhecida. - retorquiu o outro com satisfação.

William saltou do jipe, no que foi imitado por um atrapalhado Mauricio, e os dois foram ter com Carlos, que acabara de desligar o telefone. Carlos parecia bem; trajava um conjunto preto esportivo, com tênis combinando. Os cabelos molhados e presos atrás indicavam um banho recém-tomado.
- Cara, eu tinha cá pra mim que havia acontecido alguma coisa com o contato-primeiro da Bees! - disse Will, apertando a mão do amigo como se estivessem em uma festa social, e não em uma calçada após uma manhã de sustos, suspeitas, mistérios, fugas e tiroteios.

- E aconteceu, mano. Várias coisas, e nenhuma delas foi legal, exceto, claro, a parte do "essa foi por pouco"! Estava falando com Erek e... quem é esse? - acrescentou, olhando para Mauricio, desconfiado.
- Um peão que achei por aí... continue.
Mauricio ainda estava perdido, de modo que sequer se incomodou com o pouco caso que William lhe fazia. Carlos disse:
- Estamos usando telefones públicos porque nossos celulares estão marcados, foi assim que nos pegaram... a mim e ao Erek.
- Vocês foram pegos?
- Sim, na Mansão Spencer.
- E o que diabos foram aprontar lá?
- Tentar descobrir o lance da Umbrella sobre a Colmeia... a mansão é uma das entradas, a Bethany te disse, não?
- É, disse. E aê?
- Eles nos sedaram e acordamos horas depois, no hospital, presos e indefesos como duas mocinhas. O Harker ia injetar vírus na gente... seríamos os ratinhos de laboratório dele, cara.

A testa de Will franziu, o cigarro perdido no canto da boca.
- Mas então algo não deu certo pra ele... um "suspeito" no hospital escapou, e isso nos deu tempo para nos livrarmos, e caímos fora do lugar.
- Um suspeito escapou? Acha que era Bethany?
- Não sei, mas espero que não... seja lá quem for estava seriamente machucado, deixou manchas de sangue até um depósito. Resolvemos não investigar, precisávamos cair fora.
- Boa. E o Erek?
- Nos separamos para não dar na vista. Eu disse a Erek que você tinha aparecido, e ele vai nos encontrar em uma hora no bar do Dick. E com você, o que aconteceu?
- Uma epopéia, parceiro. Foram atrás de mim também. Duas vezes, mas ficaram para trás. Estava indo para casa, quando vi você.
- Como está Alice?
- É o que quero saber.
- O bar do Dick fica perto da sua casa, não é? Passamos na sua casa e vamos para o bar esperar o Erek.
- Boa idéia. Entra aê. - e indicou o jipe.
- Se estão atrás de vocês - levantou a questão Mauricio, sentando-se atrás; Carlos ocupara seu lugar - não acham que um jipe daria muito na vista?
- Daria, e é por isso que estou com ele. - respondeu William, ligando o carro e tragando o cigarro - Se eu fosse da Umbrella e estivesse atrás de um dono de jipe que quase peguei duas vezes, eu pensaria que ele abandonaria o carro justamente porque chama a atenção. Logo, eu não estaria perseguindo um jipe.
- Na verdade, cara - acrescentou Carlos, virando-se para fitar Mauricio - O Will aqui prefere enfrentar uma rodada com sete daqueles caras a abandonar este carro.
Will exibiu um meio sorriso e deu a partida.


Enquanto Carlos e Erek saíam escondidos do hospital, Richard passou pela segurança com toda a tranqüilidade que tinha diante das autoridades. Estes falaram pelo walkie talkie, comunicando a saída do rapaz, e passaram detectores pelo seu corpo, buscando algo estranho; Richard estranhou a atitude, mas nada disse.
O hospital fora colocado em quarentena, e agora isso. Risco biológico, com certeza. Meningite bacteriana, talvez? No hospital em que trabalhava, receberam uma vez um homem com essa doença, colocando o lugar no modo de segurança, já que o diagnóstico fora tardio. Só que haviam feito diferente; não proibiram todos de andar pelos corredores. Em vez disso, formara-se um caos, todos usando máscaras e carregando crachás azuis ou amarelos, que indicavam se podiam ou não sair do local. Em Raccoon City, a quarentena fora mais organizada. Pacientes e funcionários nos quartos e pronto!
Não, o que o preocupava deveras era o que Carlos e Erek haviam dito. Nunca se importara tanto com os amigos de Bethany - aliás, mal sabia os nomes de todos, ao contrário da irmã, que decorara todos os seus, até os signos. Entretanto, aquilo fora estranhíssimo... os dois nunca se metiam em confusão, e agora isso... querendo sair, escondidos, obviamente, do hospital. Será que o hospital ficara em quarentena por causa deles?
Não fazia sentido. Os dois, se estivessem doentes, não tentariam fugir, e sim se curar. Não colocariam outras pessoas em risco.
A questão é que o que haviam dito era estranho demais para ser verdade. Bethany estava envolvida nisso...
Umbrella escondia algo... Bethany e os outros haviam descoberto e foram perseguidos... e se quisesse ser sensato, Richard, segundo Erek, teria de ouvi-los e cair fora da cidade... que diabos estava acontecendo?
Richard não era tolo. Sabia que aquela empresa poderosíssima não era inocente. É só que parecia estranho demais uma associação daquele tamanho perseguir três jovens trabalhadores que, embora fossem competentes, eram apenas moscas diante daquele monstro de corporação. Que perigo apresentavam? Desde quando sua irmã mais velha poderia apresentar algum risco? Diabos, era só uma dos milhares de engenheiros que trabalhavam por aquela empresa!

Com seu carro, estava se aproximando da indústria onde Bethany trabalhava. Para sua surpresa, sua visão de águia captou Liane e um dos amigos de Bethany - qual era o nome? Aquele colega de trabalho dela?
Não importava. Buzinou diante deles, chamando-lhes a atenção. Os dois aproximaram-se.
- Cadê Bethany? - Richard foi logo perguntando; Liane parou diante da janela do motorista.
- É isso que o Cássio ("ah! Cássio é o nome dele!") quer nos contar. Podemos entrar? Ele diz que é urgente.
Cássio assentia enquanto ela falava. Richard destravou as portas, de modo que Cássio sentou-se no banco do passageiro e Liane, atrás.
- Bom, foi o seguinte... - começou Cássio - Para começar, dê o fora daqui, por via das dúvidas...
Mas Richard já tivera essa idéia; com o carro em movimento, o brasileiro começou a narrar o que acontecera naquela manhã.


Samuel estacionou diante do prédio de Bethany. Era de um vermelho encardido, mais bonito por dentro do que por fora, de apartamentos não muito grandes - a garota nunca se importara com luxo. Morando sozinha, preferia lugares pequenos.
Primeiro, tocou o interfone do apartamento dela, mas ninguém atendeu. Então, tirou do bolso a chave do portão e abriu-o.
Entrou em uma garagem escura, de aspecto cavernoso, cheia de pilares, com um carro aqui e outro ali. Os passos ecoavam quando pisava o asfalto; a vaga que Bethany usava para guardar a motocicleta estava vazia.
Ainda assim, decidiu procurar pistas. Entrou no saguão do prédio e subiu as escadas, os passos reboando pelo lugar. Duas vezes, pensou que havia alguém espreitando-o, e até esperou encontrar um rosto assustador ao pé da escada ao virar-se; não havia ninguém ali, contudo, e concluiu que era apenas sua mente tensa e paranóica tentando enganá-lo criando imagens mirabolantes. Balançando a cabeça para afastar os pensamentos ruins, avançou pelo segundo lance.
Felizmente, o apartamento de Bethany ficava no primeiro andar. Parou na área em que havia os quatro apartamentos e caminhou até o da amiga. Ergueu o punho fechado para bater, mas pensou melhor. Tinha a nítida certeza de que não encontraria ninguém.
Teve uma primeira pista: o jornal do dia estava enrolado no capacho; pelo visto, Bethany saíra antes da entrega e não retornara.
Ainda com a mente nessas conclusões relativas à cronologia, teve um sobressalto com um ruído no apartamento vizinho; era um ruído estranho, arrastado. E parecia haver um
(gemido?)
outro contínuo, emitido por cordas vocais...
Samuel guardou silêncio. Notou, então, que a porta desse vizinho encostada... e que o ruído parecia se aproximar... e à medida que se aproximava, um mau pressentimento invadiu o rapaz.
Assim, levou a chave à maçaneta e abriu a porta com um clique. Entrou, fechando a porta atrás de si, o jornal novo à mão; estava em um mini-hall com a sala à frente e uma porta aberta à direita que levava à cozinha. Esta estava organizada, com um copo sujo e a louça limpa e guardada. Avançando um pouco mais, entrou na sala pequena e aconchegante - tudo parecia estar no lugar, razoavelmente organizado. O jornal do dia anterior estava espalhado no sofá maior, e controle da televisão estava largado em outro. O telefone estava em uma mesinha apropriada ao lado da poltrona; uma luzinha vermelha indicava que havia ligações não-atendidas. O rapaz deu dois passos até ela e apertou o botão para ouvi-las, largando o jornal que encontrara na entrada na mesinha de centro.

- Alô, Bethany, é o Samuel. - disse a primeira gravação - Escute, eu queria falar com você para confirmar a ida à casa da sua irmã... você não atende o celular, então liguei para sua casa... ok? Gostaria que entrasse comigo assim que puder. Beijos.
Sua voz ao telefone era muito formal, pensou o rapaz, enquanto raciocinava. Havia outra mensagem. Uma voz masculina e familiar, um pouco zangada, perguntava:
- Bethany, por onde você anda? - e desligara sem mais informações.
Conhecia aquela voz, tinha certeza... olhou ao redor, fixando algumas fotos na console, e deparou com uma que ele mesmo batera, de um trio que incluía um rapaz de cabelos cacheados que abraçava Bethany e uma mulher loura pelos ombros, os três sorridentes em uma festa...
"Tira uma nossa, Allen", dissera um bêbado William Hoffman, "Eu com minha irmã de um lado e a mulher da minha vida do outro... faltam a minha mãe e a Mary, mas elas não puderam vir, então vai ter que ser assim, companheiro!"
Era a voz de William Hoffman! Embora bem menos alegre e mais aborrecida.
Olhou para a secretária. A ligação fora efetuada alguns minutos após Samuel combinar a saída com Bethany... o que acontecera nesse meio tempo que a impedira de atender o celular? As coisas importantes que ela tinha de fazer "para encontrar com ele e Phil a tempo"?
"Bethany, por onde você anda?"
Bethany era independente e defendia sua liberdade com unhas e dentes. Contudo, era diplomática e correta o suficiente para não deixar ninguém na mão, e se até o igualmente independente Hoffman estava atrás dela, e parecia um pouco nervoso, então algo estava decididamente fora do lugar.
Avançou pelo corredor, passando reto pelo banheiro e foi até o quarto da garota. Ele também não tinha nada de errado; o computador estava desligado, a janela aberta e... o rapaz franziu a testa.
Fosse porque estava decidido a encontrar algo estranho, fosse porque realmente era um fato estranho, a cama de Bethany estava arrumada, embora a parte do cobertor próxima ao travesseiro estivesse na posição de alguém que ia se deitar. E as pantufas estavam de qualquer jeito ao lado da cama, indicando pressa.
Não, estava ficando paranóico. Uma cama semi-arrumada e pantufas espalhadas não indicavam coisíssima nenhuma. Tinha que parar com isso. Não havia nada de errado ali, no apartamento de Bethany.
Decidido a visitar o local de trabalho da amiga, o rapaz suspirou, resignado, e afastou-se, de costas, ainda olhando para o quarto. Quando seus olhos detiveram-se novamente nas pantufas, notou algo que não notara até então. Foi quando percebeu uma movimentação às suas costas e um ruído estrangulado.