Eram dez horas da manhã quando o apresentador do telejornal local Samuel Allen finalmente deu-se por dispensado do estúdio do Canal 7 de Raccoon City. Passara as últimas horas apresentando a parte matutina do programa e trocando informações com seus colegas de profissão.
Tratava-se de um rapaz de estatura mediana, cabelos negros e curtos e óculos de aros finos. Seu rosto seria jovial demais para um jovem que estava muito próximo da casa dos trinta anos, não fosse pela barba rala que, por vezes, cultivava. Embora tivesse apenas 27 anos, já se graduara em dois cursos - Ciências Sociais e Jornalismo. Responsável e polido, sempre fora muito maduro para a idade e bem comunicativo, embora passasse um bom tempo em silêncio, observando os acontecimentos ao seu redor.
Após horas exercendo a comunicação, sua especialidade, o prodigioso jornalista estava saindo de seu prédio de trabalho quando alguém esbarrou nele - o freelance Zack Everett, um universitário um tanto quanto alegre.
- Opa, Everett...
Everett fixou nele os olhos arregalados e empolgados, a câmera fotográfica ainda balançando no pescoço.
- Foi mal, Allen! Cara, tenho certeza de que minhas imagens serão capa do jornal vespertino!
Samuel sorriu. Tanto o telejornal quanto o único jornal escrito da cidade pertenciam à mesma companhia, e esta era patrocinada por ninguém menos que a Umbrella Corporation. Não era um jovem simplório; repudiava o monopólio que a aquela empresa exercia, e tinha perfeita consciência, como jornalista e cidadão, de que a presença de somente uma fonte de informação tornava qualquer notícia duvidosa. Sabia perfeitamente que a intenção da Umbrella era, além de conquistar a diretoria da imprensa, manipular as informações de modo a apresentar uma boa imagem de sua corporação à população.
Por isso, aceitara trabalhar no estúdio. As informações eram modificadas lá, de modo que Samuel poderia ter acesso às verdadeiras e ver em que ponto foram modificadas e, se possível, contar o que fosse verídico sem ser prejudicado.
- Beleza, cara - disse Allen - E que imagens são essas?
- Preciso ver o Wood!
- Calma - retorquiu Samuel, sorrindo agradavelmente - Você quer uma tiragem no jornal, certo? Se me mostrar e se forem boas, posso garanti-las no telejornal vespertino.
Zack Everett encarou seu interlocutor; sabia que este não blefava. Samuel Allen era o apresentador do telejornal e um homem muito influente.
- Certo - concordou, sorrindo - Saca só, cara...
Ele retirou algumas fotos do bolso interno da jaqueta e mostrou-as; os dois jovens curvaram as cabeças para vê-las.
A primeira foto era chocante; mostrava uma senhora sentada na grama, ao lado de um banco de praça, com as vestes ensangüentadas; ao seu lado, dois policiais igualmente feridos tentavam socorrê-la; um terceiro policial, ileso, estava curvado sobre um doberman deitado, aparentemente inconsciente e muito ferido. Um outro cachorro, pastor alemão, jazia também na grama e - o estômago de Samuel embrulhou - restos de sua cabeça estavam espalhados pelo manto verde. Um homem em pé, civil e também ileso, embora sujo de terra, observava a cena. Várias pessoas, todas assustadas, cercavam o grupo; algumas fotografavam a cena.
- Esta eu tirei hoje de manhã, no parque... um cachorro atacou uma velhinha e o dono não soube dizer o que aconteceu... três policiais apareceram com o doberman, que atacou o pastor... o pastor matou o animal e atacou os policais que tentavam contê-lo, então aquele policial ali, o dono do doberman, atirou nele...
Allen continuou a olhar para a foto, chocado.
- Tudo culpa do pastor?
- Sim... cara, nem Stephen King faria uma coisa dessas! Acho que o pastor estava com hidrofobia... nem aquele São Bernardo do King foi tão...
Everett era fanático pelos contos de Stephen King. Samuel, porém, não gostou da comparação.
- King é ficção. Isso é realidade, e é... terrível.
- Calma, tem mais, saca só essas outras...
A segunda foto também continha policiais e civis; dois policiais empenhavam-se em conter um homem pálido de vestes empapadas de sangue, que urrava, enlouquecido, tentando se soltar; dois homens igualmente feridos pareciam indignados e dirigiam-se a um terceiro policial, que tomava notas em seu bloco. Pareciam agressivos, também, mas, a julgar pelo fato de estarem soltos, não apresentavam perigo.
- E esta?
- Um cara foi atravessar a rua sem olhar para o sinal; um dos motoristas, tentando se desviar dele, bateu no outro carro; os dois saíram para tomar satisfações com o sujeito e ele simplesmente atacou um deles, e atacou o outro quando este tentou segurá-lo. Alguém chamou a polícia.
- Atacou? Partiu pra porrada?
- Ele os mordeu.
Samuel deu uma risadinha nervosa.
- Mordeu?!
- É. Um lunático, Allen, simplesmente agarrou o pescoço deles e mordeu... arrancou pedaço, foi o que disseram.
- Um vampiro à solta?
- À luz do dia? Pouco provável. Prefiro o Aviador Noturno.
Samuel riu pelo nariz e viu a última foto. Era a mais chocante de todas; na sala de uma casa comum, uma mulher estava caída no chão, o rosto descorado e os olhos abertos, sem viço; suas vestes estavam vermelhas e, em pé, ao lado dela, dois policiais tentavam conter um homem louco, de aspecto semelhante ao da segunda foto, e um homem aparentemente civil, segurava pelas axilas uma menininha de uns oito anos; pálida como o homem, com o lado direito do pescoço e dos ombros ensangüentados, gritava a plenos pulmões, exibindo os dentinhos amarelos.
- O que é isso? - perguntou Allen, impressionado.
- Um vizinho ouviu gritos e contatou a polícia... quando chegaram lá, pai e filha estavam devorando as vísceras da mãe. Quando viram os policiais e o vizinho, os dois tentaram atacá-los, mas foram contidos.
- E como você soube?
- Eu sou amigo do vizinho e estava na casa dele quando aconteceu.
- Ouviu os gritos?
- Sim... - respondeu o rapaz, sério - Horríveis... o Mark ouviu primeiro a garotinha gritar, mais cedo, achou que fosse normal, ela tivesse aprontado e levado algumas... gritou e se calou. Horas depois, a mãe voltou e também gritou. Foi horrível, cara, ela não parava de gritar "o que há com vocês? Penny, Penny, venha! Penny, o que você tem?"... horrível, cara.
Samuel empurrou as fotos para Everett, enojado. Chocado.
- Vá procurar o Wood. Depois vejo com a turma se vamos colocá-las no telejornal também.
- Beleza, Allen! Valeu, mesmo, até mais! - e o rapaz saiu ligeiro.
Samuel viu-o sumir no corredor; inspirou profundamente e saiu do prédio, passando pelos degraus de entrada e desviando-se das pessoas.
Arrependia-se de ter pedido para ver as fotos. Por que não deixara Everett seguir viagem com aqueles flagras macabros? Por que tivera a santa curiosidade de interrogá-lo? Por que diabos fora Everett esbarrar nele?
Aquelas fotos eram medonhas... a velhinha estirada na grama... os homens feridos... os miolos do pastor na grama... pai e filha unidos em um gesto de canibalismo, devorando as entranhas da mãe...
O que estava acontecendo com o mundo?
Ia tomar um café rápido e falar com um colega em uma breve troca de informações. Aproveitaria para buscar um livro que reservara na semana anterior e faria compras no supermercado. Ainda estava deveras impressionado com as fotos quando consultou o relógio e viu que eram dez e doze da manhã.
Ao meio-dia, almoçaria, mas não gostaria de fazê-lo sozinho. Precisava distrair-se; aquelas fotos não lhe saíam da cabeça. Tomado por uma súbita inspiração, parou na calçada, apanhou o celular e discou um número.
- Isso aí, Bethany... - disse baixinho, enquanto esperava a chamada ser atendida.
Em algum lugar de Raccoon City, em um edifício comum de departamentos, no nono andar, em uma salinha discreta de propriedade desconhecida, uma jovem engenheira era tomada por um pânico sem tamanho. Não sabia o que lhe aconteceria, apenas que não tinha forças para passar por três homens adultos.
- Estamos todos decepcionados com o seu comportamento, Srta. Yenne - disse o Dr. Harker, em um tom falsamente paternal - A Umbrella a recebeu de braços abertos. Mal havia terminado o seu mestrado e nós lhe concedemos liberdade de atuação e um ótimo pagamento. A senhorita escolheu seu campo de trabalho, fixou o seu horário, e tudo com uma gorda recompensa. É assim que nos agradece? Espalhando boatos maldosos de nossa corporação para os seus amiguinhos?
Boatos maldosos? O lado irônico de Bethany não deixou de sorrir por dentro; se realmente não houvesse verdade no que ela dissera, para começar, não estaria ali, visivelmente sendo vítima de um seqüestro. Se fizeram aquilo, era porque ela, Bethany, criara algum risco à corporação, e com certeza não se tratava de meros "boatos maldosos".
- Então - ela disse - Demita-me. Eu assino qualquer documento afirmando que eu menti, se for o caso.
Sim, pensou, assinaria, avisaria seus amigos de algum jeito do perigo e cairia fora da cidade. E Carlos e Erek... a garota estremeceu. O que lhes acontecera? Estariam vivos?
Dr. Harker riu. Foi uma risada seca, sem alegria; seus olhos, contudo, brilhavam com mais fervor, e de uma maneira que Bethany não gostou.
- Não será preciso assinar nada, srta. Yenne. - respondeu o homem, os olhos cheios de malícia - Nem mesmo a sua carta de demissão.
A jovem engenheira engoliu em seco. Podia ler nos olhos de Harker. Suspeitava
(com toda a certeza)
que não sairia viva dali. Não era apenas uma conclusão tirada em meio ao pânico. Bethany estava lúcida. Apesar de toda aquela formalidade - três homens engravatados em um escritório, membros de uma rica empresa -, sentia que o final seria brutal. Como
(teria sido para Carlos e Erek?)
se tudo não passasse de um acordo, uma relação de causa e efeito... ok, Bethany Yenne, você infringiu o contrato, pisou um dedo fora da linha, começou a espalhar verdades indesejáveis... você acaba de se tornar uma indesejável e, lamentavelmente, deve ser eliminada. Vamos acabar logo com isso, senhores,
(como acabaram com Carlos e Erek)
temos muito a fazer, um acidente para solucionar.
Um ruído.
Um tiro? Não.
Não havia armas à vista.
Era apenas o celular de Harker. Ele levou-o ao ouvido, ainda mantendo os olhos em Bethany.
- Ótimo. Faça isso. - disse simplesmente, desligando o aparelhinho em seguida e embolsando-o - Parece que encontraram o seu amigo William - acrescentou ele para Bethany, com um sorriso leve e maldoso - Pobre rapaz, andou ouvindo muitas bobagens suas...
O estômago de Bethany despencou; pegaram Will! E a culpa era dela.
Ele se juntaria a Carlos e Erek...
... por culpa dela!
Outro ruído - uma música!
- É o celular dela, senhor. - disse um dos homens.
Só então Bethany notou que, de fato, era o seu celular. Ela olhou para o Dr. Harker, hesitante. Ele sorriu, piscando lentamente.
- Não seja grosseira, srta. Yenne. Atenda.
Com as mãos trêmulas, Bethany pegou o celular e levou-o ao ouvido.
- Oi. - sabia que era Samuel Allen, mas não se atreveria a dizer o nome do rapaz diante daqueles homens.
- Oi, Bethany... escute, que tal se fôssemos almoçar hoje? Eu tenho a tarde toda livre, mas sei que você trabalha, então poderíamos aproveitar o almoço... que acha?
- Ah, S... é que eu - a garota olhou para Dr. Harker, que acenou afirmativamente com a cabeça - eu preciso tomar conta do Phillip... estou indo para a casa dele agora, você sabe onde fica, né? A mãe dele vai passar o dia fora, e eu preciso ficar com ele... por que não vem comigo?
- Esse convite veio em boa hora... preciso mesmo me distrair. Você está indo para lá?
- Eu ia na hora do almoço, mas vou me atrasar um pouco; você poderia ir na frente e avisar a Rachel que eu vou me atrasar? Você ficaria com o Phil por uma horinha e então eu chegaria...
Phillip era um dos sobrinhos de Bethany; tinha três anos e morava na cidade vizinha, Saint Catherine, a duas horas dali de carro. Bethany queria tirar Samuel da cidade, e não encontrara outro jeito que não fosse aquele. Era verdade que tinha combinado de ficar com Phillip à tarde, mas seria por dois dias, e não uma tarde só; sabia que, se dissesse a Samuel toda a verdade - se Harker não lhe tomasse o celular, claro - a vida do amigo estaria em risco como a dos outros. Sabia que, se começasse a dizer a verdade e, de repente, o telefone ficasse mudo, Samuel desconfiaria de algo, contudo sua vida também estaria em jogo. Aquele jovem, como Erek, nunca gostara da Umbrella, porém, ao contrário deste, que defendia a tese de que a corporação produzia fórmulas ilícitas, aquele argumentava que Umbrella não precisava apelar para práticas ilegais para conseguir ser suja e desprezível. Normalmente, o exemplo que citava eram os monopólios.
- Esta cidade - costumava dizer - é o quintal da Umbrella, apenas isso. Qualquer instituição que você encontrar por aqui é fachada. É tudo Umbrella, Umbrella e Umbrella.
Se Samuel fosse para Saint Catherine, esperaria por ela, Bethany. A mãe da criança, que já conhecia o rapaz, viajaria... claro que, uma hora, ele ia notar tanto a demora de Bethany quanto da mãe, mas o que poderia fazer? Teria de esperar pelo retorno da mãe da criança, que não lhe daria o número do próprio celular porque o esperado seria que ela, Bethany, aparecesse, e Bethany possuía o número... assim, Samuel ficaria, obrigatoriamente, dois dias inteiros com o garoto, pois ele não poderia sair daquela cidade e deixar Phillip, e tampouco poderia levá-lo sem avisar a mãe... talvez efetuasse algumas ligações, tentasse saber o que acontecera com ela, Bethany
(que talvez já nem estivesse mais ali)
e se salvaria do acidente
(não, ela definitivamente não estaria ali)
que Judy tanto temia. Pobre Judy... como estaria? Ela fora tão clara, e só agora Bethany compreendia! Judy não dissera para sair avisando as pessoas, só para... sair da cidade. Em vez de dar bandeira e colocar a vida dos amigos em Jogo, Bethany poderia ter bolado um plano para tirá-los da cidade sem, necessariamente, dizer a verdade antes do tempo...
Mas não. Fizera tudo errado. Mas pelo menos um seria salvo: Samuel.
- Claro, Bethany. - respondeu Samuel do outro lado da linha - Posso ir, sim.
- Estamos combinados, então?
- Sim.
Era a despedida. Bethany teve vontade de dizer algo mais, uma última vez, mas percebeu, pelo olhar voraz, quase faminto do Dr. Harker, que parecia ler seus pensamentos, que era melhor não falar nada, ou atrairia muito a atenção do rapaz. E, naquele momento, a segurança dele era muito mais importante. Quanto menos ele desconfiasse, maiores as chances de sobreviver àquele dia.
- Bethany?
A moça engoliu em seco.
- Sim?
- Gostaria de dizer alguma coisa?
Sim. Samuel, eles me pegaram, as pessoas da Umbrella, sinto que não me resta muito tempo após o término desta ligação, e a única que quero é que você vá para mais longe possível. Ao final deste telefonema, é provável que não mais nos falemos, portanto, é melhor você se apressar. Já pegaram Carlos, Erek e William. Você tem que fugir. Foi bom ser sua amiga.
- Não. - disse Bethany - Bem, agora tenho que desligar... um relatório imenso para terminar
(e que não terminaria)
projetos para coordenar
(se estivesse viva para tal)
e outras coisas... preciso apressar, já que temos um encontro, certo?
- Certo, srta. Bethany. - disse o outro naquela formalidade simpática e sutilmente brincalhona - Bom trabalho e um bom dia para você!
- Para você também.
Fim. Vagarosamente, Bethany abaixou a mão direita com o celular desligado, os olhos ainda no Dr. Harker. Seus olhos pareciam prestes a transbordar, e precisou de muita força de vontade para se manter firme. Parte dela queria implorar para sair dali; a outra parte sentia tanto nojo daquele homem, que se sentia no direito de atirar para o ralo vidas inocentes para obter silêncio em nome do lucro com suas práticas ilícitas.
- É incrível - disse Harker - como alguns trabalhadores só fazem o serviço direito quando estamos de olho neles, não é mesmo, srta. Yenne?
Agora as lágrimas queriam descer, mas de raiva e não de medo.
- O que fez com Carlos e Erek? - perguntou Bethany, crispando os lábios.
- Estão em boas mãos. - respondeu o outro simplesmente - Logo, não precisará mais se preocupar, portanto, poupe o seu tempo. E gostaria também que não começasse a gritar; isto certamente colocaria em risco a vida de Hoffman.
Bethany engoliu em seco.
- E como posso garantir que ele continuará vivo mesmo que eu não grite?
- Não é garantia, é matemática, srta. Yenne. Probabilidade, já estudou? Basicamente, se a senhorita gritar, ele com certeza morre. Se não gritar, há cinqüenta por cento de chance de ele não morrer.
Como Bethany permancesse em silêncio, Harker continuou:
- Gostaria de fazer um último pedido, antes que eu me retire desta sala?
Os braços da engenheira, de cada lado do corpo, tremiam; a moça, apertando os olhos de raiva, apenas cuspiu, acertando em cheio o homem. Ele fez uma careta e limpou o rosto com a manga do casaco. Os dois ajudantes de Harker mexeram-se, ligeiramente inquietos.
- Vejo que não. - disse Harker com simplicidade e, virando-se para os homens, acrescentou, acenando levemente com a cabeça - Cuidem dela. - e virou-se para se retirar, abrindo a porta.
Tudo o que aconteceu em seguida foi em uma fração de segundo; no momento em que o doutor colocou a mão sobre a maçaneta, os dois indivíduos que ladeavam Bethany estenderam a mão para segurá-la. Antes que o fizessem, porém, a garota abaixou-se e pulou, colocando-se lado a lado com Harker, ainda abaixada; em seguida, golpeou o homem com uma cotovelada entre as pernas e abriu a porta com força. Sentiu mãos agarrarem seu jaleco, mas se atirou com tal ímpeto para fora da sala que conseguiu se livrar, caindo no meio de um corredor apinhado de pessoas que se assustaram com sua repentina aparição. Em seguida, equilibrando-se antes para não cair, precipitou-se corredor afora, sem definir rumo, desejando apenas abrir a maior distância possível entre ela e seus captores. Colidia com pessoas sem ver seus rosto, e chegou a fazer alguém atirar para o alto uma pilha de papéis, criando uma chuva de folhas pelo local.
Ouvia passos apressados atrás, e continuou a se meter por corredores brancos e sóbrios e, quando sentiu que os estava despistando com sua agilidade reforçada pela baixa estatura e pouco peso, forçou uma porta que, milagrosamente, estava aberta, e precipitou-se por ela como se sua vida dependesse disso
(e dependia)
pronta para resistir até não ter forças.
Entrou em um lugar escuro, fechando a porta atrás de si, e tateou na parede em uma busca frenética por algum interruptor; não lhe ocorreu apenas olhar até encontrar a luz esverdeada do botão. Ao encontrá-lo, apertou-o; uma lâmpada fraca acendeu-se, revelando uma escada escura, estreita e íngreme que levava aos andares superiores e inferiores.
Pensando rápido, achou que era melhor subir, pois o óbvio seria descer; assim sendo, correu para o décimo patamar e, quando saiu das escadarias para um corredor com poucas pessoas, ouviu uma porta abrir-se no andar inferior.
No corredor, virou à direita, desembocando em um deserto; nele havia uma espécie de portinhola de metal a um canto. Desesperadamente, Bethany enfiou os dedos em dois orifícios no alto que deviam pertencer a uma maçaneta que não estava ali e puxou-o; a porta se abriu, formando uma espécie de prateleira e revelando um armário de vassouras, e a jovem entrou, selando a entrada atrás de si. Quando foi se endireitar, ajoelhada e encurvada, bateu a cabeça no teto de concreto e, sentindo uma dor excruciante, mergulhou na completa escuridão.
Já passavam das dez horas quando um homem de roupas escuras e chapéu, de cigarro na boca e ares de pouco caso, saiu do campo de tiro. Parou à porta dele apenas para acender o cigarro com seu isqueiro prateado, seguindo viagem logo depois. Andou tranqüilamente como se apreciasse o fato de poder fazê-lo até o seu jipe. Apesar do tempo ameno, o sol já estava começando a se revelar, de modo que colocou os óculos escuros antes de ligar o carro e partiu.
Decidindo repentinamente tomar uma dose no primeiro bar que visse, tragou o cigarro e estacionou poucos minutos depois diante de uma lanchonete.
O lugar, todo amarelo e vermelho, com mesinhas juntos à vitrine e um balcão comprido ao fundo, estava lotado porque era a hora do brunch, de modo que William precisou lutar contra o trânsito de fregueses e garçons para chegar até o balcão, onde sequer pôde se sentar; todos os lugares estavam lotados. A acústica do local fazia as conversas ecoarem de tal forma que Hoffman sentia-se em um galinheiro; em algum lugar no alto, uma televisão transmitia os programas locais como se falasse sozinha, pois ninguém lhe dava atenção.
- Ei, amigo - disse William, levantando uma mão rapidamente ao avistar um garçom - Duas cervejas geladas.
O garçom ergueu o polegar indicando que havia entendido e afastou-se; William desejou ter pedido duas latinhas para não precisar tomar naquele lugar infernalmente lotado e barulhento. Entretanto, sendo paciente e distraído, apoiou os braços no balcão, ainda de óculos escuros, tamborilando o mármore frio com os dedos, e aguardou, a mente chegando à sua casa.
A lanchonete servia almoço também; a pessoa fazia um pedido e algum atendente, por trás do balcão, servia o prato com a comida disposta em várias terrinas; o móvel que as continha era espelhado, de modo que William podia olhar para a rua atrás de si sem se voltar.
Estava a olhar no espelho aquele jovem de óculos e chapéu quando alguém colocou um cinzeiro à sua frente.
- Por favor - disse a garçonete - é proibido fumar aqui.
William ergueu uma das sobrancelhas para a mocinha, retirou calmamente o cigarro da boca e, ainda encarando-a, apagou-o no cinzeiro, neutro e inexpressivo, como alguém que pergunta "satisfeita"?
- Obrigada. - disse ela, afastando-se.
William deslizou a mão por cima do lábio superior, como se quisesse enxugar algum suor inexistente e aguardou, voltando, sem notar, sua atenção para a sua imagem refletida três metros à frente.
Súbito, algo chamou sua atenção; dois homens altos e fortes, um negro e careca e outro louro e barbudo, entraram na lanchonete. Olharam cada um para um lado e, em seguida, para o rapaz, que se sobressaltou.
Estariam mesmo olhando para ele?
Um deles levou um celular ao ouvido e disse algo, ainda sem tirar os olhos do rapaz. Em seguida, guardou o aparelho.
Os homens não trocaram nenhum olhar, nenhuma palavra; simplesmente avançaram lentamente até ele, impedidos pela maré de pessoas que andava por todos os lados. Com uma das mãos na testa, levemente encurvado sobre o balcão, debruçado, William aguardou. Parecia distraído, até mesmo entediado, mas olhava atentamente para os homens, que continuavam a se aproximar. E olhavam fixamente para ele.
Não eram bons atores.
E também não pareciam estar de brincadeira.
Talvez o requisitassem como advogado? Assuntos importantes? Ações mirabolantes?
Mas a questão era: como o haviam encontrado?
William tinha um escritório, telefonema para contato. Sequer permitia que telefonassem para sua residência; como o encontraram?
Com o rabo dos olhos, espiou; os homens continuavam a se aproximar...
Quando um deles, o mais próximo, inclinou os braços para passar por uma pessoa qualquer, algo brilhou em sua cintura.
Um revólver.
William, na mesma posição de disfarçada embriaguez, ou quem sabe simples enxaqueca, só teve tempo para reconhecer o modelo da arma antes de pensar na ação; vislumbrou em segundos tudo o que precisava.
Uma mulher passando logo atrás, à esquerda, acompanhada de um homem.
Um rapaz logo atrás.
Um banco alto ao seu lado, ocupado por um sujeito obeso.
O balcão.
Tudo o que aconteceu em seguida pareceu correr em câmera lenta, mais até que a aproximação dos homens; William, rápido como o relâmpago, apertou com força as nádegas da mulher atrás, que passava sem vê-lo. Em seguida, voltou a olhar para frente em tempo de ouvir a moça dar um tapa no rapaz e o seu acompanhante exclamar:
- Perdeu amor à vida, fedelho?
William apoiou um pé no balcão ao lado e impulsionou-se para cima, mergulhando para trás do balcão em tempo de ouvir um grito frustrado; em seguida, correu abaixado, protegido pelo balcão.
Gritos ecoavam acima de sua cabeça; pessoas que haviam visto a cena, exclamavam, excitadas; Hoffman não se atentou a nada disso. Precipitou-se por uma porta de vai-e-vem que, tinha certeza, era acessível apenas para empregados e fechou a porta atrás de si.
Deparou com uma cozinha mergulhada em vapor de panela quente. Várias pessoas cozinhavam e gritavam instruções umas às outras, trajando vests brancas. O rapaz achou que o melhor era correr.
Correu em linha reta, esquivando-se de poucas pessoas no caminho; abriu uma porta, deparando com uma despensa sem saída; fechou-a e continuou a correr, encontrando, por fim, uma porta que levava à rua. Esquivando-se de um amontoado de lixo da lanchonete, virou à direita na primeira oportunidade, desembocando em uma rua perpendicular à que estacionara. Reconheceu, enquanto corria, o ruído de gatilho pressionado e atirou-se para atrás de uma lata de lixo bem a tempo de ouvir uma bala passar zunindo por cima de sua cabeça.
Sem se voltar, abaixado, desengonçado, correu até virar à direita novamente, deparando com seu jipe a pouco mais de vinte metros. Ainda ouvia passos atrás de si.
A rua estava movimentada; pessoas haviam parado ver o que estava acontecendo e, dentro da lanchonete, algumas espiavam pela vitrine. Talvez por sorte, quem sabe, mais tiros foram disparados, errando o alvo. William atirou-se em seu jipe, ligando-o; o automóvel respondeu com um forte ronco. Um tiro acertou a lataria.
Hoffman acelerou e, quanto esticou o corpo para trás, um crucifixo grande tornou-se visível em suas vestes.
- É, cara - disse ele, lançando um olhar rápido para o céu - Acho que você fez Murphy dizer "só dessa vez", parceiro.
Tateou à procura de um cigarro; encontrando-o, meteu-o na boca, sorrindo, satisfeito com o sucesso da fuga. Foi quando, pelo retrovisor, viu um carro negro correr em disparada em sua direção. William estava a meio gesto de acender seu cigarro com o isqueiro quando um movimento brusco do carro obrigou-o a mudar a marcha do jipe. Levou novamente a mão à boca, pronto para acender o isqueiro quando o carro negro emparelhou com o dele, obrigando o texano a virar à direita para evitar ser baleado.
Entrou em uma rua estreita, vazia, e virou à esquerda na primeira oportunidade; arrependeu-se. O carro negro o esperava do outro lado, de modo que emparelharam novamente. O homem louro, que não dirigia, atirou, e William, que de novo tentava acender o cigarro, interrompeu novamente o gesto para abaixar a cabeça, quase colidindo com o volante.
- Desgraçados! - praguejou, acelerando - Me deixem acender essa merda!
O outro carro emparelhou novamente.
- Sr. Hoffman! - gritou um dos homens - Pare o carro e ninguém sairá machucado!
William sorriu, o cigarro apagado no canto da boca.
- Nada feito, filho. - e acendeu o isqueiro.
Como o louro apontasse novamente o revólver, William, que acabara de cruzar uma esquina, deu marcha à ré e virou à direita, adiando, novamente, o uso do isqueiro. Desta vez, avanaçou por duas ruas e, quando se deu conta que fora na contramão, virou à direita para corrigir-se, entrando em uma rua mais movimentada. Deixara o carro preto para trás quando entrara em uma rua, fechando um carro à sua direita, que, por sua vez, por não parar a tempo, fechara o carro dos perseguidores.
William tinha um forte pressentimento com relação àquela perseguição. Aqueles homens, para quem trabalhavam? Para algum assassino que botara na cadeia?
Não... com a chegada dos S.T.A.R.S alguns anos antes, muitos bandidos foram presos em flagrante, e a criminalidade diminuíra exponencialmente desde então.
Aqueles homens não pareciam se importar em matá-lo, notara isso. E se queriam matá-lo, era porque ele, William Hoffman, era algum empecilho.
Por alguma razão, o rosto assustado de Bethany invadia sua mente junto com os documentos da Umbrella.
Bem, se ela se deixava levar por uma conversinha com a tal Judith, ainda bem que não se tornara advogada da corporação... Erek, então, nem se poderia falar; paranóico com a Umbrella, provavelmente apanharia aqueles documentos e o levaria à imprensa.
E por falar em imprensa, avistou o prédio do Canal Raccoon 7, em uma avenida ensolarada. E agora, o que faria?
Aqueles homens seriam mesmo da Umbrella?
Se voltasse para casa, estariam lá, talvez usando Alice como refém?
Bem, seu lado frio e racional informou-lhe que nada aconteceria a Alice e a Maryane se ninguém soubesse o paradeiro dele. Não tinham por que matá-las; não se o quisessem.
Mas que era uma coincidência muito grande enfrentar uma perseguição com direito a tiroteio após uma conversa alarmante com Bethany, era. Especialmente envolvendo uma jovem que dissera todas aquelas coisas a ela.
Acendeu finalmente o cigarro.
Não duvidava que Judith Palttrow trabalhasse na Umbrella. E se ela dissera aquilo a Bethany... bom, talvez houvesse descoberto algo que a assustara.
Contudo, ainda havia um sinistro elo entre os dois acontecimentos. Paranóia de Palttrow transmitida para Bethany, a Bethany que sempre gostara da Umbrella, que sempre a defendera de Erek, a Umbrella que agora a assustava... e Bethany não era exatamente o tipo que se deixava levar por qualquer conversa. Não confiava muito nas pessoas, não era uma jovem tão ingênua.
E aqueles homens...
Entrou em um beco e parou o carro, lançando olhares furtivos para se assegurar de que não fora seguido. Improvisando um plano, apanhou o celular e discou um número. A chamada durou até cair na caixa postal. Discou, então, outro número. Caiu na secretária eletrônica.
- Bethany, por onde você anda? - perguntou.
Discou outro número.
- Fala, Bata - disse a alegre voz do brasileiro Cássio.
- E aí, chinelo - falou William, descontraído - queria falar com a Bethany, não sei por que ela tem celular, nem atende a ligação...
- A Bethany - repetiu Cássio - Ela saiu às nove e pouco, estava toda apressadinha.
- Sim, ela esteve comigo... daí não voltou mais?
- Não, deve estar fazendo hora.
- Certo, cara... ela não disse nada sobre?
- Nadinha.
- Valeu então, cara. Te cuida.
- Você também. Falou, Bata.
- Falou.
William desligou e suspirou. Nada de nenhum de seus amigos... se fosse Bethany, o que teria feito? Provavelmente, não teria demorado tanto tempo para agir... teria ela falado com alguém antes dele?
Carlos ou Erek. Isso era fato. Especialmente Erek, que com certeza a teria apoiado.
Contudo, Erek não atendia ao telefonema. Estaria dormindo, assim como Carlos?
Precisava ir até a casa deles checar, mas e se caísse em uma cilada?
Ligando novamente o carro, saiu do beco, as perguntas se formando em sua cabeça, todas sem respostas.
- Esta cidade - costumava dizer - é o quintal da Umbrella, apenas isso. Qualquer instituição que você encontrar por aqui é fachada. É tudo Umbrella, Umbrella e Umbrella.
Se Samuel fosse para Saint Catherine, esperaria por ela, Bethany. A mãe da criança, que já conhecia o rapaz, viajaria... claro que, uma hora, ele ia notar tanto a demora de Bethany quanto da mãe, mas o que poderia fazer? Teria de esperar pelo retorno da mãe da criança, que não lhe daria o número do próprio celular porque o esperado seria que ela, Bethany, aparecesse, e Bethany possuía o número... assim, Samuel ficaria, obrigatoriamente, dois dias inteiros com o garoto, pois ele não poderia sair daquela cidade e deixar Phillip, e tampouco poderia levá-lo sem avisar a mãe... talvez efetuasse algumas ligações, tentasse saber o que acontecera com ela, Bethany
(que talvez já nem estivesse mais ali)
e se salvaria do acidente
(não, ela definitivamente não estaria ali)
que Judy tanto temia. Pobre Judy... como estaria? Ela fora tão clara, e só agora Bethany compreendia! Judy não dissera para sair avisando as pessoas, só para... sair da cidade. Em vez de dar bandeira e colocar a vida dos amigos em Jogo, Bethany poderia ter bolado um plano para tirá-los da cidade sem, necessariamente, dizer a verdade antes do tempo...
Mas não. Fizera tudo errado. Mas pelo menos um seria salvo: Samuel.
- Claro, Bethany. - respondeu Samuel do outro lado da linha - Posso ir, sim.
- Estamos combinados, então?
- Sim.
Era a despedida. Bethany teve vontade de dizer algo mais, uma última vez, mas percebeu, pelo olhar voraz, quase faminto do Dr. Harker, que parecia ler seus pensamentos, que era melhor não falar nada, ou atrairia muito a atenção do rapaz. E, naquele momento, a segurança dele era muito mais importante. Quanto menos ele desconfiasse, maiores as chances de sobreviver àquele dia.
- Bethany?
A moça engoliu em seco.
- Sim?
- Gostaria de dizer alguma coisa?
Sim. Samuel, eles me pegaram, as pessoas da Umbrella, sinto que não me resta muito tempo após o término desta ligação, e a única que quero é que você vá para mais longe possível. Ao final deste telefonema, é provável que não mais nos falemos, portanto, é melhor você se apressar. Já pegaram Carlos, Erek e William. Você tem que fugir. Foi bom ser sua amiga.
- Não. - disse Bethany - Bem, agora tenho que desligar... um relatório imenso para terminar
(e que não terminaria)
projetos para coordenar
(se estivesse viva para tal)
e outras coisas... preciso apressar, já que temos um encontro, certo?
- Certo, srta. Bethany. - disse o outro naquela formalidade simpática e sutilmente brincalhona - Bom trabalho e um bom dia para você!
- Para você também.
Fim. Vagarosamente, Bethany abaixou a mão direita com o celular desligado, os olhos ainda no Dr. Harker. Seus olhos pareciam prestes a transbordar, e precisou de muita força de vontade para se manter firme. Parte dela queria implorar para sair dali; a outra parte sentia tanto nojo daquele homem, que se sentia no direito de atirar para o ralo vidas inocentes para obter silêncio em nome do lucro com suas práticas ilícitas.
- É incrível - disse Harker - como alguns trabalhadores só fazem o serviço direito quando estamos de olho neles, não é mesmo, srta. Yenne?
Agora as lágrimas queriam descer, mas de raiva e não de medo.
- O que fez com Carlos e Erek? - perguntou Bethany, crispando os lábios.
- Estão em boas mãos. - respondeu o outro simplesmente - Logo, não precisará mais se preocupar, portanto, poupe o seu tempo. E gostaria também que não começasse a gritar; isto certamente colocaria em risco a vida de Hoffman.
Bethany engoliu em seco.
- E como posso garantir que ele continuará vivo mesmo que eu não grite?
- Não é garantia, é matemática, srta. Yenne. Probabilidade, já estudou? Basicamente, se a senhorita gritar, ele com certeza morre. Se não gritar, há cinqüenta por cento de chance de ele não morrer.
Como Bethany permancesse em silêncio, Harker continuou:
- Gostaria de fazer um último pedido, antes que eu me retire desta sala?
Os braços da engenheira, de cada lado do corpo, tremiam; a moça, apertando os olhos de raiva, apenas cuspiu, acertando em cheio o homem. Ele fez uma careta e limpou o rosto com a manga do casaco. Os dois ajudantes de Harker mexeram-se, ligeiramente inquietos.
- Vejo que não. - disse Harker com simplicidade e, virando-se para os homens, acrescentou, acenando levemente com a cabeça - Cuidem dela. - e virou-se para se retirar, abrindo a porta.
Tudo o que aconteceu em seguida foi em uma fração de segundo; no momento em que o doutor colocou a mão sobre a maçaneta, os dois indivíduos que ladeavam Bethany estenderam a mão para segurá-la. Antes que o fizessem, porém, a garota abaixou-se e pulou, colocando-se lado a lado com Harker, ainda abaixada; em seguida, golpeou o homem com uma cotovelada entre as pernas e abriu a porta com força. Sentiu mãos agarrarem seu jaleco, mas se atirou com tal ímpeto para fora da sala que conseguiu se livrar, caindo no meio de um corredor apinhado de pessoas que se assustaram com sua repentina aparição. Em seguida, equilibrando-se antes para não cair, precipitou-se corredor afora, sem definir rumo, desejando apenas abrir a maior distância possível entre ela e seus captores. Colidia com pessoas sem ver seus rosto, e chegou a fazer alguém atirar para o alto uma pilha de papéis, criando uma chuva de folhas pelo local.
Ouvia passos apressados atrás, e continuou a se meter por corredores brancos e sóbrios e, quando sentiu que os estava despistando com sua agilidade reforçada pela baixa estatura e pouco peso, forçou uma porta que, milagrosamente, estava aberta, e precipitou-se por ela como se sua vida dependesse disso
(e dependia)
pronta para resistir até não ter forças.
Entrou em um lugar escuro, fechando a porta atrás de si, e tateou na parede em uma busca frenética por algum interruptor; não lhe ocorreu apenas olhar até encontrar a luz esverdeada do botão. Ao encontrá-lo, apertou-o; uma lâmpada fraca acendeu-se, revelando uma escada escura, estreita e íngreme que levava aos andares superiores e inferiores.
Pensando rápido, achou que era melhor subir, pois o óbvio seria descer; assim sendo, correu para o décimo patamar e, quando saiu das escadarias para um corredor com poucas pessoas, ouviu uma porta abrir-se no andar inferior.
No corredor, virou à direita, desembocando em um deserto; nele havia uma espécie de portinhola de metal a um canto. Desesperadamente, Bethany enfiou os dedos em dois orifícios no alto que deviam pertencer a uma maçaneta que não estava ali e puxou-o; a porta se abriu, formando uma espécie de prateleira e revelando um armário de vassouras, e a jovem entrou, selando a entrada atrás de si. Quando foi se endireitar, ajoelhada e encurvada, bateu a cabeça no teto de concreto e, sentindo uma dor excruciante, mergulhou na completa escuridão.
Já passavam das dez horas quando um homem de roupas escuras e chapéu, de cigarro na boca e ares de pouco caso, saiu do campo de tiro. Parou à porta dele apenas para acender o cigarro com seu isqueiro prateado, seguindo viagem logo depois. Andou tranqüilamente como se apreciasse o fato de poder fazê-lo até o seu jipe. Apesar do tempo ameno, o sol já estava começando a se revelar, de modo que colocou os óculos escuros antes de ligar o carro e partiu.
Decidindo repentinamente tomar uma dose no primeiro bar que visse, tragou o cigarro e estacionou poucos minutos depois diante de uma lanchonete.
O lugar, todo amarelo e vermelho, com mesinhas juntos à vitrine e um balcão comprido ao fundo, estava lotado porque era a hora do brunch, de modo que William precisou lutar contra o trânsito de fregueses e garçons para chegar até o balcão, onde sequer pôde se sentar; todos os lugares estavam lotados. A acústica do local fazia as conversas ecoarem de tal forma que Hoffman sentia-se em um galinheiro; em algum lugar no alto, uma televisão transmitia os programas locais como se falasse sozinha, pois ninguém lhe dava atenção.
- Ei, amigo - disse William, levantando uma mão rapidamente ao avistar um garçom - Duas cervejas geladas.
O garçom ergueu o polegar indicando que havia entendido e afastou-se; William desejou ter pedido duas latinhas para não precisar tomar naquele lugar infernalmente lotado e barulhento. Entretanto, sendo paciente e distraído, apoiou os braços no balcão, ainda de óculos escuros, tamborilando o mármore frio com os dedos, e aguardou, a mente chegando à sua casa.
A lanchonete servia almoço também; a pessoa fazia um pedido e algum atendente, por trás do balcão, servia o prato com a comida disposta em várias terrinas; o móvel que as continha era espelhado, de modo que William podia olhar para a rua atrás de si sem se voltar.
Estava a olhar no espelho aquele jovem de óculos e chapéu quando alguém colocou um cinzeiro à sua frente.
- Por favor - disse a garçonete - é proibido fumar aqui.
William ergueu uma das sobrancelhas para a mocinha, retirou calmamente o cigarro da boca e, ainda encarando-a, apagou-o no cinzeiro, neutro e inexpressivo, como alguém que pergunta "satisfeita"?
- Obrigada. - disse ela, afastando-se.
William deslizou a mão por cima do lábio superior, como se quisesse enxugar algum suor inexistente e aguardou, voltando, sem notar, sua atenção para a sua imagem refletida três metros à frente.
Súbito, algo chamou sua atenção; dois homens altos e fortes, um negro e careca e outro louro e barbudo, entraram na lanchonete. Olharam cada um para um lado e, em seguida, para o rapaz, que se sobressaltou.
Estariam mesmo olhando para ele?
Um deles levou um celular ao ouvido e disse algo, ainda sem tirar os olhos do rapaz. Em seguida, guardou o aparelho.
Os homens não trocaram nenhum olhar, nenhuma palavra; simplesmente avançaram lentamente até ele, impedidos pela maré de pessoas que andava por todos os lados. Com uma das mãos na testa, levemente encurvado sobre o balcão, debruçado, William aguardou. Parecia distraído, até mesmo entediado, mas olhava atentamente para os homens, que continuavam a se aproximar. E olhavam fixamente para ele.
Não eram bons atores.
E também não pareciam estar de brincadeira.
Talvez o requisitassem como advogado? Assuntos importantes? Ações mirabolantes?
Mas a questão era: como o haviam encontrado?
William tinha um escritório, telefonema para contato. Sequer permitia que telefonassem para sua residência; como o encontraram?
Com o rabo dos olhos, espiou; os homens continuavam a se aproximar...
Quando um deles, o mais próximo, inclinou os braços para passar por uma pessoa qualquer, algo brilhou em sua cintura.
Um revólver.
William, na mesma posição de disfarçada embriaguez, ou quem sabe simples enxaqueca, só teve tempo para reconhecer o modelo da arma antes de pensar na ação; vislumbrou em segundos tudo o que precisava.
Uma mulher passando logo atrás, à esquerda, acompanhada de um homem.
Um rapaz logo atrás.
Um banco alto ao seu lado, ocupado por um sujeito obeso.
O balcão.
Tudo o que aconteceu em seguida pareceu correr em câmera lenta, mais até que a aproximação dos homens; William, rápido como o relâmpago, apertou com força as nádegas da mulher atrás, que passava sem vê-lo. Em seguida, voltou a olhar para frente em tempo de ouvir a moça dar um tapa no rapaz e o seu acompanhante exclamar:
- Perdeu amor à vida, fedelho?
William apoiou um pé no balcão ao lado e impulsionou-se para cima, mergulhando para trás do balcão em tempo de ouvir um grito frustrado; em seguida, correu abaixado, protegido pelo balcão.
Gritos ecoavam acima de sua cabeça; pessoas que haviam visto a cena, exclamavam, excitadas; Hoffman não se atentou a nada disso. Precipitou-se por uma porta de vai-e-vem que, tinha certeza, era acessível apenas para empregados e fechou a porta atrás de si.
Deparou com uma cozinha mergulhada em vapor de panela quente. Várias pessoas cozinhavam e gritavam instruções umas às outras, trajando vests brancas. O rapaz achou que o melhor era correr.
Correu em linha reta, esquivando-se de poucas pessoas no caminho; abriu uma porta, deparando com uma despensa sem saída; fechou-a e continuou a correr, encontrando, por fim, uma porta que levava à rua. Esquivando-se de um amontoado de lixo da lanchonete, virou à direita na primeira oportunidade, desembocando em uma rua perpendicular à que estacionara. Reconheceu, enquanto corria, o ruído de gatilho pressionado e atirou-se para atrás de uma lata de lixo bem a tempo de ouvir uma bala passar zunindo por cima de sua cabeça.
Sem se voltar, abaixado, desengonçado, correu até virar à direita novamente, deparando com seu jipe a pouco mais de vinte metros. Ainda ouvia passos atrás de si.
A rua estava movimentada; pessoas haviam parado ver o que estava acontecendo e, dentro da lanchonete, algumas espiavam pela vitrine. Talvez por sorte, quem sabe, mais tiros foram disparados, errando o alvo. William atirou-se em seu jipe, ligando-o; o automóvel respondeu com um forte ronco. Um tiro acertou a lataria.
Hoffman acelerou e, quanto esticou o corpo para trás, um crucifixo grande tornou-se visível em suas vestes.
- É, cara - disse ele, lançando um olhar rápido para o céu - Acho que você fez Murphy dizer "só dessa vez", parceiro.
Tateou à procura de um cigarro; encontrando-o, meteu-o na boca, sorrindo, satisfeito com o sucesso da fuga. Foi quando, pelo retrovisor, viu um carro negro correr em disparada em sua direção. William estava a meio gesto de acender seu cigarro com o isqueiro quando um movimento brusco do carro obrigou-o a mudar a marcha do jipe. Levou novamente a mão à boca, pronto para acender o isqueiro quando o carro negro emparelhou com o dele, obrigando o texano a virar à direita para evitar ser baleado.
Entrou em uma rua estreita, vazia, e virou à esquerda na primeira oportunidade; arrependeu-se. O carro negro o esperava do outro lado, de modo que emparelharam novamente. O homem louro, que não dirigia, atirou, e William, que de novo tentava acender o cigarro, interrompeu novamente o gesto para abaixar a cabeça, quase colidindo com o volante.
- Desgraçados! - praguejou, acelerando - Me deixem acender essa merda!
O outro carro emparelhou novamente.
- Sr. Hoffman! - gritou um dos homens - Pare o carro e ninguém sairá machucado!
William sorriu, o cigarro apagado no canto da boca.
- Nada feito, filho. - e acendeu o isqueiro.
Como o louro apontasse novamente o revólver, William, que acabara de cruzar uma esquina, deu marcha à ré e virou à direita, adiando, novamente, o uso do isqueiro. Desta vez, avanaçou por duas ruas e, quando se deu conta que fora na contramão, virou à direita para corrigir-se, entrando em uma rua mais movimentada. Deixara o carro preto para trás quando entrara em uma rua, fechando um carro à sua direita, que, por sua vez, por não parar a tempo, fechara o carro dos perseguidores.
William tinha um forte pressentimento com relação àquela perseguição. Aqueles homens, para quem trabalhavam? Para algum assassino que botara na cadeia?
Não... com a chegada dos S.T.A.R.S alguns anos antes, muitos bandidos foram presos em flagrante, e a criminalidade diminuíra exponencialmente desde então.
Aqueles homens não pareciam se importar em matá-lo, notara isso. E se queriam matá-lo, era porque ele, William Hoffman, era algum empecilho.
Por alguma razão, o rosto assustado de Bethany invadia sua mente junto com os documentos da Umbrella.
Bem, se ela se deixava levar por uma conversinha com a tal Judith, ainda bem que não se tornara advogada da corporação... Erek, então, nem se poderia falar; paranóico com a Umbrella, provavelmente apanharia aqueles documentos e o levaria à imprensa.
E por falar em imprensa, avistou o prédio do Canal Raccoon 7, em uma avenida ensolarada. E agora, o que faria?
Aqueles homens seriam mesmo da Umbrella?
Se voltasse para casa, estariam lá, talvez usando Alice como refém?
Bem, seu lado frio e racional informou-lhe que nada aconteceria a Alice e a Maryane se ninguém soubesse o paradeiro dele. Não tinham por que matá-las; não se o quisessem.
Mas que era uma coincidência muito grande enfrentar uma perseguição com direito a tiroteio após uma conversa alarmante com Bethany, era. Especialmente envolvendo uma jovem que dissera todas aquelas coisas a ela.
Acendeu finalmente o cigarro.
Não duvidava que Judith Palttrow trabalhasse na Umbrella. E se ela dissera aquilo a Bethany... bom, talvez houvesse descoberto algo que a assustara.
Contudo, ainda havia um sinistro elo entre os dois acontecimentos. Paranóia de Palttrow transmitida para Bethany, a Bethany que sempre gostara da Umbrella, que sempre a defendera de Erek, a Umbrella que agora a assustava... e Bethany não era exatamente o tipo que se deixava levar por qualquer conversa. Não confiava muito nas pessoas, não era uma jovem tão ingênua.
E aqueles homens...
Entrou em um beco e parou o carro, lançando olhares furtivos para se assegurar de que não fora seguido. Improvisando um plano, apanhou o celular e discou um número. A chamada durou até cair na caixa postal. Discou, então, outro número. Caiu na secretária eletrônica.
- Bethany, por onde você anda? - perguntou.
Discou outro número.
- Fala, Bata - disse a alegre voz do brasileiro Cássio.
- E aí, chinelo - falou William, descontraído - queria falar com a Bethany, não sei por que ela tem celular, nem atende a ligação...
- A Bethany - repetiu Cássio - Ela saiu às nove e pouco, estava toda apressadinha.
- Sim, ela esteve comigo... daí não voltou mais?
- Não, deve estar fazendo hora.
- Certo, cara... ela não disse nada sobre?
- Nadinha.
- Valeu então, cara. Te cuida.
- Você também. Falou, Bata.
- Falou.
William desligou e suspirou. Nada de nenhum de seus amigos... se fosse Bethany, o que teria feito? Provavelmente, não teria demorado tanto tempo para agir... teria ela falado com alguém antes dele?
Carlos ou Erek. Isso era fato. Especialmente Erek, que com certeza a teria apoiado.
Contudo, Erek não atendia ao telefonema. Estaria dormindo, assim como Carlos?
Precisava ir até a casa deles checar, mas e se caísse em uma cilada?
Ligando novamente o carro, saiu do beco, as perguntas se formando em sua cabeça, todas sem respostas.