sábado, 29 de novembro de 2008

Quatro - Em maus lençóis

Eram dez horas da manhã quando o apresentador do telejornal local Samuel Allen finalmente deu-se por dispensado do estúdio do Canal 7 de Raccoon City. Passara as últimas horas apresentando a parte matutina do programa e trocando informações com seus colegas de profissão.


Tratava-se de um rapaz de estatura mediana, cabelos negros e curtos e óculos de aros finos. Seu rosto seria jovial demais para um jovem que estava muito próximo da casa dos trinta anos, não fosse pela barba rala que, por vezes, cultivava. Embora tivesse apenas 27 anos, já se graduara em dois cursos - Ciências Sociais e Jornalismo. Responsável e polido, sempre fora muito maduro para a idade e bem comunicativo, embora passasse um bom tempo em silêncio, observando os acontecimentos ao seu redor.


Após horas exercendo a comunicação, sua especialidade, o prodigioso jornalista estava saindo de seu prédio de trabalho quando alguém esbarrou nele - o freelance Zack Everett, um universitário um tanto quanto alegre.


- Opa, Everett...


Everett fixou nele os olhos arregalados e empolgados, a câmera fotográfica ainda balançando no pescoço.


- Foi mal, Allen! Cara, tenho certeza de que minhas imagens serão capa do jornal vespertino!


Samuel sorriu. Tanto o telejornal quanto o único jornal escrito da cidade pertenciam à mesma companhia, e esta era patrocinada por ninguém menos que a Umbrella Corporation. Não era um jovem simplório; repudiava o monopólio que a aquela empresa exercia, e tinha perfeita consciência, como jornalista e cidadão, de que a presença de somente uma fonte de informação tornava qualquer notícia duvidosa. Sabia perfeitamente que a intenção da Umbrella era, além de conquistar a diretoria da imprensa, manipular as informações de modo a apresentar uma boa imagem de sua corporação à população.


Por isso, aceitara trabalhar no estúdio. As informações eram modificadas lá, de modo que Samuel poderia ter acesso às verdadeiras e ver em que ponto foram modificadas e, se possível, contar o que fosse verídico sem ser prejudicado.


- Beleza, cara - disse Allen - E que imagens são essas?


- Preciso ver o Wood!


- Calma - retorquiu Samuel, sorrindo agradavelmente - Você quer uma tiragem no jornal, certo? Se me mostrar e se forem boas, posso garanti-las no telejornal vespertino.


Zack Everett encarou seu interlocutor; sabia que este não blefava. Samuel Allen era o apresentador do telejornal e um homem muito influente.


- Certo - concordou, sorrindo - Saca só, cara...


Ele retirou algumas fotos do bolso interno da jaqueta e mostrou-as; os dois jovens curvaram as cabeças para vê-las.


A primeira foto era chocante; mostrava uma senhora sentada na grama, ao lado de um banco de praça, com as vestes ensangüentadas; ao seu lado, dois policiais igualmente feridos tentavam socorrê-la; um terceiro policial, ileso, estava curvado sobre um doberman deitado, aparentemente inconsciente e muito ferido. Um outro cachorro, pastor alemão, jazia também na grama e - o estômago de Samuel embrulhou - restos de sua cabeça estavam espalhados pelo manto verde. Um homem em pé, civil e também ileso, embora sujo de terra, observava a cena. Várias pessoas, todas assustadas, cercavam o grupo; algumas fotografavam a cena.


- Esta eu tirei hoje de manhã, no parque... um cachorro atacou uma velhinha e o dono não soube dizer o que aconteceu... três policiais apareceram com o doberman, que atacou o pastor... o pastor matou o animal e atacou os policais que tentavam contê-lo, então aquele policial ali, o dono do doberman, atirou nele...


Allen continuou a olhar para a foto, chocado.


- Tudo culpa do pastor?


- Sim... cara, nem Stephen King faria uma coisa dessas! Acho que o pastor estava com hidrofobia... nem aquele São Bernardo do King foi tão...


Everett era fanático pelos contos de Stephen King. Samuel, porém, não gostou da comparação.


- King é ficção. Isso é realidade, e é... terrível.


- Calma, tem mais, saca só essas outras...


A segunda foto também continha policiais e civis; dois policiais empenhavam-se em conter um homem pálido de vestes empapadas de sangue, que urrava, enlouquecido, tentando se soltar; dois homens igualmente feridos pareciam indignados e dirigiam-se a um terceiro policial, que tomava notas em seu bloco. Pareciam agressivos, também, mas, a julgar pelo fato de estarem soltos, não apresentavam perigo.


- E esta?


- Um cara foi atravessar a rua sem olhar para o sinal; um dos motoristas, tentando se desviar dele, bateu no outro carro; os dois saíram para tomar satisfações com o sujeito e ele simplesmente atacou um deles, e atacou o outro quando este tentou segurá-lo. Alguém chamou a polícia.


- Atacou? Partiu pra porrada?


- Ele os mordeu.


Samuel deu uma risadinha nervosa.


- Mordeu?!


- É. Um lunático, Allen, simplesmente agarrou o pescoço deles e mordeu... arrancou pedaço, foi o que disseram.


- Um vampiro à solta?


- À luz do dia? Pouco provável. Prefiro o Aviador Noturno.


Samuel riu pelo nariz e viu a última foto. Era a mais chocante de todas; na sala de uma casa comum, uma mulher estava caída no chão, o rosto descorado e os olhos abertos, sem viço; suas vestes estavam vermelhas e, em pé, ao lado dela, dois policiais tentavam conter um homem louco, de aspecto semelhante ao da segunda foto, e um homem aparentemente civil, segurava pelas axilas uma menininha de uns oito anos; pálida como o homem, com o lado direito do pescoço e dos ombros ensangüentados, gritava a plenos pulmões, exibindo os dentinhos amarelos.


- O que é isso? - perguntou Allen, impressionado.


- Um vizinho ouviu gritos e contatou a polícia... quando chegaram lá, pai e filha estavam devorando as vísceras da mãe. Quando viram os policiais e o vizinho, os dois tentaram atacá-los, mas foram contidos.


- E como você soube?


- Eu sou amigo do vizinho e estava na casa dele quando aconteceu.


- Ouviu os gritos?


- Sim... - respondeu o rapaz, sério - Horríveis... o Mark ouviu primeiro a garotinha gritar, mais cedo, achou que fosse normal, ela tivesse aprontado e levado algumas... gritou e se calou. Horas depois, a mãe voltou e também gritou. Foi horrível, cara, ela não parava de gritar "o que há com vocês? Penny, Penny, venha! Penny, o que você tem?"... horrível, cara.


Samuel empurrou as fotos para Everett, enojado. Chocado.


- Vá procurar o Wood. Depois vejo com a turma se vamos colocá-las no telejornal também.


- Beleza, Allen! Valeu, mesmo, até mais! - e o rapaz saiu ligeiro.


Samuel viu-o sumir no corredor; inspirou profundamente e saiu do prédio, passando pelos degraus de entrada e desviando-se das pessoas.


Arrependia-se de ter pedido para ver as fotos. Por que não deixara Everett seguir viagem com aqueles flagras macabros? Por que tivera a santa curiosidade de interrogá-lo? Por que diabos fora Everett esbarrar nele?


Aquelas fotos eram medonhas... a velhinha estirada na grama... os homens feridos... os miolos do pastor na grama... pai e filha unidos em um gesto de canibalismo, devorando as entranhas da mãe...


O que estava acontecendo com o mundo?


Ia tomar um café rápido e falar com um colega em uma breve troca de informações. Aproveitaria para buscar um livro que reservara na semana anterior e faria compras no supermercado. Ainda estava deveras impressionado com as fotos quando consultou o relógio e viu que eram dez e doze da manhã.


Ao meio-dia, almoçaria, mas não gostaria de fazê-lo sozinho. Precisava distrair-se; aquelas fotos não lhe saíam da cabeça. Tomado por uma súbita inspiração, parou na calçada, apanhou o celular e discou um número.


- Isso aí, Bethany... - disse baixinho, enquanto esperava a chamada ser atendida.









Em algum lugar de Raccoon City, em um edifício comum de departamentos, no nono andar, em uma salinha discreta de propriedade desconhecida, uma jovem engenheira era tomada por um pânico sem tamanho. Não sabia o que lhe aconteceria, apenas que não tinha forças para passar por três homens adultos.


- Estamos todos decepcionados com o seu comportamento, Srta. Yenne - disse o Dr. Harker, em um tom falsamente paternal - A Umbrella a recebeu de braços abertos. Mal havia terminado o seu mestrado e nós lhe concedemos liberdade de atuação e um ótimo pagamento. A senhorita escolheu seu campo de trabalho, fixou o seu horário, e tudo com uma gorda recompensa. É assim que nos agradece? Espalhando boatos maldosos de nossa corporação para os seus amiguinhos?


Boatos maldosos? O lado irônico de Bethany não deixou de sorrir por dentro; se realmente não houvesse verdade no que ela dissera, para começar, não estaria ali, visivelmente sendo vítima de um seqüestro. Se fizeram aquilo, era porque ela, Bethany, criara algum risco à corporação, e com certeza não se tratava de meros "boatos maldosos".


- Então - ela disse - Demita-me. Eu assino qualquer documento afirmando que eu menti, se for o caso.


Sim, pensou, assinaria, avisaria seus amigos de algum jeito do perigo e cairia fora da cidade. E Carlos e Erek... a garota estremeceu. O que lhes acontecera? Estariam vivos?


Dr. Harker riu. Foi uma risada seca, sem alegria; seus olhos, contudo, brilhavam com mais fervor, e de uma maneira que Bethany não gostou.


- Não será preciso assinar nada, srta. Yenne. - respondeu o homem, os olhos cheios de malícia - Nem mesmo a sua carta de demissão.


A jovem engenheira engoliu em seco. Podia ler nos olhos de Harker. Suspeitava


(com toda a certeza)


que não sairia viva dali. Não era apenas uma conclusão tirada em meio ao pânico. Bethany estava lúcida. Apesar de toda aquela formalidade - três homens engravatados em um escritório, membros de uma rica empresa -, sentia que o final seria brutal. Como


(teria sido para Carlos e Erek?)


se tudo não passasse de um acordo, uma relação de causa e efeito... ok, Bethany Yenne, você infringiu o contrato, pisou um dedo fora da linha, começou a espalhar verdades indesejáveis... você acaba de se tornar uma indesejável e, lamentavelmente, deve ser eliminada. Vamos acabar logo com isso, senhores,


(como acabaram com Carlos e Erek)


temos muito a fazer, um acidente para solucionar.


Um ruído.


Um tiro? Não.


Não havia armas à vista.


Era apenas o celular de Harker. Ele levou-o ao ouvido, ainda mantendo os olhos em Bethany.


- Ótimo. Faça isso. - disse simplesmente, desligando o aparelhinho em seguida e embolsando-o - Parece que encontraram o seu amigo William - acrescentou ele para Bethany, com um sorriso leve e maldoso - Pobre rapaz, andou ouvindo muitas bobagens suas...


O estômago de Bethany despencou; pegaram Will! E a culpa era dela.


Ele se juntaria a Carlos e Erek...


... por culpa dela!


Outro ruído - uma música!


- É o celular dela, senhor. - disse um dos homens.


Só então Bethany notou que, de fato, era o seu celular. Ela olhou para o Dr. Harker, hesitante. Ele sorriu, piscando lentamente.


- Não seja grosseira, srta. Yenne. Atenda.


Com as mãos trêmulas, Bethany pegou o celular e levou-o ao ouvido.


- Oi. - sabia que era Samuel Allen, mas não se atreveria a dizer o nome do rapaz diante daqueles homens.


- Oi, Bethany... escute, que tal se fôssemos almoçar hoje? Eu tenho a tarde toda livre, mas sei que você trabalha, então poderíamos aproveitar o almoço... que acha?

- Ah, S... é que eu - a garota olhou para Dr. Harker, que acenou afirmativamente com a cabeça - eu preciso tomar conta do Phillip... estou indo para a casa dele agora, você sabe onde fica, né? A mãe dele vai passar o dia fora, e eu preciso ficar com ele... por que não vem comigo?

- Esse convite veio em boa hora... preciso mesmo me distrair. Você está indo para lá?

- Eu ia na hora do almoço, mas vou me atrasar um pouco; você poderia ir na frente e avisar a Rachel que eu vou me atrasar? Você ficaria com o Phil por uma horinha e então eu chegaria...

Phillip era um dos sobrinhos de Bethany; tinha três anos e morava na cidade vizinha, Saint Catherine, a duas horas dali de carro. Bethany queria tirar Samuel da cidade, e não encontrara outro jeito que não fosse aquele. Era verdade que tinha combinado de ficar com Phillip à tarde, mas seria por dois dias, e não uma tarde só; sabia que, se dissesse a Samuel toda a verdade - se Harker não lhe tomasse o celular, claro - a vida do amigo estaria em risco como a dos outros. Sabia que, se começasse a dizer a verdade e, de repente, o telefone ficasse mudo, Samuel desconfiaria de algo, contudo sua vida também estaria em jogo. Aquele jovem, como Erek, nunca gostara da Umbrella, porém, ao contrário deste, que defendia a tese de que a corporação produzia fórmulas ilícitas, aquele argumentava que Umbrella não precisava apelar para práticas ilegais para conseguir ser suja e desprezível. Normalmente, o exemplo que citava eram os monopólios.
- Esta cidade - costumava dizer - é o quintal da Umbrella, apenas isso. Qualquer instituição que você encontrar por aqui é fachada. É tudo Umbrella, Umbrella e Umbrella.
Se Samuel fosse para Saint Catherine, esperaria por ela, Bethany. A mãe da criança, que já conhecia o rapaz, viajaria... claro que, uma hora, ele ia notar tanto a demora de Bethany quanto da mãe, mas o que poderia fazer? Teria de esperar pelo retorno da mãe da criança, que não lhe daria o número do próprio celular porque o esperado seria que ela, Bethany, aparecesse, e Bethany possuía o número... assim, Samuel ficaria, obrigatoriamente, dois dias inteiros com o garoto, pois ele não poderia sair daquela cidade e deixar Phillip, e tampouco poderia levá-lo sem avisar a mãe... talvez efetuasse algumas ligações, tentasse saber o que acontecera com ela, Bethany
(que talvez já nem estivesse mais ali)
e se salvaria do acidente
(não, ela definitivamente não estaria ali)
que Judy tanto temia. Pobre Judy... como estaria? Ela fora tão clara, e só agora Bethany compreendia! Judy não dissera para sair avisando as pessoas, só para... sair da cidade. Em vez de dar bandeira e colocar a vida dos amigos em Jogo, Bethany poderia ter bolado um plano para tirá-los da cidade sem, necessariamente, dizer a verdade antes do tempo...
Mas não. Fizera tudo errado. Mas pelo menos um seria salvo: Samuel.
- Claro, Bethany. - respondeu Samuel do outro lado da linha - Posso ir, sim.
- Estamos combinados, então?
- Sim.
Era a despedida. Bethany teve vontade de dizer algo mais, uma última vez, mas percebeu, pelo olhar voraz, quase faminto do Dr. Harker, que parecia ler seus pensamentos, que era melhor não falar nada, ou atrairia muito a atenção do rapaz. E, naquele momento, a segurança dele era muito mais importante. Quanto menos ele desconfiasse, maiores as chances de sobreviver àquele dia.
- Bethany?
A moça engoliu em seco.
- Sim?
- Gostaria de dizer alguma coisa?
Sim. Samuel, eles me pegaram, as pessoas da Umbrella, sinto que não me resta muito tempo após o término desta ligação, e a única que quero é que você vá para mais longe possível. Ao final deste telefonema, é provável que não mais nos falemos, portanto, é melhor você se apressar. Já pegaram Carlos, Erek e William. Você tem que fugir. Foi bom ser sua amiga.
- Não. - disse Bethany - Bem, agora tenho que desligar... um relatório imenso para terminar
(e que não terminaria)
projetos para coordenar
(se estivesse viva para tal)
e outras coisas... preciso apressar, já que temos um encontro, certo?
- Certo, srta. Bethany. - disse o outro naquela formalidade simpática e sutilmente brincalhona - Bom trabalho e um bom dia para você!
- Para você também.
Fim. Vagarosamente, Bethany abaixou a mão direita com o celular desligado, os olhos ainda no Dr. Harker. Seus olhos pareciam prestes a transbordar, e precisou de muita força de vontade para se manter firme. Parte dela queria implorar para sair dali; a outra parte sentia tanto nojo daquele homem, que se sentia no direito de atirar para o ralo vidas inocentes para obter silêncio em nome do lucro com suas práticas ilícitas.
- É incrível - disse Harker - como alguns trabalhadores só fazem o serviço direito quando estamos de olho neles, não é mesmo, srta. Yenne?
Agora as lágrimas queriam descer, mas de raiva e não de medo.
- O que fez com Carlos e Erek? - perguntou Bethany, crispando os lábios.
- Estão em boas mãos. - respondeu o outro simplesmente - Logo, não precisará mais se preocupar, portanto, poupe o seu tempo. E gostaria também que não começasse a gritar; isto certamente colocaria em risco a vida de Hoffman.
Bethany engoliu em seco.
- E como posso garantir que ele continuará vivo mesmo que eu não grite?
- Não é garantia, é matemática, srta. Yenne. Probabilidade, já estudou? Basicamente, se a senhorita gritar, ele com certeza morre. Se não gritar, há cinqüenta por cento de chance de ele não morrer.
Como Bethany permancesse em silêncio, Harker continuou:
- Gostaria de fazer um último pedido, antes que eu me retire desta sala?
Os braços da engenheira, de cada lado do corpo, tremiam; a moça, apertando os olhos de raiva, apenas cuspiu, acertando em cheio o homem. Ele fez uma careta e limpou o rosto com a manga do casaco. Os dois ajudantes de Harker mexeram-se, ligeiramente inquietos.
- Vejo que não. - disse Harker com simplicidade e, virando-se para os homens, acrescentou, acenando levemente com a cabeça - Cuidem dela. - e virou-se para se retirar, abrindo a porta.
Tudo o que aconteceu em seguida foi em uma fração de segundo; no momento em que o doutor colocou a mão sobre a maçaneta, os dois indivíduos que ladeavam Bethany estenderam a mão para segurá-la. Antes que o fizessem, porém, a garota abaixou-se e pulou, colocando-se lado a lado com Harker, ainda abaixada; em seguida, golpeou o homem com uma cotovelada entre as pernas e abriu a porta com força. Sentiu mãos agarrarem seu jaleco, mas se atirou com tal ímpeto para fora da sala que conseguiu se livrar, caindo no meio de um corredor apinhado de pessoas que se assustaram com sua repentina aparição. Em seguida, equilibrando-se antes para não cair, precipitou-se corredor afora, sem definir rumo, desejando apenas abrir a maior distância possível entre ela e seus captores. Colidia com pessoas sem ver seus rosto, e chegou a fazer alguém atirar para o alto uma pilha de papéis, criando uma chuva de folhas pelo local.
Ouvia passos apressados atrás, e continuou a se meter por corredores brancos e sóbrios e, quando sentiu que os estava despistando com sua agilidade reforçada pela baixa estatura e pouco peso, forçou uma porta que, milagrosamente, estava aberta, e precipitou-se por ela como se sua vida dependesse disso
(e dependia)
pronta para resistir até não ter forças.
Entrou em um lugar escuro, fechando a porta atrás de si, e tateou na parede em uma busca frenética por algum interruptor; não lhe ocorreu apenas olhar até encontrar a luz esverdeada do botão. Ao encontrá-lo, apertou-o; uma lâmpada fraca acendeu-se, revelando uma escada escura, estreita e íngreme que levava aos andares superiores e inferiores.
Pensando rápido, achou que era melhor subir, pois o óbvio seria descer; assim sendo, correu para o décimo patamar e, quando saiu das escadarias para um corredor com poucas pessoas, ouviu uma porta abrir-se no andar inferior.
No corredor, virou à direita, desembocando em um deserto; nele havia uma espécie de portinhola de metal a um canto. Desesperadamente, Bethany enfiou os dedos em dois orifícios no alto que deviam pertencer a uma maçaneta que não estava ali e puxou-o; a porta se abriu, formando uma espécie de prateleira e revelando um armário de vassouras, e a jovem entrou, selando a entrada atrás de si. Quando foi se endireitar, ajoelhada e encurvada, bateu a cabeça no teto de concreto e, sentindo uma dor excruciante, mergulhou na completa escuridão.



Já passavam das dez horas quando um homem de roupas escuras e chapéu, de cigarro na boca e ares de pouco caso, saiu do campo de tiro. Parou à porta dele apenas para acender o cigarro com seu isqueiro prateado, seguindo viagem logo depois. Andou tranqüilamente como se apreciasse o fato de poder fazê-lo até o seu jipe. Apesar do tempo ameno, o sol já estava começando a se revelar, de modo que colocou os óculos escuros antes de ligar o carro e partiu.
Decidindo repentinamente tomar uma dose no primeiro bar que visse, tragou o cigarro e estacionou poucos minutos depois diante de uma lanchonete.
O lugar, todo amarelo e vermelho, com mesinhas juntos à vitrine e um balcão comprido ao fundo, estava lotado porque era a hora do brunch, de modo que William precisou lutar contra o trânsito de fregueses e garçons para chegar até o balcão, onde sequer pôde se sentar; todos os lugares estavam lotados. A acústica do local fazia as conversas ecoarem de tal forma que Hoffman sentia-se em um galinheiro; em algum lugar no alto, uma televisão transmitia os programas locais como se falasse sozinha, pois ninguém lhe dava atenção.
- Ei, amigo - disse William, levantando uma mão rapidamente ao avistar um garçom - Duas cervejas geladas.
O garçom ergueu o polegar indicando que havia entendido e afastou-se; William desejou ter pedido duas latinhas para não precisar tomar naquele lugar infernalmente lotado e barulhento. Entretanto, sendo paciente e distraído, apoiou os braços no balcão, ainda de óculos escuros, tamborilando o mármore frio com os dedos, e aguardou, a mente chegando à sua casa.
A lanchonete servia almoço também; a pessoa fazia um pedido e algum atendente, por trás do balcão, servia o prato com a comida disposta em várias terrinas; o móvel que as continha era espelhado, de modo que William podia olhar para a rua atrás de si sem se voltar.
Estava a olhar no espelho aquele jovem de óculos e chapéu quando alguém colocou um cinzeiro à sua frente.
- Por favor - disse a garçonete - é proibido fumar aqui.
William ergueu uma das sobrancelhas para a mocinha, retirou calmamente o cigarro da boca e, ainda encarando-a, apagou-o no cinzeiro, neutro e inexpressivo, como alguém que pergunta "satisfeita"?
- Obrigada. - disse ela, afastando-se.
William deslizou a mão por cima do lábio superior, como se quisesse enxugar algum suor inexistente e aguardou, voltando, sem notar, sua atenção para a sua imagem refletida três metros à frente.
Súbito, algo chamou sua atenção; dois homens altos e fortes, um negro e careca e outro louro e barbudo, entraram na lanchonete. Olharam cada um para um lado e, em seguida, para o rapaz, que se sobressaltou.
Estariam mesmo olhando para ele?
Um deles levou um celular ao ouvido e disse algo, ainda sem tirar os olhos do rapaz. Em seguida, guardou o aparelho.
Os homens não trocaram nenhum olhar, nenhuma palavra; simplesmente avançaram lentamente até ele, impedidos pela maré de pessoas que andava por todos os lados. Com uma das mãos na testa, levemente encurvado sobre o balcão, debruçado, William aguardou. Parecia distraído, até mesmo entediado, mas olhava atentamente para os homens, que continuavam a se aproximar. E olhavam fixamente para ele.
Não eram bons atores.
E também não pareciam estar de brincadeira.
Talvez o requisitassem como advogado? Assuntos importantes? Ações mirabolantes?
Mas a questão era: como o haviam encontrado?
William tinha um escritório, telefonema para contato. Sequer permitia que telefonassem para sua residência; como o encontraram?
Com o rabo dos olhos, espiou; os homens continuavam a se aproximar...
Quando um deles, o mais próximo, inclinou os braços para passar por uma pessoa qualquer, algo brilhou em sua cintura.
Um revólver.
William, na mesma posição de disfarçada embriaguez, ou quem sabe simples enxaqueca, só teve tempo para reconhecer o modelo da arma antes de pensar na ação; vislumbrou em segundos tudo o que precisava.
Uma mulher passando logo atrás, à esquerda, acompanhada de um homem.
Um rapaz logo atrás.
Um banco alto ao seu lado, ocupado por um sujeito obeso.
O balcão.
Tudo o que aconteceu em seguida pareceu correr em câmera lenta, mais até que a aproximação dos homens; William, rápido como o relâmpago, apertou com força as nádegas da mulher atrás, que passava sem vê-lo. Em seguida, voltou a olhar para frente em tempo de ouvir a moça dar um tapa no rapaz e o seu acompanhante exclamar:
- Perdeu amor à vida, fedelho?
William apoiou um pé no balcão ao lado e impulsionou-se para cima, mergulhando para trás do balcão em tempo de ouvir um grito frustrado; em seguida, correu abaixado, protegido pelo balcão.
Gritos ecoavam acima de sua cabeça; pessoas que haviam visto a cena, exclamavam, excitadas; Hoffman não se atentou a nada disso. Precipitou-se por uma porta de vai-e-vem que, tinha certeza, era acessível apenas para empregados e fechou a porta atrás de si.
Deparou com uma cozinha mergulhada em vapor de panela quente. Várias pessoas cozinhavam e gritavam instruções umas às outras, trajando vests brancas. O rapaz achou que o melhor era correr.
Correu em linha reta, esquivando-se de poucas pessoas no caminho; abriu uma porta, deparando com uma despensa sem saída; fechou-a e continuou a correr, encontrando, por fim, uma porta que levava à rua. Esquivando-se de um amontoado de lixo da lanchonete, virou à direita na primeira oportunidade, desembocando em uma rua perpendicular à que estacionara. Reconheceu, enquanto corria, o ruído de gatilho pressionado e atirou-se para atrás de uma lata de lixo bem a tempo de ouvir uma bala passar zunindo por cima de sua cabeça.
Sem se voltar, abaixado, desengonçado, correu até virar à direita novamente, deparando com seu jipe a pouco mais de vinte metros. Ainda ouvia passos atrás de si.
A rua estava movimentada; pessoas haviam parado ver o que estava acontecendo e, dentro da lanchonete, algumas espiavam pela vitrine. Talvez por sorte, quem sabe, mais tiros foram disparados, errando o alvo. William atirou-se em seu jipe, ligando-o; o automóvel respondeu com um forte ronco. Um tiro acertou a lataria.
Hoffman acelerou e, quanto esticou o corpo para trás, um crucifixo grande tornou-se visível em suas vestes.
- É, cara - disse ele, lançando um olhar rápido para o céu - Acho que você fez Murphy dizer "só dessa vez", parceiro.
Tateou à procura de um cigarro; encontrando-o, meteu-o na boca, sorrindo, satisfeito com o sucesso da fuga. Foi quando, pelo retrovisor, viu um carro negro correr em disparada em sua direção. William estava a meio gesto de acender seu cigarro com o isqueiro quando um movimento brusco do carro obrigou-o a mudar a marcha do jipe. Levou novamente a mão à boca, pronto para acender o isqueiro quando o carro negro emparelhou com o dele, obrigando o texano a virar à direita para evitar ser baleado.
Entrou em uma rua estreita, vazia, e virou à esquerda na primeira oportunidade; arrependeu-se. O carro negro o esperava do outro lado, de modo que emparelharam novamente. O homem louro, que não dirigia, atirou, e William, que de novo tentava acender o cigarro, interrompeu novamente o gesto para abaixar a cabeça, quase colidindo com o volante.
- Desgraçados! - praguejou, acelerando - Me deixem acender essa merda!
O outro carro emparelhou novamente.
- Sr. Hoffman! - gritou um dos homens - Pare o carro e ninguém sairá machucado!
William sorriu, o cigarro apagado no canto da boca.
- Nada feito, filho. - e acendeu o isqueiro.
Como o louro apontasse novamente o revólver, William, que acabara de cruzar uma esquina, deu marcha à ré e virou à direita, adiando, novamente, o uso do isqueiro. Desta vez, avanaçou por duas ruas e, quando se deu conta que fora na contramão, virou à direita para corrigir-se, entrando em uma rua mais movimentada. Deixara o carro preto para trás quando entrara em uma rua, fechando um carro à sua direita, que, por sua vez, por não parar a tempo, fechara o carro dos perseguidores.
William tinha um forte pressentimento com relação àquela perseguição. Aqueles homens, para quem trabalhavam? Para algum assassino que botara na cadeia?
Não... com a chegada dos S.T.A.R.S alguns anos antes, muitos bandidos foram presos em flagrante, e a criminalidade diminuíra exponencialmente desde então.
Aqueles homens não pareciam se importar em matá-lo, notara isso. E se queriam matá-lo, era porque ele, William Hoffman, era algum empecilho.
Por alguma razão, o rosto assustado de Bethany invadia sua mente junto com os documentos da Umbrella.
Bem, se ela se deixava levar por uma conversinha com a tal Judith, ainda bem que não se tornara advogada da corporação... Erek, então, nem se poderia falar; paranóico com a Umbrella, provavelmente apanharia aqueles documentos e o levaria à imprensa.
E por falar em imprensa, avistou o prédio do Canal Raccoon 7, em uma avenida ensolarada. E agora, o que faria?
Aqueles homens seriam mesmo da Umbrella?
Se voltasse para casa, estariam lá, talvez usando Alice como refém?
Bem, seu lado frio e racional informou-lhe que nada aconteceria a Alice e a Maryane se ninguém soubesse o paradeiro dele. Não tinham por que matá-las; não se o quisessem.
Mas que era uma coincidência muito grande enfrentar uma perseguição com direito a tiroteio após uma conversa alarmante com Bethany, era. Especialmente envolvendo uma jovem que dissera todas aquelas coisas a ela.
Acendeu finalmente o cigarro.
Não duvidava que Judith Palttrow trabalhasse na Umbrella. E se ela dissera aquilo a Bethany... bom, talvez houvesse descoberto algo que a assustara.
Contudo, ainda havia um sinistro elo entre os dois acontecimentos. Paranóia de Palttrow transmitida para Bethany, a Bethany que sempre gostara da Umbrella, que sempre a defendera de Erek, a Umbrella que agora a assustava... e Bethany não era exatamente o tipo que se deixava levar por qualquer conversa. Não confiava muito nas pessoas, não era uma jovem tão ingênua.
E aqueles homens...
Entrou em um beco e parou o carro, lançando olhares furtivos para se assegurar de que não fora seguido. Improvisando um plano, apanhou o celular e discou um número. A chamada durou até cair na caixa postal. Discou, então, outro número. Caiu na secretária eletrônica.
- Bethany, por onde você anda? - perguntou.
Discou outro número.
- Fala, Bata - disse a alegre voz do brasileiro Cássio.
- E aí, chinelo - falou William, descontraído - queria falar com a Bethany, não sei por que ela tem celular, nem atende a ligação...

- A Bethany - repetiu Cássio - Ela saiu às nove e pouco, estava toda apressadinha.
- Sim, ela esteve comigo... daí não voltou mais?
- Não, deve estar fazendo hora.
- Certo, cara... ela não disse nada sobre?
- Nadinha.
- Valeu então, cara. Te cuida.
- Você também. Falou, Bata.
- Falou.
William desligou e suspirou. Nada de nenhum de seus amigos... se fosse Bethany, o que teria feito? Provavelmente, não teria demorado tanto tempo para agir... teria ela falado com alguém antes dele?
Carlos ou Erek. Isso era fato. Especialmente Erek, que com certeza a teria apoiado.
Contudo, Erek não atendia ao telefonema. Estaria dormindo, assim como Carlos?
Precisava ir até a casa deles checar, mas e se caísse em uma cilada?
Ligando novamente o carro, saiu do beco, as perguntas se formando em sua cabeça, todas sem respostas.






















sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Três - Nono pavimento

Que William Hoffman sofria de insônia, todos os seus amigos sabiam. Sua mulher, Alice, chegara de manhã do plantão - era uma médica muito requisitada no Raccoon Hospital - e saíra com o marido para o bar de Jeff. Amavam-se e compreendiam-se de tal maneira que justificava o fato de Hoffman - o mais aventureiro da turma de amigos - ser o primeiro a se casar.
Assim que saiu do bar, o casal Hoffman voltou para casa. Agora, quase oito horas, ele se encontrava sentado na beirada da cama, o tronco nu, vigiando o sono profundo de sua esposa, que mantinha o cobertor junto ao peito, os cabelos dourados espalhados pelo travesseiro, a respiração tranqüila e ritmada de quem não tinha sonhos ruins.
William sorriu ternamente. Somente o dever que tinha a cumprir a seguir o faria tirar os olhos daquele rosto delicado e sereno. Assim, o rapaz ergueu-se e terminou de se vestir.
Saiu do quarto, fechando a porta da maneira mais silenciosa possível, e caminhou até o quarto ao lado. Uma menininha loura que parecia a cópia de Alice em miniatura estava se calçando; era Maryane, uma garotinha de dez anos, fruto daquele amor precoce.
- Já comeu, Mary? - perguntou Will com aquele jeito calmo típico de sua personalidade.
- Já, papai. - respondeu a menininha - Tô quase pronta.
A menina afivelou os sapatos e ergueu-se. Apanhou a mochila e saiu do quarto. William, apoiado no umbral, sorriu.
- Onde é a festa, princesinha?
Maryane corou, as bochechinhas vermelhas chocando-se violentamente com o louro cabelo.
- Vamos. - disse Hoffman, dando a mão para a filha.
Os dois saíram da casa e entraram em um jipe. Assim que colocou o cinto, Maryane comentou:
- Hoje eu vou apresentar um trabalho na aula de ciências, papai.
- É? E sobre o quê? - perguntou este, dando a partida no carro.
- Doenças causadas por vírus e bactérias! - respondeu a menina, exultante - A srta. Simms disse que dois biólogos da Umbrella vinham assistir às apresentações!
- Que barato, Mary! - comentou William, espiando pelo retrovisor o trânsito - Mostre pra eles o que você sabe! Vão ficar simplesmente admirados com a sua inteligência, filha!
A menininha sorriu, envaidecida.
- Quer ver o que vou falar, papai?
- Claro, minha linda, fala que o papai tá escutando.
Maryane tomou fôlego; William imaginou que ela faria o mesmo quando visse todas aquelas cabeças voltadas para ela. A garotinha, então, desatou a falar:
- As doenças são coisas que prejudicam o nosso corpo. Algumas podem ser causadas por vírus; outras, por bactérias. Vírus são seres tão pequenos que não podem ser vistos por microscópios comuns e são conhecidos por apresentarem... - a garota hesitou - características bióticas e abióticas.
Enquanto ouvia o que a filha dizia, William refletiu... dois cientistas da Umbrella ouvindo as crianças... eles saberiam?
Das patentes.
"Doenças virais são doenças causadas por vírus. As mais comuns são gripe, rubéola, catapora, caxumba, raiva ou hidrofobia, febre amarela, hepatite viral, AIDS, sendo esta a mais grave delas..."
Lembrava-se de cada um dos documentos que recebera da Umbrella Corporation. Não entendia muito de ciência, mas o que lera fora suficiente para chamar Alice e lhe mostrar.
"... pois o virus causador tem alta capacidade de sofrer mutação."
Ah, claro, mutação. Qualquer pessoa razoavelmente informada sabia disso. Entretanto, a manipulação deles continuava, como se fossem meros fantoches, e não seres invisíveis que poderiam mudar a qualquer momento...
"São estas as doenças mais conhecidas."
E as desconhecidas? Quantas dessas não foram causadas por falhas em experiências? Quantas mais surgiriam? Seria, dali a um tempo, a AIDS a mais grave das doenças?
"É possível reparar que boa parte dessas doenças a pessoa adquire na infância, e para muitas existe a vacina..."
Uma certa patente sobre direitos de pesquisa a um certo T-vírus reservados... segundo o documento, para inovação na indústria de cosméticos.
Que tipo de pessoa compraria vírus para aplicar na pele e no cabelo?
Todos os direitos reservados... pesquisa em fase de teste... em animais.
Apesar da distração com seus pensamentos e o falatório da filha, William ainda estava de olho no trânsito, de modo que conseguiu frear a tempo a um engarrafamento nada comum. Maryane parecia não ter percebido nada, porque continuava a falar, olhando para o pai:
- Já as bactérias são maiores e causam outras doenças...
William olhou para frente, tentando ver o que impedia o trânsito; pelo visto um automóvel perdera o controle e colidira com o outro que vinha à esquerda. Dois motoristas à frente de Hoffman também tentavam ver o que tinha acontecido.
Os donos dos automóveis que causaram o engarrafamento conversavam com três policiais, inflamados. Dois deles precisavam conter um estranho homem que lutava e se debatia para escapar da prisão. O olhar sagaz de William se deteve nele; estava muito pálido e tinha as vestes rasgadas e ensangüentadas; ostentava um corte feio no rosto e parecia gritar a plenos pulmões, embora os ruídos ao redor o impedissem de ser ouvido pela rua inteira.
Um dos donos dos carros acidentados, William, reparou, também sngrava, só que no pescoço; o sangue empapava-lhe as vestes enquanto ele gesticulava e reclamava com os policiais; e a um olhar ainda mais atento, notou que o outro motorista tinha os braços arranhados. Estavam ambos unidos contra aquele louco que se debatia nos braços da polícia. O terceiro policial registrava a queixa em uma prancheta, visivelmene impressionado com o comportamento do lunático.
Era melhor fazer o retorno; felizmente, aquela era uma avenida, e não uma rua estreita de modo que, quando os dois carros à frente deram a volta, William imitou-os e foi imitado pelos carros logo atrás. Os homens, o louco e os policiais ficaram para trás, e Hoffman sentiu-se profundamente grato por sua filha estar tão concentrada recitando-lhe o discurso do trabalho que sequer vira aquela cena tão chocante para uma criança.
Dirigiu o carro até a escola primária, onde estacionou-o para poder levar Maryane até a porta da escola. Galgou os degraus de mãos dadas com ela, parando na entrada para abaixar-se de modo a manter o rosto na mesma altura do dela.
- Boa aula, Mary... tenho certeza que todos ficarão impressionados com seu trabalho. - disse ele, sorrindo para a menininha.
- Obrigada, papai. - Maryane abraçou-o.
William fechou os olhos e somente soltou a filha quando a sineta tocou dentro da escola. A menina, então, apanhou sua merendeira e entrou na escola ao lado dos colegas, olhando para trás. William, novamente, em pé, acenou:
- Até, minha princesinha... papai ama você.
Quando a filha sumiu de vista, William virou-se e desceu displicentemente os largos degraus de entrada. Ao pisar novamente na calçada, olhou para os lados e acendeu seu primeiro cigarro do dia. Não se atrevia a fumar perto da esposa e da filha; apesar de gostar do hábito, tinha consciência do mal que fazia à saúde, e alguém tivesse que pagar por esses momentos de prazer, seria somente ele.
Subitamente, o celular tocou e, ainda com o cigarro na boca, William atendeu-o:
- Oi, Bees.
- Cara, passei a manhã inteira te procurando!
- São só nove da manhã.
- Ainda bem, e preciso ver você agora! É uma emergência.
- Beleza... estou indo para o clube. Só chegar lá...
- Ok, estou saindo agora. Até lá. - e a moça desligou.
Hoffman guardou o celular no bolso. Retornou ao jipe e ligou o rádio; ao som de Raven, de Grave Digger, deu a partida e foi ao clube.
- Você que é. Lindinha. - acrescentou Cássio, destacando cada sílaba da última palavra, o celular junto ao ouvido - Ah, você sabe, nem precisa se fazer... oh...
Nove horas da manhã, e a indústria já estava cheia de pesquisadores e engenheiros. Entretanto, no escritório do brasileiro só estava ele, visto que, enquanto os outros três engenheiros coordenavam alguns processos, ele estava terminando o relatório do último processo que chefiara. Esta era teoricamente sua tarefa, e a seria na prática, não fossem as interrupções que aconteciam quando o celular tocava.
- Hoje à noite... não me deixe esperando. É, lá mesmo, onde o Ed...
Nesse momento, a porta abriu-se atrás do rapaz que, sobressaltado, escondeu o celular e virou-se; contudo, ao ver uma Bethany apressada, continuou a tagarelar no telefone. Esta ignorou-o completamente e foi até sua escrivaninha guardar suas coisas.
- Beijos, gata... até.
Cássio desligou o telefone e virou-se para olhar Bethany. Em pé, a moça estava curvada sobre a bolsa, mexendo nela com extrema rapidez.
- Epa, epa, aonde a gorda pensa que vai?
- A gorda vai dar uma saída. - respondeu a garota sem se voltar.
- E os deveres? - retorquiu este, espreguiçando e colocando as mãos atrás da cabeça.
- Já estão em boas mãos. O Dani vai quebrar o galho pra mim.
A moça colocou a bolsa a tiracolo.
- Algum superior está sabendo?
- Não. E nem vai ficar. Fique de olhos abertos.
- O quê? Não vou acobertar você...
- Não é preciso. Fique atento por você mesmo. - e a garota saiu do escritório com aquele ar decidido que costumava carregar quando tinha assuntos importantes a resolver.
Cássio, por sua vez, ligou a pequena televisão ao lado da escrivaninha de um colega; o apresentador Samuel Allen, um jovem jornalista, comandava o telejornal matutino. Deixando a televisão conversar, voltou sua atenção para o relatório que precisava terminar.
Quando entrou no clube quinze minutos depois, não precisou perguntar exatamente onde William estava; sabia qual seria o ponto de encontro levando em consideração os hábitos do amigo.
Estava tão apressada que sequer tirara o jaleco; caminhou quase correndo até a área destinada à prática de tiro ao alvo.
Ela consistia em um campo aberto, com alvos colocados lado a lado, a intervalos regulares, onde a pessoa apanhava suas armas e treinava; às nove horas da manhã de uma terça-feira, somente uma pessoa que Bethany conhecia iria até ali realizar tal atividade.
Tratava-se de um homem que estava sentado em uma cadeira de plástico, a alguns metros à frente, uma lata de cerveja, um cinzeiro e um isqueiro na mesinha ao lado; segurando um rifle de marca que a moça desconhecia, franzia levemente a testa ao mirar, o cigarro no canto da boca, e atirava a intervalos incertos. Os cabelos castanhos e cacheados não estavam muito expostos devido ao chapéu preto de feltro que, como todo bom texano, o rapaz carregava sempre; o acessório combinava com seu habitual sobretudo negro.
Bethany aguardou o próximo tiro; acertou o segundo anel do alvo à frente do homem.
- Merda - disse ele, prendendo o cigarro entre os dedos e tomando um gole de cerveja.
- Will?
O rapaz virou-se e fez um aceno à guisa de reconhecimento. Bethany aproximou-se.
- Will, hoje de manhã aconteceu algo muito estranho.
Hoffman recarregou a arma com um ruído estalado e tornou a mirar.
- É sobre... a Umbrella Corporation.
Apesar de ter previsto, Bethany tremeu levemente quando o tiro ecoou. Novamente, William acertou o segundo anel.
- Continue. - disse, tomando outro gole.
- Eu tinha uma colega de trabalho que foi transferida para outra unidade... seu nome era Judith Palttrow. Ela me mandou uma mensagem às seis da manhã, queria se encontrar comigo de todo o jeito no café... eu fui lá e, ah, ela parecia muito assustada, Will...
- Desempregada? - sibilou o outro, mal movendo os lábios, concentrado em sua mira.
- Não. Ela disse que trabalhava para a Colmeia, uma unidade secreta sob a cidade... um dos acessos é através da mansão Spencer, sabe? Ela disse que um acidente ocorreu, mas ninguém sabia o que era... e que ela faria parte da equipe que entraria lá para checar... e ela não queria ir, estava apavorada e sabia que algo havia dado errado...
- Histérica. - resumiu Hoffman, dando outro tiro. Quase acertou o olho do alvo.
- Talvez... mas as coisas que ela disse, você precisava ter visto! Dizia que tinha sonhos havia um mês, que deixou de trabalhar lá justamente por isso, ficava me pedindo perdão por ter superestimado os humanos... disse que devemos sair da cidade...
William concentrou-se novamente. Tomado por súbita inspiração, passou o rifle para Bethany.
- Aqui, tente você... segure com força ela volta.
Franzindo o cenho, Bethany apanhou a arma e fez a mira; em seguida, disparou, aplicando toda a força que conseguiu reunir para conter o retorno do objeto.
- Na mosca! - comentou William, tirando o cigarro da boca - Você treina?
- Eu jogo videogame com meu sobrinho... nos finais de semana. - explicou Bethany, devolvendo-lhe o rifle - A questão, Will, é que algo muito grave aconteceu, porque Judy foi verificar à força... ela não queria ir de jeito nenhum, e ela sabe o que acontece lá... então eu preciso de sua ajuda pra saber o que é.
- E pensou que eu fosse revelar o que eu supostamente sei? - arrematou o outro, mirando novamente.
- Vidas podem estar em jogo, Will! Você pode, por favor, esquecer seu empenho profissional e pensar nisso? Se o que o Erek vem dizendo realmente for verdade, está acima de nossos empregos!
Como William continuasse a fazer a mira, Bethany colocou as duas mãos no rifle do rapaz, abaixando-o, de modo a chamar sua atenção.
- Se essa gente realiza experiências e produz coisas bem na nossa cara, debaixo de nossos pés e nos coloca em risco... as pessoas precisam saber disso!
Ligeiramente irritado com o gesto da garota, William desvencilhou-se dela e ergueu-se, o rifle esquecido em uma das mãos. Fitando sua interlocutora, disse:
- E o que você espera que eu faça, Bethany? Que saia gritando tudo o que sei? Que leve um cartaz escrito "salve-se quem puder"? Quando se é advogado, aprende-se, Bees, a analisar cada uma das partes envolvidas. Você já parou para analisar essa Judy? Para procurar veracidade nas palavras dela em vez de agir como uma lunática achando que estamos à beira de um apocalipse? Eu sei que ela trabalha pra eles e não-sei-o-que-lá, mas que prova temos da sanidade dessa mulher? Há um bom tempo tenho recebido os tais documentos que te falei, e se você soubesse a metade, já teria, provavelmente, contatado até o papa, e sabe do que mais? Até hoje nunca aconteceu nada que possa nos causar alguma preocupação. E se de fato, aconteceu, é melhor você mesma cair fora, porque você não tem a menor chance de colocar as outras pessoas contra a corporação mais poderosa dos dias atuais.
Bethany o encarava, estarrecida.
- William - disse - Por Alice... por Maryane...
- Não coloque as duas nessa história. Eu sei que você se formou em Engenharia Química, Bees, e fez mestrados em não sei quantas ciências, mas já está na hora de saber que, juridicamente falando, a palavra de uma pessoa já não é mais prova suficiente.
Bethany permaneceu parada por alguns instantes. Will tornou a sentar-se e a fazer a mira.
- Esta é sua decisão final, então? - perguntou finalmente a garota.
- É.
- Uma pena. - disse a outra, dando-lhe as costas e tirando o celular da bolsa.
Hoffman tomou outro gole de cerveja antes de atirar. Desta vez, acertou o alvo.
- Atende. - disse Bethany; estava quase na entrada do clube, mas ainda não obtivera resposta - Por favor, Carlos, atende...
O telefone tocava até cair na caixa postal. Decidiu, então, ligar para Erek. Este também não atendia.
- Rapazes, o que houve com vocês? Estão há horas sem dar notícias... - sibilou a moça.
Passaria na casa de Carlos e, em seguida, na de Erek. Duvidava que fosse encontrá-los lá, mas sempre era um bom ponto de partida. Do lado de fora, a cidade já estava acordada; o trânsito seguia calmamente, pessoas andavam em grupos ou sozinhas, conversando entre si, ao telefone ou fazendo cooper. Todos, com seus problemas corriqueiros, pareciam distantes da moça, que pensava em problemas de escala muito maior. Ainda estava perdida nesses pensamentos nada animadores quando aproximou-se de sua moto apanhou o capacete.
- Srta. Bethany Yenne? - perguntou uma voz.
Dois homens engravatados, altos e fortes haviam se aproximado sorrateiramente dela.
- Pois não? - disse ela, nada solícita, e sim assustada.
- Você deveria estar no trabalho. Fomos informados que saiu sem pedir autorização. - avisou um deles - Queira nos acompanhar.
Bethany, ainda assustada, largou o capacete e seguiu os dois homens, que a ladeavam como guarda-costas. Pararam diante de um carro novo, azul-marinho, de um modelo cujo nome Bethany desconhecia; ela nunca fora boa com marcas. Um deles abriu a porta do carro, fazendo sinal para ela entrar. Com um péssimo pressentimento, a engenheira obedeceu.
Os três ficaram sentados atrás, com um motorista na frente. Bethany começou a bolar, enquanto o carro andava, um discurso em sua defesa. Deixara o serviço temporariamente com Daniel Edwards, estava tudo em ordem... saíra para verificar como estava um amigo... sabia que Will, apesar de sua irritação, ia acobertá-la... e se fora ver "o amigo", que mal havia? Esperava que uma atitude daquelas merecesse, no máximo, uma bronca de seu superior quando ela retornasse à indústria e ele descobrisse que estivera fora. Será que ele fora até seu escritório, deparando apenas com Cássio, que fora, então, obrigado a revelar tudo?
Será que algo acontecera na indústria enquanto esteve no clube? Bethany olhou, hesitante, para os dois homens. Ambos, um sentado de cada lado, olhava para frente. Pareciam estátuas.
- O que aconteceu? - perguntou finalmente a garota - Será que é preciso tudo isso?
- Nós a encaminharemos ao sr. O'Brian. - respondeu o da direita - Ele, no momento, não está em sua unidade.
A resposta não fora suficiente, contudo os homens não aparentavam nenhuma disposição a fornecer mais informações. Assim, viajando com um desconforto semelhante ao de se sentar em um porco-espinho amedrontado, Bethany aguardou, sua mente à mil.
O motorista parou diante de um edifício comum de departamentos. Bethany e os dois homens desembarcaram e, ladeando a moça, eles a guiaram pelo prédio até o elevador. Entraram os três e um dos homens informou o andar à calada ascensorista.
Um homem parado ao lado dela chamou a atenção da garota. Estava ligeiramente pálido, sua cor quase se fundindo com a da camisa social. Suava frio, como se tentasse segurar o mal-estar. Um dos braços foram enfaixado às pressas, possivelmente antes do trabalho. Segurava a maleta com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos, e respirava fundo.
- Nono andar. - informou a ascensorista.
- É aqui. - disse um dos asseclas que levava Bethany.
Desembocaram em um corredor cheio de escritórios e pessoas bem-vestidas que andavam por todos os lados. Pararam diante de uma porta; um dos homens bateu e os três entraram.
Tratava-se de um cubículo pequeno, com apenas uma janela que exibia toda a cidade e duas escrivaninhas comuns sem computador. Bethany perguntou-se por que uma corporação como a Umbrella precisaria de uma salinha daquelas naquele edifício.
Assim que um dos homens fechou a porta, alguém às costas de Bethany disse:
- Ora, ora, Srta. Yenne, que bom vê-la.
A moça virou-se, deparando com um homem de terno azul-metálico. Tinha os cabelos muito curtos e olhos azuis e cintilantes.
- Dr. Harker?
O moço sorriu com os lábios apenas. Ironicamente. Bethany franziu a testa, sem entender. Seu superior era Mark Finnigan, e não o Dr. Hark; o segundo era chefe da ordem de pesquisa, líder de um departamento diferente do dela e conhecido por ela, Cássio e outros engenheiros apenas por nome; os laboratórios em que trabalhava não ficavam na indústria de Bethany.
- Doutor, o que está havendo? - indagou a moça - Certamente o senhor não...?
- Sou eu quem faz as perguntas por aqui... senhorita. - retorquiu calmamente Harker, girando uma chave nos dedos.
Bethany aguardou, engolindo em seco.
- O que a senhorita fez hoje, Srta. Yenne?
- Bom... - disse a moça, para ganhar fôlego - O relatório de que tive notícia...
- A senhorita não entendeu... - afirmou Harker, aproximando-se da moça; esta mantinha os braços inúteis junto ao corpo - O que fez hoje? Ao acordar? Se que é que dormiu... Bethany?
A garota franziu a testa diante da última frase.
- Eu...
- Com quantas pessoas conversou, antes de se dirigir ao laboratório uma hora antes do esperado?
Os olhos azuis e cintilantes encararam os castanhos e amedrontados. A imagem de Judy passou pela cabeça da moça; ele sabia.
- Srta. Yenne?
Não fora trazida por sair do serviço sem permissão; e sim por contatar quem não deveria quando não deveria e sobre temas sobre quais não deveria.
- Acha mesmo que os funcionários não são devidamente monitorados? Acha que não vigiamos cada passo de Judith Palttrow, e, em seguida, os seus?
- O que - disse ela - você fez com Erek Leon e Carlos Visconti?
Dr. Harker sorriu novamente com cinismo, as rugas ao redor dos olhos aprofundando-se. Bethany boquiabriu-se, apavorada. Estava sozinha em uma sala fechada, tendo três homens fortes contra ela, as pessoas do lado de fora de nada sabiam e nada saberiam e, naquele exato instante, Erek e Carlos poderiam estar... o coração da garota, já acelerado, pareceu colidir contra seu peito só de pensar...
O que havia acontecido com os outros? E de Will, saberiam? O que lhe aconteceria? O que aconteceria a ela?
Seu rosto parecia petrificado de terror.

Dois - O gato e o rato

Seis e meia da manhã em Raccoon City. Uma moto leve corria pelas ruas da cidade, dirigida por uma mulher. Parando diante de um bar que ficava 24 horas aberto, a moça prendeu tirou o capacete e entrou no estabelecimento.
Não era de estranhar que estivesse vazio; poucas eram as pessoas que se aventuravam em tomar algo alcoólico durante a semana, embora a mulher tivesse a certeza de que um de seus amigos, o advogado William Hoffman, estivesse ali, simplesmente porque o rapaz lhe informara isso meia hora antes, no chat do Messenger.
- Oi, Jeff! - disse a moça, correndo até o balconista - O Will esteve aqui?
- Sim, tomou três copos com a Alice e foram pra casa.
- Obrigada! - e Bethany correu em direção à moto apressadíssima.
Sentando-se no banco da moto, discou um número, errando os dígitos duas vezes. Por fim, conseguiu o número certo e aguardou. O telefone tocou até cair na caixa postal.
- Droga, Will, isso é hora? - praguejou a garota.
Assim, sem como contatar Hoffman (e a moça tinha uma boa idéia de por que), rumou para o laboratório onde trabalhava.
Era uma grande indústria, onde as descobertas eram verificadas e transformadas em produção em série. Como eram sete horas, havia poucas pessoas lá.
Ao entrar, bateu o cartão de entrada e rumou para o escritório que comportava quatro pessoas; uma música do Creedence Clerwater Revival ecoava pelo local em um volume nada incômodo:

"It's today and days before
(Hoje e nos dias anteriores)
Sun is cold and rain is hot
(O sol está frio e a chuva quente)
I know, it's been that way for all my time
(Eu sei, tem estado assim durante minha vida toda )"

Largado em uma das escrivaninhas, com uma caneca em uma mão e outra digitando relatórios, estava um rapaz na faixa dos trinta anos. Seus cabelos pretos e curtos estavam um pouco despenteados, indicando que a mão de seu dono passeara muitas vezes por ali; a barba por fazer lhe dava um charme displicente, e a camiseta por baixo do jaleco parecia um pouco amarrotada; trajava umas jeans folgadas e um tênis confortável, e cantava baixinho a música "Have you ever seen the rain" enquanto trabalhava. Ao contrário do apelido, não era um jovem gordo.
- Oi, gordo. - disse Bethany, largando a bolsa na escrivaninha ao lado e sentando-se.
O rapaz tirou da boca a caneca e olhou para ela, lentamente, como se não a tivesse visto.
- Caiu da cama?
- Tá triste porque não vai me acordar hoje? - ironizou a outra, sentando-se com um suspiro - O que temos hoje?
- Bom, tem um relatório pra você aí na mesa... é pra adaptar pra indústria um medicamento patenteado ontem... detalhe que a matéria-prima é uma planta brasileira, viu. - acrescentou o rapaz, apontando o indicador da mão que segurava a caneca para a mesa da garota.
- E esse negócio que você tá tomando, é brasileiro também? - indagou Bethany, ligando o computador enquanto apanhava as anotações do relatório.
- Mate. Não é brasileiro, é gaúcho. - respondeu o outro, voltando a atenção para o próprio computador enquanto tomava outro gole.
Com as sobrancelhas erguidas,a moça folheou as anotações.
- Ok, coordenar outro processo... vou precisar da turma.
- São sete horas, eles ainda não chegaram. Não precisava ter vindo agora, gorda. Não vai ganhar nada extra no fim do mês por isso.
- Nah, eu vim porque amo a Umbrella, você sabe disso.
- Imagino que sim. - respondeu o outro, enquanto teclava sem parar com as duas mãos - Sempre gostou dos professores e dos patrões, sua puxa-saco.
Uma música nova do Creedence começou; Bethany, reprovando-a, levantou-se, foi até o rádio e voltou à anterior (Have you seen the rain). Ao sentar-se, inclinou-se na cadeira de modo a colocar o braço esquedo no encosto da cadeira e encarar Cássio.
- E se eu disser que não gosto mais da Umbrella?
- Diria que essa não é você e sim uma cópia malfeita que logo descobrirão e que, portanto, é melhor a verdadeira aparecer às oito horas. - retorquiu o rapaz, sem tirar os olhos do computador.
- Gordo... eu tenho uma razão pra vir mais cedo. Eu não dormi.
- O problema será todo seu.
- Olhe pra cá, é sério! - exclamou a moça.
Espreguiçando e coçando a barriga, Cássio parou de digitar e girou a cadeira de modo a poder olhar melhor para Bethany. Ela parecia inquieta.
- Cássio - ela disse, procurando pronunciar o nome no sotaque dos brasileiros -, hoje eu ia dormir quando a Judy... lembra da Judy? Pois é - acrescentou, a um aceno do rapaz - Ela tinha sido transferida, não sabíamos para qual unidade... pois bem, hoje ela me encontrou em segredo e disse que foi trabalhar em uma unidade secreta sob a cidade, a Colmeia, e que aconteceu um acidente lá que ela foi, contra a vontade, investigar assim que nos separamos. E ela me disse claramente que aconteceu alguma coisa, um acidente!
Cássio passou a mão distraidamente pela barba.
- Hm...
- E então? E agora? Imagine algo fora do controle...
- Mas se eles foram lá, estão controlando a coisa.
- E se não conseguirem?
- Aí já é suposição demais. A Umbrella Corporation é poderosíssima, pode conter qualquer coisa que produzir de olhos fechados...
- Somente coisas ilícitas são produzidas em tamanho sigilo! E se são produzidas assim, o risco é grande, gordo!
- Pois eu acho que tudo isso foi o pesadelo que te fez cair da cama.
A moça não conseguia acreditar.
- O quê?
- Olha, se você ficar pensando só nisso, não vai conseguir trabalhar. Eu estou muito bem, estão me pagando bem e eu não tenho nada a ver com essa história, obrigado. Melhor não ficar arrumando confusão.
Bethany ia contra-argumentar quando uma musiquinha ecoou pela sala; era o celular pessoal de Cássio que estava tocando.
- Oi, gatinha. - disse ele, sorrindo e girando a cadeira para se colocar de frente para o computador - E aí, tá livre hoje?
Bethany teve ganas de tomar o aparelho de suas mãos e atirá-lo contra a parede, fazendo espatifar. Contudo, ficou quieta, pensativa.
Algo acontecera, e ela sabia disso. E se estivesse fora do controle? Quantas pessoas mais duvidariam disso? O que teria de acontecer para que acreditassem nela?
Paralela à voz de Cássio, a música do Creedence continuava a invadir o escritório:

"Someone told me long ago
(Alguém me disse há muito tempo)
There's a calm before the storm
(Há uma calmaria antes da tempestade)
I know, it's been coming for some time
(Eu sei, já vem chegando há algum tempo)"
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O relógio ainda não batera sete horas quando Carlos Visconti tocou a campainha de uma casa não muito longe da de Bethany.
Um rapaz de vinte e poucos anos, de cabelos lisos e curtos, com uma franja lateral na altura dos malares abriu a porta, fixando o rosto bonito porém inchado no visitante.
- Olha, cara, eu dormi meia horas apenas. - disse ele - Não estranhe se meu humor estiver um pouco alterado.
- Sim, senhor. - concordou o outro - Posso entrar?
Erek afastou-se, permitindo que Carlos entrasse. Erek estava com uma camiseta branca cavada e uma calça leve; visivelmente era seu pijama. Os dois sentaram-se no sofá, um de frente para o outro.
- Cara, a Bethany acabou de me ligar... - explicou Carlos a um Erek nada animado, dando seqüência à longa narração feita antes pela amiga.
Quando terminou, Erek continuava um pouco mal-humorado, mas não precisava mais lutar tanto contra o sono.
- Achei que você fosse se interessar, cara. - acrescentou Carlos - Você, que vivia falando isso... porque se aconteceu algo, o que Bethany e eu podemos perder é muito mais que nossos empregos.
- Verdade... - concordou Erek, enterrando a cabeça nas mãos - Mas precisamos saber o que é... e mostrar para o mundo, se for o caso.
- Tem alguma idéia? Por mim, eu dava o fora da cidade, mas seria melhor termos a certeza antes de sair correndo.
- E só tem um meio de termos a certeza: indo lá.
- Pela mansão?
- Sim!
Carlos coçou a cabeça, pensativo.
- Tenho roupas especiais - disse Erek, repentinamente acordado - Para evitar contágio... vamos ver o que aconteceu lá, Carl! Os gatos atrás dos ratos!



A mansão a que Judy se referira era a mansão de Spencer, um pouco afastada da cidade, mas ainda no perímetro desta. Quando o carro de Carlos estacionou a uma distância de trezentos metros da gigantesca casa, junto a um arvoredo que o escondia, já eram oito e quinze da manhã. O tempo parecia voar; às seis horas, deitara para dormir, sendo acordado por Bethany às seis e meia; levara quinze minutos para chegar até onde estava a garota e a conversa dos dois durara vinte minutos. Separaram-se às sete e cinco e dali até a casa de Erek, foram dez minutos; conversaram e se prepararam para sair por meia hora, chegando àquele local às oito e quinze.
Os dois amigos vestiram suas roupas especiais - um conjunto branco que lembrava roupa de astronauta, feito para evitar contaminação - e caminharam os trezentos metros restantes até a mansão.
- Se não fosse o gramado, diria que é a lua. - disse Erek, a voz soando levemente anasalada.
- Claro, uma lua com atmosfera pesada, grama, mansão e acidentes humanos. Fala sério, a única coisa que lembra a lua são esses trajes.
- Só estava dando ênfase a eles, Carl.
- Prefiro dar ênfase quando funcionarem.
- Esteja certo que vai; são essas belezinhas que a Umbrella usa, certeza.
Já próximos à mansão, que parecia guardar um mistério com suas compridas janelas fechadas, o silêncio reinou entre os dois amigos; eles galgaram os metros que faltavam e Erek abriu uma das portas de entrada com um empurrão, colocando a mão com um aparelho que lembra uma agenda eletrônico dentro da casa.
- Não há índice de contaminação pelo ar. - informou Erek - Tudo bem.
Os dois entraram no saguão da mansão; de fato, era um suntuoso lugar, com poucos e belos enfeites; era difícil imaginar que servia apenas como entrada secreta para a Colmeia.
- E agora?
- Está tudo limpo, Carl.
Silêncio. Os dois "astronautas" permaneceram parados, no meio do saguão, olhando para os lados. Havia uma mesa muito comprida logo ali na entrada, e as cortinas nas grandes janelas eram de cor vinho. O piso era de mármore escuro e frio. Havia uma escada à frente que levava aos andares superiores, e portas de ambos os lados que levavam a outros cômodos no térreo.
- Olhe, cara! Sangue! - disse repentinamente Erek, abaixando-se.
Carlos olhou para a poça de sangue diante do amigo, levemente enojado.
- Cacete, mano... que diabos aconteceu por aqui... - disse baixinho.
Nheeec... um ruído de porta rangendo no andar superior sobressaltou os dois jovens. Erek ergueu-se de um pulo, como se alguém o houvesse eletrocutado.
- Porra, tem alguém lá! - murmurou Carlos.
- Pode ter sido só o vento. - retrucou Erek com voz controlada.
- Que vento, Erek? As janelas estão todas fechadas!
- Acha que eu devo perguntar?
- Sei lá...
Erek deu um passo à frente. Em seguida outro, em direção à escada.
- O que tá fazendo? - perguntou Carlos em voz baixa.
- Ora, vou lá.
- Tá louco? É assim que filmes de terror começam, cara. Um barulho estranho sempre precisa ser investigado mais de perto...
- Eu sei, Carl, mas estamos aqui para quê? Precisamos de provas!
Apesar da resolução de Erek, o rapaz estava mais pálido que de costume. Cerrando os punhos cobertos pelas luvas brancas, caminhou lentamente como se uma força gravitacional maior que a da Terra o impedisse de andar livremente. Um suor frio escorreu-lhe pela testa, mas não teve como limpá-lo por causa da máscara; ignorando-o, Erek venceu os últimos metros que faltavam e colocou um pé no degrau da escada.
Ouviu um ruído ao seu lado e olhou; Carlos estava ao seu lado, encarando-o. Erek sorriu por baixo da máscara.
Fora o rangido, nenhum outro ruído era ouvido; era como se o silêncio fosse uma música escolhida especialmente pela casa para que o mistério perdurasse, dizendo a qualquer invasor que ele não passava de formigas perto do segredo que ela encerrava. Um segredo que continha, em uma de suas extremidades, uma poça de sangue no saguão de entrada e um rangido pouco convidativo no lugar superior que aquelas duas formigas brancas insistiam em verificar.
Toda a conversa que tiveram naquele fim de madrugada parecia ecoar nas duas mentes, embora um não comunicasse isso ao outro; as palavras de Bethany proferidas por Judy ecoavam nos pensamentos de Carlos Visconti, e as deste, nos de Erek Leon, como uma força que os impelia para fora da mansão.
Um passo. Um degrau.
Um acidente.
Um provável acidente.
Judy não queria entrar lá para saber o que tinha acontecido.
Judy dissera a Bethany para sair da cidade.
Judy passara um mês terrível cheio de paranóias.
Judy, naquele exato instante, conhecia o terrível segredo da Umbrella que se recusara a conhecer às seis horas da manhã.
Outro passo.
E, em breve, os dois conheceriam. Somente cinco degraus os separavam do corredor que possivelmente o encerrava.
Quatro degraus agora.
Um ruído estranho, levemente rascante... roupas atritando com o carpete. Aquele carpete vermelho que cobria a escada.
Do corredor à esquerda. Era só entrar no segundo andar e virar à esquerda para se deparar com o que causava o ruído.
Carlos e Erek não continuaram quando ouviram o ruído. Pararam e encararam-se. Em seguida, outro ruído, baixo, leve, contínuo...
Uma voz.
Uma voz que parecia...
... gemer.
Gemia baixinho.
Tanto Carlos quanto Erek permaneceram em silêncio, os ouvidos aguçados, tentando descobrir, sem ver a que(m) pertenciam aqueles ruídos estranhos.
De repente, um estalo, como o de uma arma a carregar. Mas não vinha do corredor.
- Esta é uma propriedade privada, e os senhores acabaram de invadi-la. Agora, bem devagar, virem-se. - disse uma voz masculina e irônica.
Lentamente, os dois olharam para trás. No meio da escada, apontando uma arma para cada um, estava um homem com trajes também especiais, só que preto. Atrás dele, no saguão, havia outros quatro de vestes idênticas.
- Venham. - disse o homem.
Agora, os gatos eram os ratos.