sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Treze: O inferno começa

Que William Hoffman residia em um bairro afastado e tranqüilo, Erek Leon já sabia. O bar do Dick era um dos poucos endereços comerciais locais, e as casas nas proximidades eram grandes, afastadas e silenciosas. Quando Erek fora deixado para aguardar o retorno de Carlos e Mauricio, a rua estava deserta, bem como o lugar; o bar não estava trancado, e ainda havia copos no balcão. Era como se todos simplesmente houvessem se levantado e partido, o que provavelmente havia acontecido. Nenhum sinal de luta; cadeiras afastadas, porém em pé, como se seus antigos ocupantes houvessem se retirado de forma tranqüila, pacífica. Talvez não estivessem tranqüilos quando houvessem feito aquilo, porém tudo transcorrera bem; contudo, aquele silêncio no crepúsculo era hostil. Era como se o ambiente quisesse enganar Erek, induzi-lo a pensar que estava tudo bem quando o rapaz sabia perfeitamente que a situação nunca se complicara tanto.

E ele sequer sabia que estava preso na cidade, condenado à morte pela empresa que tanto detestava, por um erro que nunca cometera.

Desde que tomara consciência do que se tratava aquela estranha epidemia, deixara sua pistola e sua faca ao alcance e fechara o bar; encontrava-se sentado ao lado da janela de vidro, o rosto colado a ela, à espera de algum movimento; Carlos estava prestes a retornar, e talvez ainda não soubesse da infecção - precisava alertá-lo.

A linha de telefonia morrera havia algum tempo, e Erek estava cada vez mais ansioso; nem Carlos, nem William e muito menos Bethany haviam dado algum sinal de vida. Assim, tudo o que podia fazer era esperar...

Um ronco ao longe e um farol aceso; Erek xingou em voz alta, ergueu-se de um salto e abriu a porta. Abrir, no caso, era levantar aquelas típicas grades metálicas de estabelecimentos comerciais. Ele levantou o suficiente para a moto passar, ainda ligada. Sentiu-se um gângster fazendo isso com aquelas roupas pretas, como no clip "Beat it" do Michael Jackson.

- Desliga logo essa coisa, Carl! - ralhou Erek - Vocês podem ter atraído algum deles!

- Nem brinca, mano, nem brinca! - exclamou Carlos enquanto Mauricio descia da moto - Não acredito no que vi.

- O que você viu?

- Ele não contou, saiu correndo... - começou Mauricio, mas Erek fez um aceno para que se calasse.

- Porra... - disse Carlos - Eu vi o Baker, um colega de trabalho meu... comendo o Brezina!

Tanto Erek quanto Carlos teriam notado que aquela frase seria alvo de risadas e comentários maldosos, dados seus múltiplos sentidos, mas as palavras da reportagem ainda vívidas na mente de Erek e a palidez no rosto de Carlos indicavam que, pelo menos naquele momento, piadinhas não haviam sido cogitadas.

- Canibalismo. - resumiu Erek, inspirando profundamente - Foi o que você se viu.

- Que se dane a expressão correta, um tava comendo o outro! Comendo, mesmo, mano.

Erek concordou com a cabeça; ao contrário de Mauricio, que parecia prestes a desmaiar de terror, o amigo parecia apenas conformado.

- Acho que você não parece muito surpreso. - estranhou Carlos.

- Estava esperando vocês chegarem para contar. Não sabem a merda que aconteceu. - e começou a explicar tudo desde o início; quando encontrou Hoffman, quando descobriram que Alice e Maryane estavam mortas, como lera por acaso a reportagem...

Carlos e Mauricio empalideciam a cada segundo, porém o primeiro parecia firme, mesmo em pé; sentou-se apenas quando suas pernas cansaram, e continuou a escutar a história atentamente. Quando Erek chegou à parte em que encontraram o corpo das duas Hoffman, o rapaz não se conteve.

- Cacete... o que vai ser do Will agora?

Erek prosseguiu com a história enquanto imaginava onde estaria o amigo naquele exato momento; quando terminaram, Carlos estava aparvalhado.

- Então aqueles merdas teriam me mordido no escritório? Eu teria virado um deles?

- Sim, Carl, mas o seu bom senso o salvou. Ainda bem.

Carlos refletiu por um breve instante sobre o número de vezes em que escapara da morte, até perceber que essa análise não era uma prioridade; de repente, seus pensamentos vagaram até Bethany e Will.

- Erek... e Bees?

- Nenhuma notícia.

- Você acha que...

- A esta altura, Carl, só podemos imaginar... talvez seja melhor nem imaginar.

- E Will?

- Não sei, saiu enfurecido daquele jeito dele. Você conhece ele, apostaria a minha arma que ele foi tirar satisfação com alguém. Harker, provavelmente.

- Filho da mãe esse Harker. Erek?

Os três rapazes eram silhuetas no bar às escuras; mal conseguiam discernir os rostos uns dos outros. Haviam ocupado as cadeiras mais próximas e não chamariam a atenção de ninguém que estivesse do lado de fora, dada a facilidade com que se camuflavam no breu e no tom de voz que usavam, abafado pelo local fechado.

- Diga, Carl.

- Eu quero encontrar Bethany.

Erek refletiu brevemente se o fato de Carlos chamar a amiga pelo nome e não pelo apelido seria um indicativo do peso da decisão tomada.

- Carl... Bees também é minha amiga... mas, nas atuais circunstâncias, as chances de ela ainda estar viva são...

- Não termine essa frase. Se não fosse por ela, provavelmente estaríamos mortos.

- Você sabe muito bem que não podemos afirmar isso.

- Ah, qual é, o seu laboratório fica no centro da cidade, te atacariam e você nem poderia chamar a mamãe se a Bees não tivesse me tirado da cama às cinco da matina!

- Carl...

- Acho que ele está certo. - Mauricio manifestou-se repentinamente, sua silhueta mexendo-se e indicando que ele encarava Carlos - A amiga de vocês deve estar morta, não tem outra explicação. Se estiver viva, já saiu da cidade.

- Ah, cara, me poupe do seu pseudo bom senso, você é apenas um cagão que está aqui de alegre e quer uma desculpa pra se acovardar! - retrucou Carlos, mordaz.

- Carlos, pare. - pediu Erek, sempre sério - Ofender o cara não vai trazer a Bees sã e salva.

- Eu não estava tentando trazer ela, só estava mandando uma rajada de realidade para esse cara, puta cara cagão, mano... vocês podem fazer o que quiserem, eu vou procurar ela.

- E como vai enfrentar os canibais?

- Nada que uma bala não resolva, de preferência na cabeça, só pra ter certeza.

- Você tem alguma?

- Em casa, sim.

- Beleza. Vamos esperar o Will voltar e ver se ele tem novidades; dependendo de como for, eu ajudo a procurar a Bees. Quando nós três nos agruparmos, decidiremos tudo.

- Certo.

Mauricio permanecia encolhido, apenas escutando o que diziam. Ainda estava em estado de choque diante daquela revelação: naquele exato momento, Raccoon City estava coalhada de mortos-vivos. Mortos-vivos que não hesitariam em atacá-lo. Mortos-vivos que, horas antes, eram os habitantes da cidade. E estavam encurralados naquele bairro metido bem na ponta do fim do mundo.

Estava sonhando, só podia ser isso.

Os minutos transcorreram lentamente, e os últimos raios de sol recolhiam-se, de modo que o céu adquiria tons cada vez mais escuros. Erek e Carlos nada diziam, sentados de frente um para o outro, pensativos. Não é preciso discorrer que tudo passa pela cabeça de uma pessoa nessas situações: havia um grave problema que apelava para o instinto de autopreservação do bicho homem, porém nenhuma das três almas ali presentes corria risco imediato e todas ainda gozavam de um momento de breve descanso físico, que seria procedido por decisões que foram, naquele momento, adiadas. Numa situação dessas, pensa-se no passado, no presente, no futuro, no presente... em todas as experiências, nas pessoas conhecidas, algumas vezes em pessoas desconhecidas... saboreia-se o medo, a dor, a raiva, a angústia e a saudade. A prioridade dos sentimentos varia de pessoa para pessoa.

Erek pensava em todas as vezes em que acusara a Umbrella de práticas ilegais. Apesar de afirmar para todos que tinha certeza de que algo assim um dia aconteceria, nem mesmo ele pensara que, de fato, fosse acontecer - não daquele jeito. Mortos-vivos, caminhando sem rumo pela cidade e devorando as pessoas? Era uma brincadeira de muito mau gosto.

Carlos pensava no que fazer. Estaria Will bem? Se ele aparecesse, o que fariam? Sairiam da cidade, procurando Bees pelo caminho? Varreriam a cidade em busca de Bees? Como os mortos-vivos seriam contidos? Como estaria sua família em sua cidade natal? Harker a deixaria em paz? E se Will não aparecesse? Ficariam ali até quando?

Mauricio só queria descobrir que aquilo tudo era um pesadelo e acordar às seis horas da manhã para trabalhar.

De repente, o ruído de um motor ecoou pela rua deserta; era um ruído característico, familiar, abafado por uma música alta de rock.

- Chegou! - disse Erek, erguendo-se para abrir a porta.

O jipe de William Hoffman parou cantando pneu diante do estabelecimento, e o cowboy texano saltou do veículo; os óculos escuros ainda no rosto anulavam qualquer expressão sua, e o cigarro brincava no canto de sua boca.

- Desliga o rádio, Will! - pediu Erek com impaciência - Ou eles vêm chupar os seus miolos!

Inclinando-se por cima do banco em um movimento displicente, Hoffman desligou o rádio e retornou ao grupo, na frente da loja.

- E é melhor entrar, você com certeza atraiu algum deles.

- Pouco provável, contornei a cidade até aqui. - respondeu William calmamente - E o Dick?

- Se mandou há tempos, cara.

- Todo o mundo bem? Alguém ferido?

- Estamos todos bem. - respondeu Carlos - Só esperando. Onde raios você se meteu?

- Estava acertando contas com o assassino de minhas garotas, Carl, como você deve saber. O filho da puta escapou. - acrescentou, respondendo a uma pergunta silenciosa - Mas fez questão de dar o troco.

- Como assim?

- Ele mandou trancar toda e qualquer porta desta maldita cidade. Estamos presos, encurralados, o que preferirem. Mesmo que alcancemos as saídas no meio dessa merda, estará trancada. Com uns bostas de tocaia para atirar assim que um vivente der o ar da sua graça por aqueles cantos.

Erek e Carlos xingaram alto, e Mauricio apenas arregalou os olhos, tentando absorver a informação de que não só estavam cercados por mortos-vivos como estavam presos com eles, como ratinhos na jaula de um leão faminto. E aquele homem de chapéu dizia aquilo com toda a tranqüilidade - só podia estar brincando!

- Fodeu. - Carlos resumiu a situação em que estavam.

- Não necessariamente. Não sei quanto às mocinhas, mas nesta festa é que não fico. - afirmou William calmamente, jogando o toco de cigarro no chão e apagando com o pé - Eu preciso estar vivo para pegar aqueles desgraçados, e para isso, preciso sair da cidade. Quem quiser, venha comigo.

- Ah, claro, porque eu pensei seriamente em ficar aqui, tomar todos os Johnny Walkers que o Dick armazena atrás do balcão e morrer... - ironizou Erek - É claro que vamos com você! Qual é o plano?

- Vamos para a minha casa. Esta será uma longa noite, e precisamos estar preparados para ela.

- Beleza. Minha moto cabe na traseira dessa banheira? - perguntou Leon, indicando o jipe com a cabeça.

- Nunca chame meu companheiro de viagem dessa forma.

Erek sorriu.

- Então vou buscar a minha belezinha. Agüenta aí.

William apenas ergueu as sobrancelhas com um sorriso tranqüilo enquanto acendia outro cigarro.
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Como se estivessem jogando o jogo dos sete erros, o primeiro fato curioso que os quatro rapazes notaram, a bordo do jipe de Hoffman,, ao chegar na casa do amigo, foi a porta da fachada aberta.

- Pensei que a tivesse trancado.

- Você estava muito nervoso, cara, deve ter só batido.

Os três amigos saltaram do jipe; Mauricio imitou-os receoso de ficar sozinho.

- Certo, precisamos de um vigia. Pode ser você, filho. - acrescentou William para Mauricio - Fique aí no carro; se aparecer uma daquelas criaturas, atire na cabeça.

Mauricio empalideceu.

- Mas... eu nem sei atirar...

- Will, talvez não seja uma boa idéia. Esse cara vai acabar dando um tiro no próprio saco. - comentou Erek, impaciente.

- Alguma idéia melhor?

- Me dê a arma, eu fico aqui de prontidão. Se eu der um tiro, vocês saberão.

William assentiu.

- Feito. Fiquem vocês dois que Carlos e eu entraremos.

Assim, Erek saltou para o banco do motorista, e Mauricio colocou-se ao seu lado. Sacando o próprio revólver, William iniciou sua caminhada até a porta aberta. Na entrada, passou a arma para o companheiro e sacou a Magnum.

- Will? - sussurrou Carlos - Você sabe, não sabe?

- O quê?

- Alice e Mary...

- Por que tu acha que eu tô armado, parceiro? Me dê cobertura.

Carlos concordou; William deu um passo à frente, sua bota tocando o capacho da entrada e, com uma mão, tateou a parede interna, da casa, à procura do interruptor. Estava preparado para saltar para trás, para longe da mira de Carlos, a qualquer ruído.

Seus dedos encontraram o interruptor, e foi com satisfação que eles os acionou. Imediatamente, o hall e a sala foram iluminados; apesar do silêncio hostil, nada parecia fora do lugar.

Atentos a qualquer ruído, os dois pisaram no tapete de desenhos abstratos do hall; apenas escutavam a respiração do outro. Nada se mexia no pavimento superior, nada se movia na sala. E a porta que levava à garagem estava aberta.

Carlos olhou para ela, receoso, porém um movimento repentino em sua visão periférica chamou-lhe imediatamente a atenção; era Will, que gesticulava com a mão livre, chamando-o. Quando recebeu a atenção desejada, indicou a porta que o amigo sabia levar ao porão. Carlos concordou com um aceno e os dois rumaram para ela. Quando Will começou a apalpar o sobretudo, Carlos redobrou a atenção, posicionando-se de costas para o amigo, como um segurança, olhando para todos os lados. Ouviu um barulho metálico e abafado de chaves e, quando olhou para William, este já havia enfiado a chave na fechadura.

A porta não abriu com um rangido, indicando que William passava óleo nas dobradiças com freqüência, e Carlos agradeceu mentalmente por isso; até ali, haviam se saído maravilhosamente bem, se provocar um ruído sequer - o das chaves fora muito baixo, e Visconti só o escutara por estar muito perto. William acendeu a luz, que iluminou uma escada que desaparecia no subsolo e, em seguida, comprimiu-se contra a parede para Carlos entrar e fechou silenciosamente a porta atrás de si.

- Dá para ouvir a rua daqui? - sibilou Carlos.

- Não. Os outros ficarão bem.

Carlos concordou com a cabeça e seguiu o amigo escada adentro. Embora porões fossem cenário de histórias de terror, sentia-se seguro naquele; era o único lugar da cidade onde tinha certeza de que ninguém os atacaria. Conhecendo William Hoffman, sabia que nem o serviço secreto da Umbrella ousaria pisar ali sem topar com algo que avisasse William de sua presença... provavelmente torrara dinheiro em recursos tecnológicos discretos e de última geração para garantir a segurança daquele lugar, que aparentemente continha algo muito importante para a sobrevivência em uma cidade atacada por mortos-vivos...

- Will - chamou Carlos ainda com esses pensamentos - Quais mecanismos de segurança você usa neste lugar?

- Passo a chave nele toda vez que saio. Por quê?

- Hm - fez Carlos, ligeiramente frustrado - Fiquei curioso, só. - e, pensando melhor, acrescentou - Afinal, cara, no que você torra todo o seu dinheiro? Sua casa é humilde, seu carro é velho, você não viaja muito, não gasta à toa...

- Torro naquilo.

Haviam chegado ao fim da escada, onde William levara a mão automaticamente ao interruptor que ali havia, iluminando o resto do porão.

Carlos ergueu a cabeça e boquiabriu-se. Não havia utensílios velhos empilhados, como bem havia suposto; o conteúdo do lugar, porém, não era exatamente imprevisível, tendo como base a personalidade do amigo texano. Não que Carlos não houvesse se surpreendido; é que aquilo era elevar os hábitos de William ao extremo, beirando o exagero.

Armas de fogo, armas de longo alcance, armas de curto alcance, armas de todos os tipos de calibre e tamanhos, armas de vários anos haviam sido organizadas em prateleiras e mais prateleiras iluminadas pela lâmpada fria, eqüiparando aquele pequeno porão a um arsenal militar. Poderiam ser facilmente mais de cem.

- Quem diria... - assoviou Carlos - Eu sou amigo de um colecionador, dos bons.

- Isso se chama sorte, companheiro. Vai, me ajuda a pegar algumas menininhas.

- Quais?

- Recomendo umas duas ou três. Para você, as melhores são as leves.

Os dois se separaram; Carlos não prestou muita atenção no que o amigo fazia, estava fascinado com a peculiaridade do lugar onde se encontrava. Ao ouvir o conselho do advogado, vagou, perdido até encontrar as prataleiras que continham pistolas. Optou por duas Desert Eagle.50.

- Hmm - fez William aprovadoramente, observando de seu canto - Sete balas a rodada. Leve cinco pentes.

- Eu posso carregar mais.

- Não, não pode. Vai por mim - acrescentou Will, o cigarro apagado no canto da boca, abaixando a cabeça para uma prateleira qualquer.

Carlos não discutiu, perguntando-se o que o amigo tinha em mente; encontrou os pentes na prateleira sob as armas e os embolsou.

- Tem coldres ali no canto. - avisou Hoffman , de cabeça baixa, olhando para as armas- Vai caçando o que precisar. Não vamos esbarrar em um arsenal a cada esquina.

Carlos apanhou um coldre, prendeu-o à cintura e guardou nele as pistolas e a munição. Caminhou, desacostumado ao peso no quadril, à procura de mais armas.

- O que é melhor para o Erek?

- Algo mais forte, pesado. E uma pistola.

Carlos retornou às pistolas e escolheu uma diferente; encontrou rifles adiante e apanhou, passando a bandoleira pelo ombro.

- E aquele pobre infeliz, o Mauricio?

- Pistolas também. Glock 18, leve duas.

Carlos apanhou mais dois coldres e colocou-os a tiracolo, sentindo-se um perfeito cabideiro; as armas e a munição estavam começando a pesar.

- Mais alguma coisa?

- Acho que é só... - disse Hoffman, erguendo um rifle com tranqüilidade, apenas para admirá-lo - É... ah, tem as facas também. Cada um precisa levar uma.

- Você tem alguma idéia, Will? - perguntou Carlos, encaminhando-se para uma mesa de vidro com armas brancas - Estamos na merda, cara.

- Só posso concordar contigo. - retorquiu o amigo calmamente, caminhando entre as fileiras de rifles e escopetas - Qualquer coisa, meu santo tá garantido. - e apontou para o crucifixo.

- Diz isso ao Erek, ele é ateu.

William esboçou um meio sorriso enquanto Carlos tornava a olhar para as lâminas. Cada um poderia levar duas, pensou o programador, e tentar não perder nenhuma. Nenhum deles usaria ao mesmo tempo duas, o que significava que uma ficaria guardada... somente Bees sabia manejar duas espadas ao mesmo tempo. Ela praticava... qual era mesmo o nome daquele tipo de arte marcial? Teria de perguntar quando a encontrasse...

Escolheu algumas foices, adagas e facões enfiou-os nos coldres com todo o cuidado; pareciam muito afiadas e estavam impecavelmente polidas, como tudo naquele lugar.

- Seria bom também que evitássemos o máximo de contato com a mordida deles. - comentou Carlos - Você também armazena trajes?

- Tenho coletes, cotoveleira... quer?

- Não, estava pensando em algo para o braço e para o pescoço. Seria bom ter alguma coisa pra evitar isso.

- Ah, sim... nesse caso, cautela, mano... muita cautela!

Carregando uma segunda Magnum com um estalo característico de filmes de ação, o texano acrescentou:

- Tenho alguns casacos lá em cima. Não resolve, mas ajuda.

- Valeu, mano, mas acho que morro de calor com um dos seus casacos antes de receber alguma dentada.

- Tu é quem sabe. Pegou tudo?

- Arma, munição, faca, bandoleira, coldre... e você, o que vai levar?

William apenas sorriu, guardando a segunda Magnum dentro do sobretudo.

- Cara, você tem um arsenal e só vai levar dois revólveres?

- Não esquenta, eu me viro. E aí, pegou tudo?

- Bom, creio que sim. Falta alguma coisa?

- Falta. - disse William, dirigindo-se a uma gaveta à direita de Carlos e a abrindo com um tapa - Cigarros. - acrescentou, tirando três maços de Marlboro e guardando-os no bolso.

- Você mais mesmo guardar cigarro onde caberia mais munição?

William ergueu as sobrancelhas por trás dos óculos escuros, visivelmente surpreso.

- Mano... tu já percebeu que ando com casaco mesmo no calor?

- Já, e já senti calafrios por isso, por mais paradoxal que possa parecer. Será que estou prestes a descobrir por quê?

William sorriu, o cigarro na boca, e puxou um dos lados do sobretudo, a fim de revelar seu interior.

- Bolsos para guardar cigarro. - respondeu com simplicidade - Acho que já pegamos tudo. Falta a comida.

- Não tem comida nas gavetas, tem?

- Não, mas na cozinha tem. Faz o seguinte: leva a carga para os caras lá fora que eu apanho as rações.

- Eu não vou reclamar se tiver granola.

Os dois subiram as escadas, Will parando para apagar as luzes atrás de si. Quando se aproximaram da porta, Will levou os dedos aos lábios e sussurrou:

- Te dou cobertura. Apenas cai fora.

O texano abriu silenciosamente a porta e aguardou; não houve nenhum ruído. Carlos esgueirou-se para a sala de forma ágil, considerando-se o peso que carregava, sempre olhando atentamente para os lados. Os segundos vieram e passaram sem que um ruído fosse ouvido, e William seguiu-o também sem fazer barulho. Não havia nenhum volume desproporcional em seu sobretudo impenetrável, e o cowboy apenas estava munido de uma Magnum. Finalmente, Carlos chegou à porta, olhou para os lados e saiu.

Erek e Mauricio eram visíveis no carro, exatamente onde aviam se colocado quando a outra dupla entrou na casa, e ambos olhavam para Carlos boquiabertos; Carlos demorou alguns segundos para entender que eles ainda não sabiam do arsenal de William. Ele caminhou o mais rápido que pôde até o jipe enquanto Erek saltava do veículo para ajudá-lo.

- Nossa, Will deve ter esvaziado o arsenal dele em você!

- É aí que você se engana; acho que não peguei nem um décimo do que ele possui.

- Caramba, como ele nunca me contou uma coisa dessas?!

- Pelo visto, não contou a ninguém.

Os dois carregaram as armas e as soltaram no banco traseiro do carro, organizando o arsenal que possuíam. Quando Carlos estava distribuindo os coldres entre os membros do grupo, ouviram um tiro. Imediatamente, Erek apanhou uma arma e deu um passo na direção da casa.

- Não. - disse Carlos - Deixe.

- Mas ele pode precisar de ajuda...

- Ele não precisa e nem quer.

Um segundo tiro. Mauricio olhava da casa para a dupla, apavorado. Carlos e Erek haviam abaixado a cabeça em uma muda compreensão dos fatos que aconteciam naquela noite. Tentavam afastar todo e qualquer tipo de pensamento, sem sucesso.

- Bem... eu acho que isso foi tudo. - concluiu Erek.

Carlos assentiu.

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Enquanto Visconti saía da casa com sucesso, William, por sua vez, caminhou até a cozinha naquele passo preciso e desprovido de charmes ou meneios, que indicava determinação e cautela. Ainda não acendera o cigarro. A porta da cozinha estava apenas encostada; pensou ter ouvido o ruído de um talher caindo.

Suspirou. Algo lhe dizia não se tratar de uma coincidência.

Colocou-se ao lado da porta, junto às dobradiças, sempre atento; sabia que esse momento chegaria. Não estava disposto a deixar as duas mulheres de sua vida vagarem sem alma, e sabia também que elas não teriam ido muito longe enquanto esteve fora. E sabia que somente uma pessoa teria de fazer o serviço.

Não ficara sozinho em casa por acaso. Planejara aquilo desde que se reunira aos amigos. O momento era aquele e não deixaria passar; sabia que não estavam vivas, sabia que as tinha perdido no instante em que as tocara, porém havia uma resistência em alguma parte do seu corpo em simplesmente abrir a porta e entrar. Apesar de saber que era o correto a fazer, não deixava de se sentir miserável por isso.; ao mesmo tempo em que sentia que precisava dar um destino decente aos seus corpos, era como se as estivesse matando... e, ao mesmo tempo, ainda, era como se seu espírito se recusasse a ver no que as duas haviam se transformado... por sua culpa.

Por mais sedento de vingança que estivesse, sabia que a culpa estava devorando sua mente, seu espírito. Sabia que o último culpado digno de vingança... era ele.

Não queria mais pensar; com um movimento repentino, endireitou-se diante da porta, empurrou-a com um pontapé e esperou. Imediatamente, um gemido ecoou pela cozinha na penumbra, iluminada apenas pela noite clara que penetrava pela janela de vidro; Alice sempre erguia as venezianas quando acordava e as descia à noite. Desta vez, não havia descido.

O primeiro vulto que divisou arrastando-se pela cozinha era o de Alice; ao ver William, ele se aproximou, andando lentamente, com um gemido baixo e contínuo. William recuou o quanto pôde, tentando readquirir o máximo de bom senso que perdera ao se deparar com aquela cena. Poderia ter passado anos refletindo ao lado da porta - antes de abri-la com chute - que jamais estaria preparado para aquilo.

Quando Alice foi iluminada pela luz do corredor, William pôde vê-la com clareza. Pálida como a morte, as vestes sujas de vômito e sangue, estava mais ferida do que da última vez em que a vira. Seu rosto estava macerado em uma das bochechas, e havia muito sangue e carne exposta ao redor; parte do músculo masseter estava pendurada. Hoffman podia imaginar que havia acontecido em sua breve ausência.

- Eu sinto muito, meu amor. - e, sem pensar muito, esticou o braço e apertou o gatilho. A bala acertou Alice bem no meio da testa e a empurrou para trás, causando-lhe uma queda que não a fez mover-se mais.

Ouviu um gemido abaixo de sua cintura; atraída, sem dúvida, pelo tiro ou pela voz do pai, Maryane mancara silenciosamente em sua direção, a boca escancarada e suja de sangue. Pálida como a mãe, os olhos esbranquiçados e os dentes amarelados e altamente infectados, ela conseguira tocar a calça de William e estava pronta para atacar.

Instintivamente, William apertou novamente o gatilho. A bala acertou a testa da garotinha, fragmentando-se em sua carne, arrebentando-lhe a cabeça, que agora se transformara em pouco mais do que uma massa sangrenta.

E agora estavam as duas mortas em sua própria casa, pela segunda vez, uma à frente e a outra à direita. No corredor por onde haviam passado tantas vezes, rindo ou chorando, com ou sem William... enquanto haviam vivido. E agora estavam mortas.

Controlando-se para não pensar, Hoffman caminhou até o quintal, onde havia uma estufa; Alice adorava plantas, e Maryane sempre a ajudara a plantás-las e regá-las com entusiasmo. Havia um local escavado pelo advogado recentemente, onde plantariam algumas mudas em poucos dias. William calculara bem; era uma cova rasa um pouco maior que uma pessoa. Sem delongas, carregou o corpo da mulher e o da filha e colocou-os no buraco - uma abraçada a outra - e cobriu-as com um lençol. Deixara uma trilha de sangue pelo caminho, mas não se importava com isso.

Em seguida, apanhou a pá e jogou a terra recém-removida sobre seus corpos. Não foi um trabalho longo; só precisara empurrar a terra de volta ao seu lugar. Terminado o serviço, enfiou a mão em um dos bolsos, sacou um crucifixo de alumínio e colocou-o onde estaria enterrada a cabeça de Alice. Silenciosamente, fez o sinal da cruz e sussurrou:

- Descansem em paz, minhas meninas. Eu sinto muito.

Em Raccoon City, finalmente o caos fora substituído pelo silêncio. Os gritos haviam cessado; o trânsito havia parado. Em cada canto, o pânico. Medo. Dor. Solidão. Um dia em que cada segundo desperdiçado podia ser a diferença entre a vida e a morte, de uma forma mais nítida. Sangue, dor, perdas. Gritos de agonia seguidos de um silêncio perturbador, interrompido apenas por estranhos ruídos nas sombras.

Aquele era um dia em Raccoon City.


William Hoffman deu as costas ao túmulo e retornou à casa, parando apenas para acender um cigarro; ainda havia uma missão a ser cumprida e uma noite cheia pela frente.



Dust In The Wind (Poeira ao Vento) - Kansas


I close my eyes
(Eu fecho meus olhos)

Only for a moment,
(Apenas por um momento)

And the moment's gone.
(E o momento desaparece)

All my dreams,
(Todos os meus sonhos)

Pass before my eyes, a curiousity.
(Passam na frente dos meus olhos, uma curiosidade)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All they are is dust in the wind.
(Tudo que eles são é poeira ao vento)

Same old song,
(A mesma antiga canção)

Just a drop of water in an endless sea.
(Apenas uma gota d'água em um oceano sem fim)

All we do
(Tudo que fazemos)

Crumbles to the ground,
(Desaba sobre a terra)

Though we refuse to see.
(Embora nós nos recusemos a ver)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All we are is dust in the wind.
(Tudo que nós somos é poeira ao vento)

Now, don't hang on,
(Agora, não desista)

Nothing lasts forever
(Nada dura para sempre)

But the earth and sky.
(Além da terra e do céu)

It slips away,
(Ele fugirá)

And all your money
(E todo o seu dinheiro)

Won't another minute buy.
(Não vai comprar outro minuto)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All we are is dust in the wind.
(Tudo que somos é poeira ao vento)

Dust in the wind,
(Poeira ao vento)

All we are is dust in the wind.
(Tudo que somos é poeira ao vento)


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Fim da primeira parte.




sábado, 26 de setembro de 2009

Doze: As portas se fecham

Pelas ruas de Raccoon City, outrora tão organizadas e movimentadas, notava-se o tão recente e crescente caos. A tarde avançava, célere, sem aguardar resolução alguma, e o sol parecia afastar-se daquela cidade como se afirmasse não poder reinar sobre um império de trevas. As ruas, sempre tão espaçosas, agora eram pequenas para o trânsito caótico que ali se instaurara. Ruas e mais ruas centrais, estreitas ou largas, testemunhavam acidentes consecutivos no tráfego; pessoas, feridas de diversas formas, esgueiravam-se por carros e lojas, gritando por conhecidos, gritando de dor, gritando de medo. Algumas ainda carregavam malas para um destino desconhecido, segurando as mãos de entes queridos; desistindo de transitar pelas ruas caóticas, caminhavam a pé rumo à saída da cidade, e nem assim deixavam de ser vítimas, ora de carros por alguma razão desgovernados, ora de pessoas vítimas daquela estranha epidemia que se alastrava como fogo em pólvora. Os gritos e vozes que se misturavam não tinham como fonte apenas as ruas em si, mas também os prédios; objetos de uso pessoal, por vezes, caíam das janelas dos edifícios ao mesmo tempo em que brados de um pânico generalizado eram ouvidos; brados misturados a sinistros e constantes gemidos.

Qualquer instituição responsável pela ordem pública - polícia, corpo de bombeiros, até mesmo a Umbrella Corporation - havia desaparecido em meio ao caos. Assim, a cidade se resumia ao medo, à dor e ao abandono.

- Fabian! Fabian!

Um menino abriu os olhos, deparando com a escuridão interrompida apenas por uma fresta de luz entre seus olhos; um pensamento obscuro ocorreu-lhe no mesmo instante em que a carga de adrenalina atingia o ápice subindo à sua nuca. Empurrou com força as duas portas à sua frente, deparando com a claridade da tarde que avançava e aprumou-se fora do armário de seu quarto.

Instantaneamente, um grito estrangulado ecoou à sua direita, e um vulto quase duas vezes mais alto jogou-se sobre o frágil corpo de uma criança de oito anos; o menino nada pôde fazer a não ser gritar, enquanto aquele ser, que outrora fora seu herói - seu pai Robert -, abocanhava seu ombro, ávido, com a mesma satisfação que mordera uma coxa de galinha diante do filho tantas vezes no jantar, após dias cansativos de trabalho.


Um grito feminino, mais humano, em algum ponto acima, uma pancada
aguda, um encontro embolado de corpos, e uma mão puxando a gola de sua camisa.


- Corra, depressa!

O garoto ergueu aos tropeços de seu quarto, insensível a tudo o que acontecia, pensando em seu objetivo que era a porta à sua frente... saltou carrinhos e cadernos espalhados, ignorou o computador ligado - que, por sinal, estivera usando meia hora antes de seu pai chegar. Ainda se lembrava...

Saiu do quarto, entrando no corredor impecável...

Acordara gripado, e aproveitara a oportunidade para faltar de aula com o consentimento da mãe. Mal sabia ela que o estava livrando da cobrança de um trabalho escolar que ele não fizera...

Podia ouvir passos céleres atrás de si...

A mãe e o pai haviam saído para trabalhar, e no instante em que a porta batera, o garoto saíra da cama e voara para o computador. Havia monstros a exterminar antes do almoço...

Agora que corria, apavorado e confuso, e o corredor onde tantas brincara com o carro de controle remoto parecia bem maior do que até então fora...


A manhã passara tão rapidamente quanto um relâmpago; batera recordes exterminando monstros, seus colegas de sala não acreditariam nisso... então ouvira alguém chegar.

As escadas, as escadas! Conseguira alcançá-las, e os passos continuavam a ecoar, bem como um estranho e terrivelmente familiar rosnado...


Desligara o pc e voltara correndo para cama; era fim da tarde, e nem seu pai e nem sua mãe haviam voltado até aquele instante, o que era normal. Qual dos dois chegara? Logo descobriria.

Será que arriscaria descer pelo corrimão? Parecia-lhe uma boa idéia, afinal os passos atrás de si estavam demasiado próximos; nunca ganhara de seu pai nas corridas - suas pernas eram muito menores...

Mas não descobrira. O recém-chegado, fosse quem fosse, não entrara no quarto; Fabian ouvira um estardalhaço na cozinha - alguém derrubara as panelas -, e o telefone no mesmo local tocara. Lembrava-se que temera pela vida mais do que tudo, miaginando se
algum ladrão acabara de invadir sua casa quando a voz de seu pai, atendendo ao telefone, ecoara. stivera gritando, gritando para a mulher voltar para casa.


O medo levou a melhor; decidiu descer pelos degraus, como a mãe sempre recomendara, os passos atrás de si eram assustadoramente céleres...


Aliviadíssimo por ouvir a voz do pai, levantara-se e correra até a cozinha - péssima decisão - para encontrá-lo caído no chão, ao lado da mesa redonda, a cabeça entre as pernas. Não notara que a camisa que o pai estava usando não era a mesma da manhã, mas observara que seu ombro estava ferido e enfaixado cuidadosamente, como o garoto vira tantas vezes em filmes.
"Papai, o que aconteceu?"

- Não olhe para trás, Fabian!


Quase podia sentir o alívio mesclar-se à aflição quando a voz da mãe gritara logo atrás; não era seu pai quem estava tão próximo, era
ela!


Robert apenas erguera o rosto assustadoramente pálido, os olhos esbranquiçados, e soltara um rosnado mais animalesco que o dos cachorros que criara; Fabian, até então agachado, correra intuitivamente, e pôde ouvir o pai segui-lo escada acima até o seu quarto...


Pulou os três últimos degraus, caindo em pé como um gato, e correu até o hall. A porta estava entreaberta, a luz solar vespertina penetrando na fresta... só mais um pouquinho...


... e fechara-se em seu armário. Para sua surpresa, o pai não o procurara, mesmo aquele esconderijo sendo tão óbvio quanto o vão sob a cama. Sem dúvida, fora muito estranho, porque Robert apenas vagara, tonto, pelo quarto, sem se dar o trabalho de encontrar o filho; uma vez que este estivera fora de suas vistas, sua presença não mais o incomodara, passando, então, a vagar pelo quarto por vários minutos, até o grito da mãe ecoar por toda a casa...


Puxou a porta com força, precipitando-se por ela com a sede de quem busca um jarro de água no deserto; estava tão ávido por escapar que tropeçou no primeiro degrau de cimento à entrada da casa.
Sabia por que o pai estava agindo daquele jeito. Escutara tantas vezes através das portas e frestas, ou até mesmo, camuflado entre os balaústres o que sua mãe tanto dissera a Robert: um dia a bebida o mataria.

E enquanto isso não acontecesse, ele voltaria para casa bêbado, mal conseguindo esgueirar-se até a própria cama. Não deveria ter ido ver o pai na cozinha; deveria era ter se escondido, como sempre fizera.


- Levante-se, meu filho!


Uma mão o puxou para cima, e o estranho gemido que o seguia pareceu mais alto; o garoto arrastou-se para frente, pondo-se de pé no instante em que ouvia um forte baque; virando-se, deparou com o próprio pai caído sobre sua mãe, esta descabelada, as vestes rotas e sangrentas; a mulher gritou enquanto tinha a região da clavícula abocanhada, aquele líquido vermelho-vivo sujando-lhe as vestes mais intensamente.


- Larga ela!

O menino tentou empurrar o pai para longe, porém este parecia bem mais forte; quando as mãos do garoto, ensangüentadas (ele estava sangrando?!), empurraram o rosto de Robert no intuito de fazê-lo largar a pele da mãe, os dentes aparentemente sujos de limo do homem fecharam-se em torno de seus dedos. Fabian gritou, e sua mãe também, seus gritos misturando-se aos rosnados, mordidas e todo o ruído da sombria luta da qual a família, embolada no chão, na fachada da casa, participavam. Era fato que mãe e filho não conseguiam dominar aquele homem estranhamente sedento de sangue...

Passos pesados e um tiro abafado por um silenciador; no instante seguinte, Robert, com um buraco no cocuruto, não se mexia mais; a mãe empurrou seu corpo inerte para o lado, erguendo-se com dificuldade devido aos ferimentos e arrastando junto seu filho. Diante dos dois, um homem jovem, trajando a farda dos S.T.A.R.S, fitava-os, o olhar enigmático sob as sobrancelhas densas.

- Sinto por ele. - disse ele, indicando o morto com a cabeça - Estão todos bem?

- Olhe bem para a gente! - retorquiu a mulher, o rosto contraído de desespero, enquanto abraçava o filho à frente, os braços, pernas, pescoço, tronco e rosto manchados de sangue - É claro que não!

O menininho, sentindo seu ombro latejar quando a mãe tocou sua ferida, fez uma careta, assustado com sua histeria.

- Nós podemos ajudar. - disse o rapaz - Venha conosco, podemos ajudá-la. Todos estão saindo da cidade...

- Você não entendeu?! Não adianta mais! - exclamou a mulher, as mãos fechando-se no colarinho do filho - Eu sei o que acontece quando eles te mordem! Não vê? Acabou.

Um segundo S.T.A.R, mais atarracado, então, aproximou-se, as feições largas contorcidas de preocupação.


- Estão todos bem, DB? É melhor nos apressarmos...

- Certo, Matt... - disse o primeiro, olhando para o companheiro - Olhe, esses dois estão feridos, precisamos de...


Mas do que eles precisavam, o jovem de boina nunca chegou a saber porque, naquele instante, um rosnado baixo o interrompeu, e quando os dois voltaram-se para verificar, a mãe estava mordendo a orelha de sua cria, que gritava desesperadamente.


- Merda! - exclamou o segundo S.T.A.R., enquanto o primeiro erguia a pistola e efetuava outro disparo.
Contudo, um movimento brusco do menino que se debatia causou-lhe um raro erro, e o tiro não acertou o rosto da mulher, e sim testa da criança, que desabou como uma marionete; a mãe, pálida e indiferente à perda de seu único filho, deixou-se cair sobre ele, abocanhando cada parte do seu corpo que conseguia.

O rapaz de boina olhou para o lado, enojado, e DB, franzindo a testa e crispando os lábios, igualmente revoltado, disparou novamente, acertando a mulher desta vez. Os segundos seguintes, em que DB apenas olhou para o resultado de seus disparos e Matt imitou-o, foram extremamente desagradáveis, até o silêncio ser quebrado.

- DB? - chamou Matt - Vamos...


Somente quando o amigo segurou-o com firmeza pelo ombro, DB acordou de um devaneio, taciturno; sem olhar novamente para a família morta na porta da própria casa, deu-lhe as costas, seguindo com o amigo para o carro, de onde seus outros dois companheiros haviam assistido a tudo.


Mais uma família inocente que morria de uma forma tão horrorosa... por culpa da Umbrella Corporation.


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Enquanto William Hoffman retornava à sua casa para descobrir que sua família morrera, o jovem Mauricio encontrava-se em uma companhia de celular sem sinal, e o plano para encontrar aquela mulher desconhecida, a tal Bethany, acabara de falhar; não havia nada a fazer a não ser retornar. Provaelmente, Visconti também havia notado que tudo fora por água abaixo.


Esforçando-se para manter o porte de funcionário do local, o rapaz desceu as pulos as escadas, endireitou o colarinho das vestes e voltou à entrada; os clientes insatisfeitos gritavam com as atendentes, que também pareciam espantadas com o ocorrido. Coçando a cabeça disfarçadamente, o rapaz esgueirou-se pela entrada, deparando com um intrigado Carlos, que não parava de discar qualquer número em seu celular.

- O que aconteceu?

- A linha está morta. - respondeu o programador - Eu não entendo...

- Acha que houve alguma falha, algum satélite no lugar errado?


- Estamos em um polo de tecnologia avançada, sede da Umbrella Corporation, mano. Acha que aqui a linha simplesmente sofre um infarto e morre? - retorquiu o outro, ainda olhando para o celular que Dick lhe emprestara.

- O que quer dizer?

- Diabos, não é uma coincidência! - resumiu Carlos, fechando o celular impacientemente com um estalo - A rede está morta.

- E agora? Carlos coçou a cabeça, os olhos muito verdes fora de foco; desceu as mãos pelas bochechas ligeiramente ásperas - não se barbeara fazia mais de um dia -, pensativo, até estalar os dedos repentinamente.

- Freqüência. É, é o único jeito.


Mauricio, que mantivera os olhos na rua - a loja que os sobressaltara minutos antes e que agora estava aparentemente vazia - olhou para o rapaz.

- Como é?


- Vou lá tentar resgatar pelo computador da companhia as três últimas torres que captaram o sinal do celular da Bethany. Vou aproveitar e ver se apanho uns aparelhos de curta freqüência, qualquer companhia tem para eventualidades como essa.

- Curta freqüência? Não entendo...

- Nem é para entender. - Carlos entregou o celular de Dick a Mauricio e acrescentou - Se eu não voltar em vinte minutos, volte para o bar e devolva ao Dick. Agradeça a ele por mim.

- Espere, você vai...


- Já volto. - e deu um tapa camarada nas costas do companheiro, dirigindo-se à loja.


Sem olhar para trás, Carlos entrou no estabelecimento, enfiou a mão no bolso, apanhou o crachá da Umbrella que sempre usara e prendeu-o ao peito. Não seria difícil passar-se por membro da companhia; Bethany sempre lhe dissera que, com aqueles óculos de nerd, cabelo preso, corpo magro e roupas discretas, ele poderia passar facilmente pelo que realmente era - um Analista de Sistemas.


Algumas pessoas descontentes passaram por ele, saindo da loja e cara fechada, e outras continuavam a discutir com as funcionárias, que tentavam explicar que a falha que ocorrera na rede seria corrigida em breve. Segurando a ironia que estava na ponta da língua, Carlos dirigiu-se calmamente ao elevador e chamou-o, uma mão nos bolsos.

Apesar da aparente tranqüilidade - parte do disfarce - seu cérebro estava à mil, mergulhado em ansiedade. Bethany estava havia horas desaparecidade, e tudo indicava que tinha dedo da Umbrella - fora capturada e estaria sendo a cobaia que ele e Erek teriam sido? Tentou não imaginar a garota numa sala de laboratório, deitada à força, debatendo-se contra uma injeção que talvez seus antigos colegas de trabalho produziriam em larga escala futuramente...


E aquela cidade estava uma bagunça. Algo estava acontecendo... diabos, aquela Judy, fosse quem fosse, estava certa... e, como se não bastasse, aqueles quatro amigos - ele, Will, Erek e Bees - estavam separados, perfeitamente conscientes de que o melhor seria cair fora do lugar... mas não poderia simplesmente fazer isso. Não naquele momento...


A porta do elevador se abriu, interrompendo temporariamente os devaneios de Carlos, que agora precisava pensar no plano. Havia mais dois funcionários no elevador, nenhum dos quais muito interessados no jovem que acabara de entrar.

- Estão loucos... - comentava um.

- Confesso também estar, minha mulher tentou me ligar, mas não pude atender na hora, e a linha caiu justo na hora em que eu finalmente consegui pôr a mão em um telefone.

- Putz... e o Travers está no quinto andar, falando com o Hopkins, estou aguardando um retorno... acho que isso não dura muito, não.


- Ouviu uma gritaria agora há pouco? - o homem à esquerda de Carlos parecia nervoso; era careca, e toda hora deslizava a mão distraidamente por ela.

- Não, eu estava na ala sete. Fala do primeiro andar?

- Não, lá fora... uma loja.


Nesse instante, a porta do segundo andar se abriu, e Carlos saiu, aliviado por não ser notado pelos dois; desembocara em um típico corredor de escritório branco e deserto. A parede à frente era de vidro, com venezianas internas para impedir qualquer transeunte de ver diretamente o que acontecia dentro das salas. As portas estavam fechadas e uma voz ou outra eram escutadas, bem como ruídos de pessoas digitando.

Certo, pelo que sabia, precisava seguir reto até virar no corredor à esquerda... ali havia uma ala especial acoplada ao Sistema Judiciário que cuidava do rastreamento e bloqueio de telefones celulares. Assim, tão nervoso quanto Mauricio, embora aparentemente mais frio e determinado, Carlos Visconti caminhou pelo corredor como se fosse um funcionário, sempre calmo e ignorando qualquer ruído.


Tinha perfeita noção de que estava em um dos ninhos da cobra; não era o principal, mas não deixava de ser ninho. Estava se arriscando caminhando por ali, com um crachá com seu nome e seu rosto à mostra, pois tinha perfeita noção de que aquela companhia era ligada à Umbrella, que esta sabia mais do que deveria sobre a vida do rapaz e tentara capturá-lo algumas horas antes. Se aquele lugar não contivesse a única pista de que dispunham para encontrar Bethany, certamente teria deixado esse plano por último - o risco era grande mais.
Ainda assim, o rapaz não parou para refletir e, decidido, virou à esquerda no corredor seguinte.

Ao contrário de Bethany, estava perfeitamente acostumado a lugares como aquele. Escritórios e mais escritórios, gente arrumada, papelada, computadores; já Bethany mal parava no próprio escritório que, aliás, sequer se parecia com um, tendo um colega de trabalho como aquele Cássio - ele também não era o tipo formal, nem o "formal e moderno".
Ótimo, qual porta era? Havia três. Duas à esquerda, uma no final do corredor... era a do meio. Isso, mesmo. Caminhou, resoluto, perfeitamente acostumado ao silêncio daquele andar, e parou diante da porta. Primeiro, tentou espiar pelas venezianas, mas elas estavam corridas, de modo que a única alternativa seria entrar na sala, usar um bom jogo de cintura e rezar para que ninguém ali fosse tão íntimo de Harker a ponto de saber que aquele rapaz não era só membro da corporação como um recente indesejável.

Enquanto refletia ante o gesto de entrar, lembrou-se de dois conhecidos que trabalhavam naquela sala - fora com um deles a um Congresso em Seattle. Era John Baker, um analista franzino de cabelos cheios e senso de humor apurado, a alma e a vida daquele andar. Como se lembrava das trapalhadas em que haviam os dois se metido, juntamente com outros dois ex-colegas de faculdade, naquele Congresso! Ainda se lembrava da briga que aqueles quatro nerds arrumaram em um bar, quando haviam ido justamente para relaxar entre um simpósio e outro- e acabaram contundidos, Carlos na tentativa de apartar a briga. Tudo porque o bendito Baker encasquetara de que estava cansado de, naquelas palestras, "ver treze homens pra cada rapaz" e cantara a primeira mulher bonita que aparecera no pub - infelizmente namorada de um grandalhão briguento, que por azar aparecera com amigos com predicativos parecidos...

Sabia que a possibilidade de encontrar o outro conhecido do escritório, Thomas Brezina, era maior do que a de encontrar Baker - Baker era outro que não ficava preso. Vagava de andar em andar, auxiliando os outros funcionários com sua genialidade e animando-os com seus gracejos. Já Brezina, mais sério e contido, ficava sempre ali e, apesar de simpatizar com ele, Visconti preferia encontrar Baker - as chances de o rapaz denunciá-lo, caso houvesse recebido ordens de Harker, eram bem menores. Podia vê-lo erguer a cabeça sorridente para a porta e dizer "Olha quem apareceu aqui: o procurado! Andou dando trabalho para o almofadinhas de jalecão, parceiro?"

Distraído por esses pensamentos e com toda a naturalidade que teria mostrado em outros dias, Carlos deu três batidinhas na porta e abriu-a, feliz por não a encontrar trancada - arrombá-la seria uma péssima idéia. E ali estava o que procurava: uma mesa que percorria toda a sala e vários computadores modernos interligados.


Mas o que chamou a atenção de Carlos não foi a já conhecida sala, tampouco algumas cadeiras caídas, papéis espalhados e fios retirados à força da tomada. Não, o que lhe chamou a atenção foi a presença de um homem engravatado, de costas para a porta, ajoelhado bem no meio da sala, curvado sobre outro homem aparentemente desmaiado. Pelas vestes, eram funcionários locais.

- Oi?


O homem ajoelhado virou-se para Carlos, que recuou, o coração à mil; estava mais lívido que o outro sujeito, o rosto e os dentes sujos de sangue e as mãos igualmente imundas contendo miúdos que conseguia arrancar daquele indivíduo que não estava só desmaiado: estava morto e sendo devorado. Mas a pior parte não foi flagrar aquele ato de canibalismo, e sim reconhecer naquele canibal selvagem John Baker e na vítima, Thomas Brezina.


Qualquer fio de pensamento fugiu à mente do jovem Visconti, que apressadamente fechou a porta à sua frente, olhando para os lados, o coração ribombando contra suas costelas, uma sensação de insensibilidade aflorando em sua pele, e correu pelos corredores, o disfarce e discrição esquecidos. Esperara por tudo naquele lugar - menos por aquilo.

Esqueceu o elevador, optando pelas escadas; enquanto corria, uma luz veio-lhe à mente, fazendo-o apertar o alarme de incêndio. Sem esperar pela reação das pessoas, desceu as escadas aos pulos, suas pernas ágeis e compridas praticamente saltando lances e, no primeiro andar, juntou-se às pessoas que se retiravam do prédio temerosas por um incêndio. Não demorou a encontrar Mauricio que, de olhos esbugalhados e celulares ainda nas mãos, observava, abobado, as pessoas afastarem-se do prédio, visivelmente desejoso de se afastar também. Foi com alívio que seu olhar encontrou o de Carlos.

- O que está acontecendo? É fogo, é o quê?


- Fogo chega a ser uma brisa bem gostosa perto do que eu vi. - respondeu Carlos com urgência, segurando o guidão da moto - Ande, suba aí e vamos logo cair fora!

Não foi preciso pedir duas vezes; Mauricio já ocupara o banco traseiro, enfiando o celular no bolso desajeitadamente. Carlos estava para ligar a moto quando gritos ecoaram em algum lugar do prédio. Sem repensar seus atos, concentrou-se apenas no ato de ligar a moto, que despertou com um estrondo, tendo em vista afastar-se dali o mais rápido que podia.


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O trânsito caótico no centro da cidade enfim parara; isso se devia à grande quantidade de carros abandonados atrapalhando a passagem, ora acidentados, ora deixados de lado por causa das ruas intransitáveis. Agora o caos havia se espalhado pela periferia até então calma, visto que os habitantes de Raccoon City estavam cada vez mais decididos de que, àquela altura do campeonato, abandonar o lugar era a melhor opção.
Em meio a carros que ainda insistiam em avançar, procurando alguma brecha para escapar, e pessoas, separadas ou unidas, que corriam pelas ruas e calçadas, ora fugindo de vítimas daquela epidemia, ora tentando sair da cidade, um jipe avançava à toda, aparentemente desgovernado, dirigido por um homem de chapéu de feltro, óculos escuros e cigarro na boca; por onde passava, a música que tocava em seu toca-CD ecoava com brutalidade:

"OH! Yeah yeah yeah yeah!

All the vixens stand in line
(Todas as virgens permanecem na linha)

Waiting for my fright night
(Esperando pela minha noite de terror)

Be the new flesh for the sacrifice!"
(Pela nova carne do sacrifício)



O jipe oscilou, desviando-se de um carro parado no meio da rua...


(Sangue do meu sangue, carne da minha carne... custará a minha carne, se for preciso, para tomar as suas, seus filhos da puta...)


William Hoffman apertava com tanta força o volante com uma das mãos que os nós dos dedos estava brancos; o outro braço estava apoiado na porta; dirigia pelas ruas, indiferente ao pânico generalizado, fazendo coro à música alta prestes a estourar seus tímpanos, mas que não estouraria. Por quê? Porque o sangue subira-lhe aos ouvidos, protegendo-os da música e enchendo-lhe de cólera...


"Screaming out the mating call

(Gritando para fora da chamada de acoplamento)

I've become the lord of love"
(Eu me torno o senhor do amor)

"Oh, amor... vou precisar muito de você, minha querida...", pensou Will, dando um meio sorriso e tragando a fumaça do cigarro enquanto dava um tapa na magnum, que ocupava o banco ao lado, "Você vai me ajudar a batizar aqueles desgraçados com o meu amor..."


Cólera. Era essa a palavra. Cada célula de seu corpo era pura ódio... ódio oriundo da dor...


Uma virada brusca, quase atropelou dois jovens... coitados, pensam que irão sobreviver...



"I breake your will

(Eu quebro sua vontade)

I'll break your will for good,
(Eu posso quebrar sua vontade por bem)
I treat you like a brute...
"
(Eu trato você como um bruto)



Como um bruto? Eles ainda não viram nada...



"Who's your daddy,

(Quem é o seu papai?)

Say, who's your daddy?

(Diga, quem é o seu papai?)
Who puts you in your place?
(Quem pôs você em seu lugar?)
Who's your daddy,
(Quem é o seu papai)

Bitch, who's your daddy?
(Puta, quem é o seu papai?)
Surrender and obay, who's your daddy?
"
(Desista e obedeça, quem é o seu papai?)


Um sorriso obscuro de aprovação àquelas palavras, outra guinada brutal, e uma caixa de correios pareceu pular fora do lugar para o jipe poder passar, enquanto uma família de mãos dadas e malas nas costas gritaram, assustadas, e desviaram-se sem real necessidade do veículo.
Podia ver, de relance, correria para fora de centros comerciais, objetos arremessados pelo ar, e até algumas daquelas pessoas adoecidas - se é que ainda eram pessoas - caminhar lentamente pela cidade, enquanto avançavam nos indivíduos mais próximos. Seria uma cena triste, assustadora, traumatizante, se a suprema dor que aquelas últimas horas haviam lhe causado não fosse maior. Ela funcionava como uma salvaguarda para todas as aflições, clareando sua mente para algumas portas e obscurecendo-a para outras. Nada mais lhe importava. Precisava chegar àquele lugar...


"Get down, get down

(Se abaixe, se abaixe)

Lay down, lay down,
(Reverencie, reverencie)

Stay down, stay down,
(Permaneça abaixado, permaneça abaixado)
for daddy!"
(pelo papai!)



... e abaixar certas cabeças...


(Como fora tão burro, recebera tantas notificações...)


... pelo papai que se aproximava...

(... era tudo tão suspeito, Alice vivia dizendo...)


... abaixar para sempre...

(... e tudo o que fizera fora trabalhar feito burro de carga...)


... e a donzela que repousava ao seu lado ajudaria nisso...


(... para ver sua família morrer diante de seus olhos!)


... e não haveria escapatória.



"Who's your daddy,

(Quem é o seu papai)

Say, who's your daddy?"
(Diga, quem é o seu papai?)


Mataria um por um, afinal...


(Fechei o bico o tempo todo, ah, aqueles desgraçados irão pagar...)


Quem era o papai?


À medida que se aproximava da gigantesca ponte de saída de Raccoon City, o número de vivos aumentava e o de mortos diminuía radicalmente. O céu adquirira um belo tom pervinca, o crepúsculo já nos bastidores, preparando-se para um espetáculo que absolutamente ninguém naquela cidade estava disposto a ver. Vários carros estavam estacionados em qualquer posição na entrada da ponte e, cinqüenta metros à frente, havia uma aglomeração de mais de mil pessoas, todas tentando passar por uma fortaleza recém-feita, de passagem estreita, que dava acesso à saída da cidade. Policiais faziam a segurança não para proteger a população, conforme William notou em instantes, mas para guardar a preciosa saída da cidade. Helicópteros por ali voavam, e uma voz autoritária sobrepunha-se à gritaria com auxílio de um alto-falante:

"Para sair de Raccoon City, todos devem se submeter a um exame individual. Somente pessoas que não foram infectadas podem sair da cidade. Famílias devem se submeter ao exame separadamente. São medidas de segurança."


A população se amontoava em um frenético e forte empurra-empurra, todos tentando desesperadamente chegar à frente para fazer rapidamenteo exame, tentando, por tudo, não se separar de seus entes queridos. William, contudo, ao saltar do jipe enquanto enfiava a magnum nas vestes, não se atentou ao desespero estampado no rosto dessas pessoas, antes retirou os óculos e forçou a vista para o alto da fortaleza, onde havia poucas pessoas devidamente vestidas que assistiam a tudo. Eram poucas dezenas de soldados, cuidadosamente enfileiradas e armados até os dentes, observando a aglomeração abaixo, suas feições pouco discerníveis devido à posição do sol poente. Entre esses homens, um deles Hoffman não tardou a identificar: trajando seu costumeiro terno, uma mão no fone de ouvido, a testa enrugada enquanto observava o empurra-empurra, estava ninguém menos que o Dr. Harker.


William sequer pestanejou; andando rapidamente como uma máquina, o cigarro esquecido no canto da boca, embrenhou-se no meio da multidão, empurrando sem ver, os olhos fixos naquela única figura que fora um dos principais responsáveis pelas mortes de Alice e Maryane Hoffman.

A música do Lordi que ouvira ainda ecoava pelo local, abafada pelas vozes da população remanescente de Raccoon City. Preocupado apenas em avançar, William contornou a multidão, escolhendo beiradas, até chegar, com relativa facilidade, na dianteira, onde pôde ver melhor os soldados armados que guardavam os muros da cidade; algumas viaturas estavam paradas, enquanto os homens, de braços dados, continham à força a aglomeração que insistia em avançar.

O céu parecia um pouco apressado na tarefa de escurecer; com um estalo, holofotes acenderam-se no alto, sua luz pálida iluminando a população juntamente com os helicópeteros que voavam em c[irculos, despachando soldados para conter os habitantes inquietos. William, à frenet da aglomeração, e com os holofotes ligados, já podia ver melhor a silhueta no alto que pertencia ao Dr. Harker.


- HARKER! - gritou William, levando as mãos aos lábios para sua voz já ressonante ecoar melhor - SEU FILHO D'UMA PUTA!

Talvez o fato de o Dr. Harker ter uma audição boa o suficiente para escutar seu nome em meio à agitação logo abaixo, ou talvez porque William destacara-se do resto da população, parado e sem nenhum guarda para contê-lo e iluminado por holofotes, aquela figura singular de sobretudo e chapéu negros, Harker olhou para baixo.

- Não é possível... - sussurrou.


Um homem que também escutara o grito corria rumo a William para contê-lo; o jovem o reconheceu imediatamente - era um dos seguranças que tentara pegá-lo na igreja algumas horas antes. Este parou, receoso, ao reconhecer William, e mexeu, desconfortável, o toco de braço enfaixado, sem a mão que, com um tiro, o texano cortara-lhe fora. Seu companheiro, o segurança louro, imitou-o; não perdera nenhuma mão, mas era óbvio que temia que o que acontecera ao outro fosse se repetir com ele.

- Vai mandar suas marionetes para me pegar?! - gritou William a plenos pulmões, seu rosto adquirindo um intenso rubor devido à ira e ao esforço de berrar - Não é capaz de aparecer sem elas, não é, doutor? As bonequinhas já tentaram duas vezes, patrãozinho! Não quer ser homem uma vez na vida e vir você mesmo me pegar? É até bom que acertamos umas contas...

Harker, ignorando as provocações do texano, apertou um botão no seu fone de ouvido; ao seu lado, um de seus asseclas continuava a dar instruções à população com seu alto-falante.


- Traga-o inconsciente, Baxter. - disse Harker ao fone - O que está esperando?

Baxter, nervoso, deu um passo à frente, a mão boa no fone de ouvido. Hesitava; a lembrança de seu braço enfaixado ainda estava um tanto nítida em sua mente e, notando isso, William soltou uma fria e retumbante gargalhada.


- Que foi? Qual o problema, precisa de uma mãozinha, é isso? - e riu da própria piada - Quer uma mãozinha, quer? Se quiser, dou até duas! - e ergueu as próprias mãos, rindo debochadamente.

Crispando os lábios, zangado, e respirando com força, Baxter balançou a cabeça, olhando para William com raiva.

- Eu odeio esse cara... - disse.


Os dois seguranças, temerosos de enfrentar aquela texano amalucado pela terceira vez, contentaram-se apenas em fazer cara feia.


Enquanto William atravessara a multidão por um dos lados da entrada da ponte, obcecado pela imagem daquele que outrora fora um de seus superiores, quatro S.T.A.R.S realizaram um movimento semelhante do lado oposto, conseguindo chegar à frente da aglomeração com ajuda de suas fardas; os policiais, reconhecendo neles seus companheiros, não os barrou quando alcançaram a dianteira.


"Para sair de Raccoon City, todos devem se submeter a um exame individual. Somente pessoas que não foram infectadas podem sair da cidade. Famílias devem se submeter ao exame separadamente. São medidas de segurança."

- Desgraçados... - praguejou Matt baixinho, a mãos na bandoleira, como de costume quando estava fardado - Eles começam a confusão e agora agem como se a população tivesse culpa...

- Sim, mas não temos tempo a perder agora, Matt. - lembrou Ivanova, olhando para os lados, preocupada - Precisamos sair daqui. - e deu um passo à frente, rumo ao portão, onde especialistas examinavam os civis que conseguiam chegar ali.


Matt seguiu-a, e até DB o fez, embora um pouco hesitante; Dave, contudo, apenas olhou para a população, que os ignorava completamente.

- Que foi? - perguntou DB, o primeiro a notar a ausência do amigo.
- Bom, é que... será que é certo? Irmos na frente?

- Do que está falando, Dav? - inquiriu Ivanova, ligeiramente impaciente - Temos tanto direito de sair daqui quanto qualquer pessoa! E nenhum de nós está ferido!


- É, mas... - Dave inspirou profundamente, procurando as palavras certas para se expressar - O capitão é sempre o último a abandonar o navio.

Ivanova balançou a cabeça, incrédula, e deslizou os dedos pelo rosto do amigo, erguendo-o.


- Não somos capitães, Dave. Somos parte da tripulação, apenas isso. - retorquiu ela, aceitando a metáfora.

- Mas nós somos os S.T.A.R.S. DB estava certo, deveríamos primeiro garantir a segurança de cada sobrevivente, até o último, antes de tentarmos sair da cidade. Deveríamos morrer lutando por isso, se fosse preciso.


- Você enlouqueceu, Dave?! - exclamou Matt - Escute aqui... O rapaz também se aproximou, a largos passos, do amigo, tomando o cuidado de manter contato visual com ele; juntamente com DB, os três S.T.A.R.S formaram um pequeno círculo. Dave parecia um pouco alheio à presença dos amigos e, apesar de encarar Matt, que estava a poucos centímetros à sua frente, fixando-o, seus olhos pareciam desfocados.

- Veja, Dave... - disse Matt, indicando a multidão com um gesto rápido - Das trezentas mil pessoas de Raccoon City, estes são os sobreviventes... o número não deve chegar a dois mil. Você entende? Mais de noventa por cento da população de Raccoon City está lá atrás, morta duas vezes, pelo vírus e por nós, ou rondando pelas ruas, sem alma, e atacando qualquer ser vivente... sem alma, entendeu? Você é espiritualista, você sabe disso... mais de duzentos e noventa e oito mil pessoas estão lá atrás, sem contar seus bichos de rua e de estimação, em um estado que somente a desgraçada da Umbrella pode definir com precisão! Agora olhe para nós: somos quatro caras armados com uma munição limitada, e você acha mesmo que temos chance de fazer algo útil? - nesse instante, Dave abriu a boca para responder, anormalmente quieto, mas Matt o interrompeu com uma leve sacudida - Não dá mais, Dave, acabou! Não há nada para protegermos lá atrás. NADA, entende? Quantas vezes, vindo para cá, chegamos tarde demais? Quantas daquelas criaturas infectadas nós ignoramos para poupar munição? Não dá mais, cara. A coisa mais digna que podemos fazer agora é sobreviver e sair desta maldita cidade. Faça isso por todos... por Sara. - acrescentou, e Dave finalmente pareceu estar atento ao que o amigo dizia; seus olhos, fixos em um ponto à direita dos olhos do amigo, fixaram-se exatamente em suas pupilas, e
Dave deu um leve sorriso.

- Você tem razão... e você também, Ivy... tem gente lá fora...

-... nos esperando, é isso aí! - concordou Ivanova, abrindo um largo sorriso - Agora vamos!


Ivanova e Matt abraçaram Dave pelos ombros, postando-se um de cada lado do amigo e conduzindo-o à saída da cidade; haviam dado quatro passos quando Matt disse "espere" e olhou para trás. DB não saíra do lugar.

- E agora? - indagou.

- Vão vocês. Eu fico.

- Como é que é? - disse Ivanova, sem entender, soltando Dave e olhando para DB, incrédula - O que você está dizendo, Dan?!


- Você me ouviu. - afirmou DB, no mesmo tom comedido de sempre - Vocês vão e eu fico. O sorriso no rosto de Dave se desfez.

- Por que, DB? O que aconteceu?

DB deu um tapa no emblema que carregava no peito; era diferente do dos amigos, indicando uma patente superior.

- Eu sou o capitão do navio, gente. Eu devo ficar. Vocês fizeram o que foi preciso, e da melhor forma, e eu agradeço por tudo, mas... eu devo ficar.


- Não seja idiota, cara! - retrucou Matt, irritado, girando o corpo todo para encarar o amigo - Não ouviu o que eu acabei de dizer?

- Ouvi perfeitamente, Matt - confirmou DB, calmo - E você está certo. Mas ainda prefiro ficar, mesmo que não tenha a mínima chance de enfrentar mais duzentos mil infectados. Enquanto houver um sobrevivente que ainda não saiu da cidade, eu ficarei para tentar garantir sua sobrevivência. Se... se eu não conseguir sair da cidade - nesse momento o rapaz pigarreou, autoritário - apenas peço que contatem minha família, em Los Angeles. É aqui que nos separamos... foi um privilégio servir ao lado de vocês.

Matt aproximou-se do amigo, sério e contrariado.

- Está certo, mas guarde os elogios para depois, cara. Vou com você.

- É minha missão, não a sua.


- E alguma vez essa desculpa de ter uma missão solitária colou, cara? Se quer ficar, então fique, mas ficarei contigo.

- Vocês não entenderam... - disse DB lentamente, porém Ivanova o interrompeu, sorrindo e se aproximando.

- Você que não entendeu, seu mandão. Iremos com você.


Dave assentiu solenemente e completou:

- Até o fim.

DB, o capitão do time, percorreu com o olhar os quatro amigos, um por um, sem encontrar a menor sombra de dúvida em sua resolução. Engoliu em seco, então, tentando esconder o quanto se sentia comovido. Tentou dizer algo, mas preferiu calar-se ao notar que sua voz sairia embargada.

- E já pode começar a primeira etapa. - acrescentou Matt, no intuito de ajudar o amigo a se recompor - Qual é o plano?


DB assentiu, suspirando profundamente, e quando falou, sua voz recuperara a firmeza de sempre:

- Ficar aqui enquanto os sobreviventes saem da cidade e manter a ordem. Todos a postos!


Os jovens S.T.A.R.S., todos de armas não mão, então, postaram-se próximo à população, vigiando-a.

Os minutos passaram-se como se apressados, e o crepúsculo manifestava-se sem esperar nenhum aplauso. As pessoas, cada vez mais apavoradas, acotovelando-se e balançando-se como uma maré viva, tentavam chegar à saída da cidade; os exames aconteciam muito devagar, pois eram poucas as pessoas examinadas por vez. Os soldados, no alto, não se mexiam muito, a não ser para transmitir mensagens pelo fone, e Harker comunicava-se constantemente com algum desconhecido, visivelmente ocupado demais para dar total atenção a Hoffman. Enquanto, de um lado, os S.T.A.R.S observavam tudo o que se passava, de outro, o ousado civil e advogado William Hoffman mostrava-se cruelmente satisfeito com o temor que aqueles dois seguranças lhe tinham. Cansado de rir-se deles, o jovem tentou apropximar-se do portão, decidido a sair da cidade para enfrentar Harker, porém, ao se aproximar, policiais que haviam notado seu comportamento instanrepentinamente apontaram suas armas; William, o cigarro no canto da boca, sorriu diabolicamente, erguendo os braços em sinal de rendição.

- É... os cachorrinhos dele estão muito perigosos...

Olhou, então, para o mais jovem dos policiais, que apontava-se um rifle com os olhos arregalados, o suor acumulado sob os lábios; o jovem texano, então, baixou a mãos, virando-se para se retirar, antes dizendo ao rapaz:

- Que foi, filho? Acha mesmo que me ameaça com uma arma travada?

Aquela observação inesperada pareceu deixar os policiais mais nervosos, e o rapazinho quase deixou cair o próprio rifle de susto; William por sua vez, recuou, pensativo e despojado, os olhos na multidão, sem vê-la, quando repentinamente um ruído estrangulado ecoou na dianteira da aglomeração.


Traumatizadas com aquele som desagradavelmente familiar, as pessoas recuaram imediatamente, abrindo um círculo na aglomeração; um espaço ocupado por um homem pálido (talvez por causa da luz direta que recebia dos holofotes?), que se agarrava a uma garotinha (sua filha?) para se manter em pé. O homem em questão soltou um segundo grito, que mais pareceu um rosnado, e estatelou no chão, diante de centenas de olhares.

- Papai! - gritava a menina - Papai! Estamos quase lá, levanta!

Alguns policiais avançaram por aquela brecha, rumo ao homem que instantaneamente despertou, mordendo a perna da garotinha; enquanto os guardas abatiam o homem a tiros, os quatro S.T.A.R.S passavam visualmente um pente fino na multidão, à procura de outro infectado em alto grau; William, por outro lado, ergueu os olhos para Harker, que se comunicava através de seu fone de ouvido com um interlocutor desconhecido.


Repentinamente, um alarme soou, e as portas de saída começaram a se fechar; na mesma hora, as pessoas desataram a correr, civis e policiais, tentando chegar à saída; apenas os especialistas que realizavam os exames e os guardas próximos conseguiram alcançá-la, inclusive Baxter e Lorry. Enquanto o portão era selado com um ruído surdo, a voz de Harker ecoou aos quatro ventos, através do ampliador de voz que lhe fora entregue:

- Atenção, senhores, por favor, retornem a suas casas, que está tudo sob controle. Estamos contendo a infecção.


Imediatamente, a população manifestou-se, gritando histericamente e avançando contra os muros da cidade; os quatro S.T.A.R.S também olhavam para cima, estupefatos, e o grito de Matt ("Canalha!") pôde ser ouvido. Estreitando os olhos, Harker acrescentou, sua voz fria sobrepondo-se ao vozerio indignado dos habitantes remanescentes:


- Os senhores têm três segundos para abandonar a ponte. - e entregou o alto-falante para o soldado da Umbrella postado ao seu lado; este, com sua voz mais jovem que a de Harker, continuou:

- A permissão para atirar foi consentida. - e ergueu a própria arma.

William, contudo, ainda olhava, os olhos apertados, para Harker, que relanceou os olhos em sua direção antes de se afastar. A voz do soldado começou a contar:


- Um...


- Vão abrir fogo, mesmo... - disse Ivanova, chocada.


- Dois...


- Não pode ser... - comentou Dave.

- Três.

- CORRAM! - gritou DB inesperadamente para a população.
Como se acompanhasse sua voz e a de tantos outros, o som de tiros ecoou pelo lugar, e as pessoas, atemorizadas, deram as costas à fortaleza, correndo das balas que eram disparadas a esmo.

- Estão correndo para os braços da morte... - observou Matt.

De fato, a cidade era visível ao longe, parecendo tranqüila e comum; os postes já estavam acesos. Entretanto, os quatro S.T.A.R.S, ainda parados junto aos muros, sabiam o flagelo naquelas ruas, becos e construções que aguardava aquelas pobres pessoas, e estas sabiam também; todos que corriam estavam conscientes do que os esperava, mas tudo o que tinham na cabeça era o instinto básico, comum a qualquer ser vivo, até mesmo aos infectados: sobreviver. E continuavam a correr de encontro à morte certa, perfeitamente cientes disso - não havia escolha.


- Saiam vocês também! - berrou um soldado para os quatro jovens - Ou abriremos fogo novamente!

Lançando um olhar gelado à silhueta no alto, esta de feições indistinguíveis por estar atrás dos holofotes, DB pôs-se a andar velozmente rumo à cidade, seguido de perto pelos companheiros. Ao chegarem ao carro, Ivanova, séria, olhou para o lado, descobrindo outro retardatário: um homem de sobretudo e chapéu de feltro que, pelo visto, também não se intimidava facilmente com tiros, acabara de entrar em seu jipe, ignorando-os, o rádio sintonizado em uma música de heavy metal. Ele também deu marcha à ré para retornar a Raccoon City, sem esboçar medo algum. E que todos fossem abençoados naquela triste empreitada...

Enquanto os dois carros, afastavam-se, finalmente o soldado no alto dos muros da cidade baixou sua arma e o alto-falante, contemplando a população que desaparecia ao longe, rumo à cidade. Era um homem jovem, não carregava trinta anos na bagagem, a pele morena mais escura do que o normal por causa das sombras que se formavam em seu corpo, o rosto anguloso de traços sutis inexpressivos, os olhos escuros e fixos à frente.


- Fez um ótimo trabalho, Havok. - disse-lhe um companheiro às suas costas - Temos ordens de permanecer aqui e garantir que ninguém saia.

- Algum prazo, segunda ordem? - perguntou o rapaz.


- Não. Esta será uma longa noite...


Havok assentiu. Ou outro homem colocou-se ao seu lado, inclinando-se para frente e apoiando os braços no muro; não era muito mais velho que ele. Seu tom mudou, tornando-se menos robótico, e sua voz soou mais baixa:

- O que você acha que vai acontecer com essa gente, com esta cidade?
- Isso - respondeu Havok, sem abandonar a firmeza na voz e a determinação que aprendera no exército - não é algo que nos interesse. Temos ordens a cumprir, Yexley.


Yexley apenas confirmou com a cabeça lentamente, um tanto conformado em não encontrar humanidade naquele homem, porém sem esconder a desagradável sensação de ser incompreendido e estar sozinho em meio àquela gente desumana da Umbrella e do exército. Sem dizer uma palavra, endireitou-se com um leve suspiro e iniciou a caminhada pelo corredor, montando guarda.