sábado, 27 de dezembro de 2008

Seis - Desafios nada concomitantes em lugares nada convencionais

- Dá pra acreditar, cara? Eles querem nos encher de vírus! - exclamou Carlos, horrorizado - VÍRUS! Somos dois ratos para eles!
- Se for animador, Carl, você não tem a estatura de um rato...
- Animador?! Vai à merda!
- Vou, sim, só não estou a fim de ficar pra ser a experiência barata deles...
- Afinal, o que diabos você está fazendo?
Carlos, forçando a vista, tentava enxergar os movimentos de Erek; o rapaz parecia agitado, tentando se livrar.
- É sua melhor estratégia? - perguntou Visconti - Sacudir-se feito retardado até as cintas afrouxarem?
- Estou tentando apanhar aquelas agulhas! - explicou Erek - Prenderam minha barriga mais embaixo, isso facilita!
Erek inclinava a cabeça em direção à mesa; finalmente, deslizou umas duas agulhas para sua língua e cuspiu-as na barriga, a uma distância que uma das mãos pôde alcançar; então, apanhou-a e, pacientemente, enfiou-a como se fosse chave.
- Grampo, Carl! - disse entre dentes - Grampo! Essa é a idéia.
Carlos, que não enxergava nada, mantinha-se quieto.
- Ótimo, avise quando conseguir.
Erek não respondeu à ironia; queria concentrar-se apenas naquela tentativa de escapar. Pacientemente, lembrando-se dos milhares de jogos de rpg que narrara e filmes a que assistira e dos conhecimentos que acumulara, manuseou aquele pedacinho fino de metal que era sua única esperança, até que o ruído que lhe informava o caminho da libertação foi ouvido.
Uma vez livre da cinta que prendia sua barriga e mais confiante, o rapaz logo livrou os braços e pernas. Carlos estava boquiaberto.
- Isso aí! - disse Erek, erguendo-se - Sua vez, Carl!
Ao erguer-se, Erek sentiu mais frio; usava apenas uma vestimenta estranha, branca, retangular, presa na altura de suas axilas e solta até a coxa. Parecia duas placas ligadas por um elástico que tinham como objetivo cobrir barriga e costas. Sem se atentar a esse fato, o rapaz correu até Carlos para livrá-lo.
- Temos de sair daqui - disse - E antes que eles voltem!
Carlos assentiu com veemência, enquanto o amigo o soltava; uma vez livre, o rapaz também ergueu-se. Usava aquela "roupa" hospitalar idêntica à de Erek, e estava tão cômico nela quanto o rapaz, os cabelos cacheados soltos alcançando-lhe o ombro.
- Que frio, porra - disse e, ao apanhar os óculos e colocá-los, sorriu de leve e acrescentou - Agora, sim, me sinto pronto para a luta.
Erek, contudo, estava agachado diante da porta, enfiando duas agulhas em posições difentes na maçaneta.
- Quieto, Carl, e fique abaixado - sibilou - Não podem ver que nos levantamos.
Carlos colocou-se de cócoras ao lado do amigo.
- Agora é tudo na base do grampo, é?
Erek estaria suando de ansiedade e concentração se não estivessem em uma sala fria.
- É... - sussurrou - Estou quase lá... quase...
Fez um movimento brusco e, no instante seguinte, ouviu-se um clique.
- Se não fosse gay demais, eu diria que te amo, cara - disse Carlos, sério - Mas ainda não acabou... vamos.
Erek abriu a porta e espiou os dois lados do corredor.
- A barra tá limpa.
Os dois, um a um, pularam para fora da sala.
- Onde será a saída? Faz tempo que não venho até aqui...
- É só olhar o número dos quartos, Erek...
Os dois caminharam lentamente pelo corredor; por uma janela, deduziram estar um andar acima do térreo. Quando ouviram passos em um corredor adiante, sentiram o sangue gelar.
- E agora, Carl?
Mas Carlos já estavam espiando pelo quadrado de vidro da porta mais próxima e abrindo-a.
- Aqui! - sibilou.
Os dois precipitaram-se por ela como se suas vidas dependessem disso e a fecharam; agora era torcer para ninguém entrasse lá.
Erek olhou para o aposento. Era um quarto amplo, com duas fileiras de cinco camas, todas ocupadas por crianças. Algumas dormiam; duas delas estavam acompanhadas pelas mães, que olhavam, espantadas, para os dois invasores.
- Ah... olá. - disse Erek, exibindo um sorriso amarelo - Somos... somos do grupo de teatro que veio divertir as crianças que têm males irremediáveis... não é aqui, não, é?
As duas mulheres balançaram a cabeça negativamente, ainda chocadas. Uma delas explicou:
- Minha menina só está com... virose.
- Felizmente, levaram daqui a criança com hidrofobia - acrescentou a outra para a primeira mãe - É o que ocorre quando não vacinamos nossos animais; as crianças são as primeiras a serem afetadas.
- Hidrofobia? - repetiu Carlos; fazia muito que não escutava o nome daquela doença.
- Sim. - respondeu uma das mães - O pai da menina estava aflito, dizendo que o cachorro enlouquecera e atacara a criança... precisara matá-lo para não... enfim. - acrescentou, olhando para os lados e percebendo que havia crianças acordadas - A menina foi levada daqui.
Enquanto Carlos ouvia os relatos, Erek aproximou-se de uma das camas; nela, um menino assustadoramente pálido, com olheiras profundas e respiração rascante, dormia profundamente, tendo um tubo diretamente ligado ao pulso. Parecia mais doente que todas as outras crianças; sua palidez acentuada parecia lhe atribuir uma cor azulada, e tanto as pálpebras quanto os lábios apresentavam tons arroxeados. Parecia morto.
- Ei, Carl - disse, cutucando o amigo - O que você acha que...
Foi interrompido por uma voz melodiosa que ecoou pelo hospital:
"Atenção; mantenham-se todos em seus quartos e escritórios e não perambulem pelos corredores. O Hospital de Raccoon City alerta: mantenham-se em seus quartos, senhores pacientes, para evitar riscos. Médicos, enfermeiros e faxineiros, entrem nas salas mais próximas de onde estiverem. É alta prioridade. Se alguém descobrir algum movimento estranho, comunicar imediatamente ao Dr. Harker pelo interfone."
- Por que não podemos ficar nos corredores? - perguntou uma das mães - Infecção?
- Ou fuga de pacientes... - replicou Carlos baixinho, olhando para Erek.
Os dois entreolharam-se e saíram do quarto sem maiores explicações. O corredor continuava deserto; apertando o passo, caminharam por ele, tentando ignorar o frio que aquela inoportuna ausência de roupas causava.
- Podiam nos ter dado um daqueles aventais de pacientes - reclamou Erek - Muito mais confortável.
- O quê, aqueles que te deixam de bunda de fora? Nem pensar!
Erek ia protestar, porém Carlos levou o dedo aos lábios; o silêncio era conveniente. Viraram à esquerda, deparando com outro corredor deserto. As ordens proferidas em todas as caixas de som do hospital pareciam tê-lo esvaziado, substituindo o sussurro de médicos e enfermeiros que andavam ali por silêncio de morte. Embora fosse um lugar limpo e arejado, o silêncio somado ao frio pesava como uma nuvem opaca prestes a cair em forma de chuva.
Duas vezes, evitaram passos que se aproximavam virando em algum corredor; não queriam ter de entrar em outro quarto novamente.
- Quem estará nos corredores? - perguntou Erek, nervoso - Quando todos foram mandados para os quartos?
- Quem mais? Um "suspeito" fugiu e o projeto GT é adiado. Minutos depois, o aviso.
- Quer dizer que não deram o aviso para apanhar a gente?
- Não faço idéia. - murmurou o outro - Pode ser para nos pegar ou pegar o suspeito. Ou pegar todos. Mas que aqueles passos podem pertencer ao Dr. Harker e seus capangas, ah, disso eu tenho certeza!
- Mas se assim fosse - retrucou o amigo, enquanto caminhavam por um corredor estreito e vazio - por que não pedir a ajuda de outros médicos? Ele tem muito mais crédito com eles do que dois caras pelados e perturbados. E ainda tem as câmeras...
- Porra, mano, eu não sei! Mas se a gente não fechar a boca, vamos saber já, já...
Viraram à direita em outro corredor vazio e sem portas, só que, desta vez, com algo a mais: uma mancha vermelha dois metros adiante, perfeitamente visível à distância. Ela se prolongava em um rastro intermitente, até virar à esquerda em uma bifurcação.
Carlos soltou um palavrão baixinho, e Erek deu dois passos à frente. O outro o deteve:
- Seguir rastros sangrentos não é uma boa idéia, cara.
- A saída é por ali.
- Vamos pegar outro atalho.
- Para o Harker nos pegar? Ora, vamos, Carl, estamos em um hospital; é perfeitamente comum ver sangue.
Carlos fungou; Erek deu um sorrisinho sem graça. Não, não era comum ver sangue. Não naquelas circunstâncias.
Não havia portas naquele corredor, só janelas. Os dois amigos pareciam isolados.
Erek começou a andar lentamente rumo à mancha; Carlos o seguiu, os sentidos aguçados à espreita, os olhos ziguezagueando pelo corredor. Andava levemente encurvado, a pele arrepiada de frio e expectativa. As mãos, muito brancas, estavam pálidas, e as unhas, arroxeadas. As extremidades de seu corpo estavam todas geladas.
Pararam diante da mancha, evitando pisá-la. Contornaram-na, um de cada lado, e puseram-se a seguir o rastro. Afinal, ele era formado por gotas e poças de sangue, indicando que, fosse quem fosse o dono dele, não se rastejara ou fora arrastado.
Não se ouviam passos e nenhum outro ruído. Os pés descalços dos rapazes pisavam de mansinho o chão frio, nem calmos e nem apressados. Cada passo rumo ao fim do corredor aproximava-se de uma verdade que os dois jovens não queriam encarar; contudo, era necessário. Aqueles indícios de um tom terrivelmente vermelho-escuro não eram de algo natural, e duas palavras formavam-se na mente de ambos: Umbrella Corporation.
Ela estava por trás daquilo, afinal, Harker estava naquele hospital.
Cinco passos e virariam à esquerda, seguindo o rastro. Por uma coincidência, uma terrível coincidência, a saída daquele lugar também ficava à esquerda.
Quatro passos. Carlos e Erek pararam e respiraram fundo. Em seguida, avançaram.
Três. Céus, uma pessoa que perdera aquela quantidade de sangue precisava urgentemente de ajuda. Teria gritado? Talvez, sim, mas as portas eram à prova de som...
Dois. Qual seria o estado dela? Tanto Carlos quanto Erek haviam visto filmes sangrentos ao longo da vida, mas nada se comparava à realidade.
Um. Não lhe podiam negar ajuda.
Os dois rapazes entreolharam-se novamente e, juntos, viraram à esquerda no corredor, sempre evitando pisar no rastro.
Depararam com outro corredor, ligeiramente mais escuro, com algumas portas e uma escada no fim. O rastro vermelho terminava na primeira porta à direita, mais precisamente em uma maçaneta arredondada e ensangüentada.
Lado a lado, os dois amigos puseram-se a caminhar de lado, olhando para a porta. Uma vez diante dela, pararam. Um letreiro indicava que aquele era o depósito; Carlos deu um passo à frente e espiou pelo vidro. A escuridão no interior da salinha ocultava seu conteúdo.
- E aí? - perguntou Erek.
- Temos que entrar. Ou não.
Carlos olhou para a maçaneta avermelhada com uma certa repugnância. Refletindo se conseguiria abri-la protegendo a mão com aquela vestimenta estranha que usava, ou se era melhor mandar tudo às favas e cair fora daquele lugar, o rapaz perdeu tempo suficiente para ouvir uma voz masculina perguntar da sala mais próxima:
- O que estão fazendo?
Um rapaz mais baixo e mais forte saíra do quarto à esquerda e um pouco à frente, olhando para os dois, desconfiado. Não trajava vestes brancas. Carlos franziu a testa ao vê-lo.
- Ei, você é...
- Richard! Eu mesmo, Carlos. - disse ele - O que vocês dois estão fazendo quando deveriam estar nos quartos? Aliás, por que estão aqui e vestidos desse jeito?
- Você também está fora do quarto. - retorquiu Erek.
- Porque eu vi pessoas no corredor e que, aliás, são vocês.
Um segundo rapaz, de jaleco, saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Pareceu ainda mais espantado.
- Pacientes fora do quarto e com essas... céus, o que está havendo?
- É o que gostaríamos de saber, mas não agora. - Erek apressou-se em dizer - Precisamos de roupas, caras.
- Vocês são pacientes, certo? - indagou o médico - Estão sob os cuidados do hospital, certo?
- Errado. - retorquiu Carlos - Nossa saúde é de adamantium e precisamos sair daqui, mas não dá pra fazer isso vestido assim!
Richard olhou para o médico.
- Onde vocês guardam roupas de funcionários?
- Richard, que é que...
- Fale logo, Conrad!
- Na salinha à esquerda do depósito tem umas roupas de faxineiros, só não sei se vão servir...
Richard, sem cerimônias, abriu a porta indicada e acendeu a luz; era uma salinha com o tamanho aproximado de um armário de vassouras. Nela, havia várias roupas iguais enfileiradas e penduradas, todas muito juntas.
- Apanhem logo. - disse ele - Não sei o que está acontecendo, mas está muito estranho. O que fazem aqui?
Carlos, apanhando uma calça e vestindo-a, indagou:
- Você viu Bethany?
- Ainda não, ela nem sabe que estou na cidade. Por quê?
- Ela corre perigo.
Richard franziu a testa; Conrad apareceu na porta do quarto, igualmente surpreso, mas não disse nada.
- O que ela tem? - indagou Richard.
- A Umbrella está escondendo alguma coisa muito grave, descobriu que nós descobrimos isso e nos capturou. E cá estamos. - acrescentou, calçando botas de borracha - E se nos descobriram, descobriram Bethany também.
Erek, que estava ocupado retirando a roupa hospitalar, olhou rapidamente para Richard e fungou; a explicação resumida de Carlos causara o efeito previsto: a expressão confusa no rosto de Richard acentuou-se.
- Cara... do que você está falando?
- Seguinte: - respondeu Erek, escolhendo um macacão - quando Bethany nos contou essa notícia bombástica, Carl e eu perdemos tempo tentando averiguar, arrumar provas, etc e tal, e quase nos ferramos. Se quer o conselho mais sensato de sua vida, cara, é este: ouça o que Carlos disse e caia fora de Raccoon City. Se possível, encontre Bethany antes disso. Mas caia fora!
Richard e Conrad entreolharam-se. O primeiro tornou a olhar para Erek.
- Vocês estão fugindo?
- Sim, estamos, só não comunique ao Dr. Harker. Acredite, sua irmã ia concordar conosco. - afirmou Carlos.
- Fugindo do Dr. Harker?
- Do Dr. Harker e de toda a Umbrella...
- Mas você trabalha para ela, Carlos!
- Trabalhava, até pensarem que sou ratinho de laboratório.
Carlos foi o primeiro a se dar por pronto e enterrou o boné na cabeça, tomando o cuidado de prender o cabelo com ele.
- Agradecemos a ajuda de vocês, mas sabemos que não conseguem acreditar em uma única palavra do que nós dissemos, e nada podemos fazer. Agora, se querem saber, provavelmente tem alguém naquele depósito sangrando, mas eu, se fosse vocês, caía fora. Bethany precisa de ajuda, Richard. - acrescentou para o rapaz - Tente entrar em contato com ela, mas tome cuidado.
Erek terminou de abotoar o macacão e também apanhou um boné.
- Valeu, caras, devemos essa!
Carlos e Erek, vestidos de funcionários, saíram da salinha cuidadosamente e rumaram para a escada. Quando se afastaram, Conrad indagou:
- Você acha mesmo certo deixá-los sair assim, Richard?
- Diga-me você, que não fez nada para impedir.
- Eles estão saindo debaixo do nariz do todo-poderoso Dr. Harker. Quem sou eu para contê-los?
Richard deu um meio sorriso e deu um passo rumo às escadas.
- Aonde vai?
- Ao trabalho de Bethany. Depois dessa, preciso falar com ela.
- Ora, telefone...
- Esqueci meu celular em Saint Catherine.
- Quer o meu?
- Não, valeu, cara. Eu realmente preciso vê-la.
Conrad olhou para o depósito e viu o rastro que os rapazes haviam seguido.
- Deus, o que é isso?
Richard também olhou.
- Não estou com um bom pressentimento.
- Nem eu. Primeiro, nos mandam sair dos corredores; depois, dois fugitivos com histórias fabulosas, e agora isso...
- Avise Harker assim que puder sobre o rastro... ou simplesmente fique no quarto até o toque de recolher acabar. - Richard deu um tapa leve no ombro do amigo - Eu vou nessa. Sempre achei os amigos de Bethany meio loucos, mas nenhum deles nunca falou uma coisa sem noção dessas. Preciso ir.
- Cuide-se, amigo.
- Você também.
Richard trilhou o mesmo caminho que os dois "faxineiros", andando daquele jeito imponente que a musculação havia lhe proporcionado. Conrad, inspirando profundamente, consultou o próprio relógio de pulso. Nove e trinta e sete da manhã. Olhou, então, para a porta onde o rastro ensangüentado acabava.
Era médico, acima de tudo. Fizera um juramento: salvar vidas. E aquela, evidentemente, não estava bem. E não podia contar com nenhum auxílio, a não quer se que comunicasse ao Dr. Harker; seu único companheiro na salinha onde estivera até a chegada daqueles dois jovens seminus fora Richard, que agora desaparecia no fim do corredor, decidido.
Assim, ou entrava naquele depósito e, se houvesse alguém ali, socorria a pessoa, ou chamava o Dr. Harker.
Ah, Harker... estava cheio das intervenções daquele homem. Só porque era um médico de alto escalão da Umbrella, sentia-se no direito de pavonear-se pelo hospital de Racoon City com uma equipe de macacos submissos em seu encalço. Não era a primeira vez que Harker fazia aquilo, e tampouco seria a última.
Ora, Conrad era tão preparado para exercer a função de médico quanto aquele homem, e era justamente aquilo que faria.
Assim, caminhou lentamente até o depósito. Não parou para analisar os vestígios de sangue; retirou do bolso um par de luvas brancas e finas e calçou-o. Em seguida, olhou para a porta do cubículo e inspirou profundamente. Nunca considerara a possibilidade de entrar em um depósito com tanta cerimônia
(ou seria medo?)
ou que um dia precisaria fazer isso. Não precisava, era verdade; estava apenas cumprindo um dever.
Seus olhos relancearam pelo letreiro na porta. Quando, na formatura, diante de centenas de pais orgulhosos e colegas emocionados, chegara sua vez de fazer o juramento de Hipócrates, não imaginara que precisaria passar por uma provação daquelas, imaginara? Pudera imaginar que, em um dia comum, encontraria no hospital onde sempre trabalhara, uma trilha de sangue que terminava em uma sala fechada, pela qual só poderia ter acesso se entrasse?
Não, não imaginara. Em que estado estaria a pessoa naquele lugar?
Inspirou profundamente e repousou a mão na maçaneta. Soltando o ar, girou-a.



A igreja principal de Raccoon City estava localizada no centro da cidade, em uma avenida. Era bela e imponente, erguida no estilo gótico das igrejas medievais. Do outro lado da avenida, um carro preto estava estacionado fazia vinte minutos.

- Que horas são, Baxter?

- Onze e treze.

Dois homens corpulentos, de veste sóbrias e óculos escuros, estavam sentados nos bancos dianteiros do carro. Um deles, o motorista, era um homem negro que apoiara o braço fora do carro e a cabeça na mão; o outro, louro de rosto rosado, olhava para os carros que passavam, sem vê-los.
- Que acha que vai acontecer a essas pessoas? - perguntou repentinamente.

- Do que está falando, Lorry?

- Você sabe do que estou falando.

Baxter ergueu a cabeça e olhou para o louro; este o encarava.

- Estão contendo a infecção. - disse - Não se preocupe.

- Enquanto eles têm esse problema, nós temos que ficar correndo atrás de jovens intrometidos!

O louro suspirou.

- O advogado texano sumiu... a garota Yenne também... só falta aqueles dois...

Um celular tocou; era o de Baxter, que o atendeu.

- Sim, senhor. - breve pausa - Imediatamente, senhor. - e desligou.

- E então?

- Precisamos pegá-los.

- Mas nem sabemos por onde começar... aquele Hoffman desapareceu. Não foi pra casa e nem visitou os amigos!

- Precisamos bolar um plano. Atraí-los, em vez de correr às cegas atrás deles...

- Acho que não será mais necessário, Baxter.

- Por que diz isso?

O louro olhava por cima do ombro do companheiro.

- Porque nosso amigo texano lembrou-se de ir à missa.

O negro olhou para o outro lado da rua; de fato, um homem de sobretudo e chapéu subia os degraus da igreja.

- Já não era sem tempo. - disse - Vamos pegá-lo!



William Hoffman entrou na igreja e, caminhando lentamente, como se demonstrasse respeito em cada passo, olhou ao seu redor. Vitrais com desenhos sacros, a sacristia à esquerda, cadeiras de madeira enfileiradas e, no altar, estátuas e velas acesas. O acabamento da abóbada era de um estilo barroco, cheio de desenhos angelicais e curvas belíssimas, tudo em um tom levemente lúgubre, porque a iluminação era precária, predominante no altar cheio de velas; a luz do quase meio-dia penetrava pelas janelas no alto de caixilhos e vitrais coloridos.

Havia apenas um fiel; um homem ajoelhado diante do altar, a cabeça abaixada humildemente, as mãos unidas em um gesto de fé inabalável. O texano adiantou-se, parando logo na primeira fileira, alguns metros à direita do outro homem, e fez o sinal da cruz, fixando com aqueles olhos negros a imagem da Virgem com seriedade. Em seguida, ajoelhou-se lentamente e segurou o crucifixo que sempre carregava consigo.

- Vim fazer uma visita, parceiro - sussurrou - Precisava de um lugar que me ajudasse a pensar... vamos fazer um trato? Cuide das minhas meninas, parceiro, que de mim cuido eu...

O rapaz fixou as velas à frente, em silêncio, as mãos unidas, os lábios formando as palavras sagradas de uma oração, sem dizê-las.

- Fez bem em vir à igreja nesta manhã, sr. Hoffman - disse uma voz irônica, à entrada da igreja, sobrepondo-se ao silêncio sagrado do lugar - Pois só Deus poderá ajudá-lo agora.

Não foi preciso mais que uma fração de segundo para William reconhecer aquela voz. Resoluto, ergueu-se, os olhos mirando, sem ver, uma das imagens sacras à frente.

- Cuidado ao dizer o nome Dele em vão. - disse William, de costas para a dupla.

O homem parado alguns metros à esquerda do advogado - um sujeito franzino, de cabelos olhos e rosto magro - olhava, assustado, de William para os dois homens. Parecia perdido, sem saber o que fazer. Seu olhar pareceu espantado ao ver o advogado; era um homem de vestes negras que incluíam um sobretudo, chapéu de feltro e óculos escuros, e estava sério, de costas para os dois recém-chegados.

- Cale-se - retorquiu um dos homens; o advogado ouviu o inconfundível estalo de arma sendo carregada - e venha conosco, sr. Hoffman!

William, ainda de costas, levou uma das mãos às vestes, ocultando-a dos dois homens à entrada da igreja.

- Apontar uma arma na casa de Deus... tsk - disse, sem se deixar intimidar - Não vou perdoar essa falta de respeito!

Então o texano sentiu antes de ouvir; mergulhou, atracando-se sobre o homem ao seu lado que nada entendia no mesmo instante em que uma bala era disparada. Os dois caíram embolados, protegidos pelo banco da primeira fileira, o advogado forçando seu companheiro de queda para baixo, protegendo-o dos outros tiros que vieram em seguida.

- Valei-me, Nosso Senhor! - exclamou o homem, apavorado, ao lado de William.

- Cale a boca - sibilou o advogado - Para a sacristia, e fique abaixado!

Podia ouvir a movimentação dos recém-chegados no corredor principal da igreja; os bancos não protegeriam os dois alvos por muito tempo, mas estes também estavam em movimento. Engatinhando como um bebê, embora com uma agilidade muito maior, William marchou até a sacristia, seguido de perto pelo colega de religião, que tão assustado estava com as balas zunindo acima de sua cabeça, fazendo seus cabelos arrepiarem, que concentrava todas as suas forças em engatinhar - imitar aquele maluco de chapéu de feltro parecia ser sua única alternativa.

Por sorte, ou por milagre - estavam numa igreja, não havia diferença entre ambos - a porta da sacristia estava apenas encostada, de modo que, ainda abaixado, bastou um empurrão para abri-la; William adentrou, batendo as pernas enquanto se arrastava como se estas fossem barbatanas, afastou-se para o lado para que o outro homem também entrasse. Fechou a porta em seguida, o rosto vermelho afogueado com o esforço, as costas apoiadas na parede e os cabelos úmidos de suor. Os tiros continuavam a ameaçá-los do outro lado.

- E agora? - gemeu o homem ao seu lado - Como vamos sair daqui? Eles têm armas, e nós estamos desarmados!

- Nós não, companheiro - retrucou William; para a surpresa do outro, o texano enfiou a mão no meio das vestes, alcançando um coldre, e apanhou o que parecia ser um revólver, só que mais e pesado e mais comprido, com certeza mais letal - uma magnum - embora o homenzinho não soubesse disso - De desarmado aqui só tem você. - finalizou o advogado, erguendo a arma em posição.

William ergueu-se e entreabriu a porta, tomando o cuidado para não ser alvo fácil; em seguida, disparou um tiro, e teve como resposta outros. Rapidamente, escorregou da parede ao chão, por vezes disparando outro tiro.

- Sabe recarregar uma arma? - perguntou, após outro tiro.

- O... o quê?

- Sabe recarregar uma arma? - repetiu Hoffman.

- Não...

William inspirou profundamente, resignado, os olhos contorcidos em plena concentração.

- Dezesseis... - outro tiro - Dezessete... dezoito.

Outro tiro; William carregava a magnum.

- Dezesseis... - e mais outro; o texano tirou um cigarro do bolso frontal e meteu-o na boca - Dezessete... dezoito. Acabou. - e, erguendo-se novamente, atirou; ao receber outro tiro em resposta, tornou a se esconder - Merda! - gritou - Essas balas não acabam nunca?!

Sem entender, o outro o fitava; o estranho texano e os outros dois homens, tão estranhos quanto o rapaz, continuaram a trocar tiros.

- Safados... - grunhiu Hoffman entre dentes - Eles têm outra pistola!

Quando acabaram novamente as balas da magnum, William atirou a arma para o rapaz, junto com um recarregador cheio de balas, explicando:

- Tem um pino aí do lado - e, se é que era possível, ainda mais surpreso, o homem viu, boquiaberto, William afastar a calça e retirar da canela um revólver; aquele homem era um arsenal humano! Disparando, o texano prosseguiu calmamente - Faz o tambor deslizar... dá um tapa e recarrega.

Com os dedos trêmulos, o homem obedeceu; deslizou o tambor de modo que pudesse remover as balas, escorregou as novas do recarregador para o tambor e passou-a a William, que lhe passou o revólver com mais algumas balas para que ele carregasse. Era realmente estranha a situação; o homem nunca pensara que um sujeito à guisa de texano fosse lhe ensinar a carregar uma arma em plena sacristia, em meio a um tiroteio. Com aquele chapéu, as vestes e o cigarro(apagado), aquele sujeito de preto parecia uma cruza de MIB com pistoleiro do faroeste. Apesar dos tiros e do risco que corria, continuava calmo, e talvez só não lhe explicasse mais detalhadamente como recarregar a arma por pressa - ou por falta de necessidade.

- Treze. - disse William de repente - E doze. Ótimo, quase lá.

Sentado, recostado contra a parede, William levou a mão ao bolso e retirou um isqueiro; acendeu o cigarro e recebeu a segunda arma que dera para o homem carregar.

- Quase lá - disse, o cigarro no canto da boca - Quinze...

Então, de repente, alguém do lado de fora da igreja ligou o rádio no último volume; a potência era tamanha que o chão parecia tremer.

"Under the lights, where we stand tall...

(Sob as luzes em que estamos firmes)

Nobody touches us at all

(Ninguém nos toca de maneira alguma)

Showdown, shootout, spread fear within, without
(Duelo, tiroteio, nós espalhamos o medo dentro e fora)

We're gonna take what's ours to have

(Nós vamos pegar o que é nosso)

Spread the word throughout the land, they say

(Espalhar a palavra por toda parte)

Bad guys wear black

(Eles dizem que caras maus se vestem de preto)

We're tagged and can't turn back

(Somos procurados e não podemos voltar)"

- Ah, parceiro... - murmurou William, sorrindo, visivelmente emocionado - Cowboys From Hell... bom momento para isto!

"You see us coming

(Vocês nos vêem chegando)

And you all together run for cover

(E todos correm juntos para o abrigo)

'We're taking over this town'

('Estamos tomando essa cidade')"

- Dezesseis e dezessete. - disse William, segurando as duas armas - Muito bem, garoto, estamos saindo!

- Como, se não tem saída? - estranhou o outro - Saindo para onde?

- Por onde entramos, filho. - e ergueu-se ao som de outro tiro, as armas em punho - AGORA!

Com um pontapé que fez a porta bater na parede e voltar, William manifestou-se, saindo da sacristia; seu recarregador improvisado de armas ia logo atrás, abaixado e trêmulo.

Os dois homens de terno e gravata ergueram os olhos, surpresos; o rapaz saíra justamente quando os dois estavam recarregando suas armas! Com um sorriso enviesado de quem pensava o mesmo, William disparou um tiro de cada arma; as balas zuniram como trovão devido à acústica do lugar.

"Here we come reach for your gun

(Aqui chegamos, pegue a sua arma)

And you better listen well, my friend, you see

(E é melhor você ouvir bem, meu amigo, você vê)

It's been slow, down below,

(A descida tem sido devagar e acentuada)

Aimed at you, we're the cowboys from hell!

(Mirados em você, nós somos os cowboys do inferno!)"

Teria acertado os disparos se os dois homens não houvessem se atirado para lados opostos, ambos ainda no corredor entre as duas colunas de cadeiras. Paralelo a eles, no corredor à esquerda das cadeiras, estavam William e o homenzinho, que se afastavam rumo à porta enquanto os dois outros homens recuperavam da queda. Um deles iniciou uma série de disparos, visivelmente tendo recarregado uma das armas, de modo que Hoffman escapou por um triz, protegendo-se atrás de um pilar (seu "recarregador particular" enfiara-se embaixo de um dos bancos, aos gritos e gemidos). Essa foi a deixa para o segurança armado erguer-se e disparar. William não se intimidou e disparou também; calculando de onde vinham os tiros, deixou sua guarida para dar um formidável chute com o calcanhar em um dos longos bancos da igreja. O banco, impulsionado, abandonou seu estado inicial, deslizando no sentido do segurança negro, que precisou recuar para evitar o repentino obstáculo; foi o suficiente para William efetuar um disparo com vantagem.

"Deed is done again, we've won

(Contrato cumprido novamente, nós vencemos)

Ain't talking no tall tales friend, 'causehigh noon, your doom

(Chega de conversa fiada amigo, porque bem ao meio dia, seu destino)

Coming for you, we're the cowboys from hell !

(Está chegando pra você, nós somos os cowboys do inferno!)"

Um tiro, um gemido; acertara em cheio a mão do homem, que largou a arma, vendo o sangue espalhar-se pelo punho. Tragando o cigarro, William sorriu.

- Chega de conversa fiada, filho...

O parceiro do homem ferido disparou; desviando-se das balas por sorte, marchando rumo à entrada, William respondia aos tiros com outros. O quarto homem engatinhava ao lado do texano. As balas ecoavam pela igreja, acertando vidraças, que espatifavam, e estátuas, danificando-as; quando acertavam mármore, uma fumaça branca de carbonato de cálcio se desprendia, aumentando a sensação de caos. Os gritos, tiros e os ruídos de vidros quebrando eram ensurdecedores quando unidos, porém a música do lado de fora sobrepunha-se ao inferno que se passava no interior da Igreja:

"Pillage the village, trash the scene,

(Saqueio a vila, destruo o lugar)

But better not take it out on me, cause

(Mas é melhor não me matar)

A ghost town is found

(Porque tem uma cidade fantasma)

Where your city used to be, so

(Onde sua cidade costumava ficar)

Out of the darkness and into the light

(Então saia da escuridão e entre na luz)

Sparks fly everywhere in sight,

(Faíscas voam em todo lugar à vista)

From my Double barrel, 12 gauge,

(Da minha espingarda cano duplo, calibre 12)

Can't lock me in your cage
(Você não consegue me trancar em sua jaula)"

E mesmo que tentasse, não conseguiria... William não estava em uma jaula, estava na casa do parceiro... a casa que aqueles dois desgraçados destruíam... ah, eles iam pagar...

Alguns tiros soltaram as correntes de uma imensa cruz que ficava no alto, levando-a ao chão e levantando mais poeira; William precisou saltar para um lado para evitar três disparos seguidos e, por baixo dos bancos, efetuou outros. Os seguranças estavam em pé, disparando em meio à fumaça e vidros estilhaçados.

"You see us coming

(Vocês nos vêem chegando)

And you all together run for cover

(E todos correm juntos para o abrigo)

'We're taking over this town'

(Estamos tomando essa cidade)"

Talvez um descendente de um guerreiro nórdico, talvez uma reencarnação, não era possível saber naquele instante, mas a verdade era que o misterioso advogado não se rendia àqueles estranhos homens; ao mesmo tempo concentrado na batalha que ali se instaurava, sentia seu corpo revigorar-se ao som daquela música que o satisfazia como uma cerveja gelada. Mais uma vidraça estourou à suas costas, e ele abaixou-se para proteger o rosto e, ao mesmo tempo, proteger-se dos tiros que vieram em proveito da situação; arrastou-se pelos bancos, errando por centímetros a canela do segurança louro, que se distraiu para proteger-se do disparo, dando tempo ao advogado para avançar alguns centímetros rumo à porta...

Outro disparo vindo do negro, que usava a mão boa. Mas faltava pouco para sair daquele lugar; saltou alguns bancos que estavam fora do lugar, disparando a esmo em meio ao caos, ouvindo passos atrás de si que vinham do homem que o seguia...

"Here we come reach for your gun

(Aqui chegamos, alcance sua arma)

And you better listen well my friend, you see

(E é melhor você ouvir bem meu amigo, você vê)

It's been slow, down below,

(A descida tem sido devagar)

Aimed at you, we're the cowboys from hell

(Mirados em você, nós somos os cowboys do inferno)

Deed is done again, we've won

(Contrato cumprido novamente, nós vencemos)

Ain't talking no tall tales friend, 'causehigh noon, your doom

(Chega de conversa fiada amigo, porque ao meio dia, seu destino )

Coming for you, we're the cowboys from hell!

(Chegará para você, nós somos os cowboys do inferno!)"


- Nós o estamos perdendo! - gritou um dos homens.

Mais tiros de ambos os lados, o ruído deles ricocheteando quadruplicando no lugar... um deles acertara algo de metal maciço... mais um tiro, vindo de Hoffman, que já estava à entrada; um sorriso enviesado, um trago de cigarro e um instante para admirar o trecho final:

"Step aside for the cowboys from hell!"

(Abram caminho para os cowboys do inferno!)

E saiu da igreja, sem cerimônias, guardando displicentemente as armas, deixando para trás caos e destruição.






















quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Cinco - Em maus lençóis - parte 2

Às nove e dez da manhã, enquanto Bethany saía apressadamente ao encontro de William Hoffman, Richard Yenne, da cidade vizinha de Saint Catherine, caminhava calmamente pelo Hospital de Raccoon City acompanhado por Conrad Parker, seu amigo. O primeiro trajava vestes comuns - camiseta, jaqueta, jeans e tênis; o segundo, porém, era visivelmente um médico em horário de trabalho.
- Se eu fosse a outra cidade visitar minha irmã - dizia Conrad - eu tirava umas férias de clínicas e hospitais, cara.
- Eu sei, mas isso aqui é bacana, e eu queria dar uma olhada nos equipamentos que Umbrella forneceu... são fora de série, cara!
Richard era um rapaz forte, mais novo do que Bethany, embora não parecesse; tinha cabelos mais escuros que os da irmã e era muito bonito. Mostrava uma ginga característica quando caminhava.
- Eu nem avisei Bethany que estaria na cidade. Na realidade, vim por ela e pela tecnologia daqui.
- Quanto tempo vai ficar, cara?
- Dois dias; depois volto para Saint Catherine.
- E suas irmãs, por que não vieram?
- Trabalho... uma delas queria que eu tomasse conta dos meus sobrinhos, mas eu simplesmente não poderia ficar três dias com eles... só consegui dois de folga. Mas depois vou precisar compensar com os plantões...
- Trabalho pesado por lá também?
- Até que não, Kurt... geralmente os pacientes são transferidos pra cá. Eu até gostaria de trabalhar aqui, mas me pagam melhor se eu ficar por lá...
Conrad sorriu para a prancheta que carregava, exibindo os dentes grandes.
- Um médico deve amar a profissão, Richard, e não o dinheiro...
- Eu sei, e amo os dois. - respondeu o rapaz, esfregando distraidamente o queixo com a mão esquerda; a direita estava no bolso da calça.
- E aquela sua amiga, Marquez?
- É amiga da Bethany, veio comigo. Foi direto pro trabalho dela.
- Assim, sem avisar?
- É, Liane gosta de fazer surpresa. Provavelmente vai invadir o escritório da garota de braços bem abertos, gritando 'Beeeethanyyy!!'
Conrad riu; Richard prosseguiu:
- Mas é engraçado vê-la de plantão. Normalmente, ela bota um calça bem larga e confortável, dorme na cadeira com os pés na mesa e deixa tudo preparado. Quando o telefone toca, ela já levanta metendo os pés nos sapatos que ficam no local exato e já vai vestindo o jaleco.
- Como sabe esses detalhes?
- Uma vez eu a peguei dormindo e a acordei com um telefonema só pra ver como reagiria.
- Sacanagem...
- Ela não me perdoa até hoje.
Os dois pararam diante de um dos vários quartos; uma parede de vidro ligeiramente embaçado que o separava do corredor mostrava que nele havia duas camas com seus respectivos acessórios médicos. Conrad consultou a prancheta.
- Quarto 47... ué, mas aqui diz que está vazio...
- Então na sua ficha está faltando dados, sr. Parker. - disse uma voz às costas dos dois jovens.
Um homem jovem, de cabelos bem assentados e olhos espantosamente azuis os encarava, as mãos enfiadas nos bolsos do jaleco; sorria com os lábios finos e esticados, tornando mais nítidas as rugas ao redor dos olhos.
- Perdão, Dr. Harker - disse Conrad, ignorando o espanto de Richard quando este ouviu o nome do homem -, mas este quarto é para tratamentos contra infecções virais e bacterianas, é o meu setor...
- Sim, Parker, mas fui designado para este quarto e 48 temporariamente. - retorquiu o Dr. Harker, sem se alterar - Pode seguir adiante com o seu trabalho.
Conrad assentiu e se afastou; Richard o seguiu, ainda olhando para trás.
- Cara - disse, quando já haviam distanciado do homem - Aquele é Graham Harker, um dos superiores de Ciências Médicas da Umbrella Corporation?!
- Ele mesmo - respondeu o amigo, indiferente, anotando algumas informações em sua prancheta - De vez em quando vem cá para algumas pesquisas de campo...
- Você já o viu antes?
- Algumas vezes...
- Cara, aquele é o Dr. Harker... ele é da Umbrella...
- É, eu sei disso.
Richard ainda parecia surpreso.
- Cuidado, Richard, vai acabar molhando as calças de alegria...
- Não precisa fechar a cara só por causa da bronquinha dele, mimadinho. - retrucou o outro - Só acho o máximo o trabalho daquele cara... você se lembra daquela palestra em que...


A princípio, imagens passaram lentamente por sua mente; contudo, à medida que tomava consciência de sua própria existência, as imagens atacavam seu cérebro como tiro de metalhadora. Reuniu, então, forças para abrir os olhos muito verdes.
Divisou um teto branco e sentiu uma cama levemente dura. O ambiente era fresco, até frio; a temperatura baixa causava um arrepio em seu tórax nu. Ao olhar para os lados, constatou o que já havia notado; estava sem seus óculos, o que certamente era um desanimador empecilho.
À sua esquerda, havia uma outra cama idêntica à sua, e alguém se mexia nela; não conseguia divisar exatamente quem. À direita, havia uma porta branca e a metade superior da parede era de um vidro translúcido.
- Carl... - disse uma voz calma e familiar à sua esquerda - Onde estamos, cara?
Carlos virou-se.
- Erek?
- Não, sua avó de cueca... não tá me vendo, cara?
- Estou sem os meus óculos, porra.
- Estão na mesinha da sua cama. - disse o vulto de Erek - E quem foi o mané que me colocou pelado nessa joça?
Carlos tentou mexer os braços para se sentar; estavam amarrados.
- Cacete, estamos presos...
- Eu notei!
Erek mexeu-se com força, fazendo a cama ranger.
- Caralho, o que diabos está acontecendo? - perguntou Carlos - Só me lembro de ter levado um tiro...
- Eu também... eram sedativos. Dormimos feito rinocerontes, cara - comentou Erek - Achei que nos matariam ou nos mandariam para a prisão.
- Mas não fizeram isso. Por quê? - Carlos sentiu uma pontada e desejou, de todo coração, ter as mãos livres para levá-las à cabeça - Essa merda ainda tá fazendo efeito...
Erek franziu a testa.
- Provavelmente queriam checar se estávamos... infectados.

Carlos forçou a vista, olhando para os lados. Viu dois vultos pararem diante da porta e gritou:
- Ei! Ei! Quem são vocês?
Um terceiro vulto juntou-se aos outros dois; pareceu tê-los
dispensado, porque foi o único que permaneceu diante da porta. Quando mais três apareceram, a porta abriu-se; Carlos aproveitou para gritar:
- Que porra é essa?
O homem que vinha à frente ergueu as sobrancelhas friamente, os olhos cintilando misteriosamente. Carlos, que era míope, não percebeu, mas Erek viu e não gostou. Os outros três homens, trajando jaleco como o primeiro, vinham atrás; a porta fora fechada. Pelas vestimentas, eram médicos.
- Os sedativos funcionaram por tempo previsto, senhor. - informou um dos homens, fazendo anotações em uma prancheta.
- Eu notei. - retorquiu o que vinha à frente.
Carlos queria muito pegar seus óculos; sentia-se não só cego como mudo e surdo sem eles.
- Dr. Harker?! - exclamou Erek.
- Sim, sr. Leon, eu mesmo... e temos aqui nossos dois aventureiros. - disse o Dr. Harker, sorrindo polida e ironicamente para os dois - Mau jeito, rapazes.
Carlos franziu a testa; Erek perguntou, amarrando a cara:
- O que aconteceu na Colmeia... doutor? - a última palavra foi pronunciada com o máximo de sarcasmo que o jovem seminu e encurralado conseguiu reunir.
- Receio, sr. Leon, que este assunto não lhe interessa. - respondeu o homem, erguendo as sobrancelhas friamente e levando as mãos às costas - Pensei que houvesse aprendido isso quando nós flagramos sua invasão à respeitada mansão Spencer...
-... que por sinal é a entrada de emergência para a Colmeia! - exclamou o outro entredentes, desafiadoramente - É da nossa conta se isso nos põe em risco!
Harker riu, assim como os outros três homens.
- Risco! - repetiu ele, deliciado - Qual risco, sr. Leon? As histórias fantasiosas que o senhor provavelmente propaga porque nunca trabalhou para a Umbrella Corporation? Ou os lamentáveis delírios da jovem Judith Palttrow?
Erek, que estava pronto para argumentar, gaguejou ao ouvir a última frase e olhou rapidamente para Carlos. Este, que se mantinha calado, ergueu as sobrancelhas, indicando que pensava o mesmo que ele - Harker sabia. E se ele sabia, certamente...
- Se não há risco, por que estamos aqui? - perguntou Carlos, procurando manter a voz controlada - Se invadimos uma propriedade, certamente este não seria o local adequado para nós, não é mesmo?
- Não, não seria. - respondeu Harker, balançando negativamente a cabeça - Estão aqui com um propósito muito interessante; creio que serão os pioneiros nesta admirável empreitada...
Havia um tom cínico na voz daquele homem, mas os dois rapazes nada disseram; os outros médicos mantinham-se impassíveis, cochichando e trocando informações misteriosas; pareciam indiferentes à estranha conversa entre seu chefe e aqueles jovens perdidos e seminus. Harker prosseguiu:
- Do contrário, não estariam mais aqui, não é mesmo?
- O que vai fazer? - perguntou Erek.
- Pesquisa e aperfeiçoamento. - respondeu o outro simplesmente - Foster!
Um dos homens adiantou-se.
- Já tem os dados do sr. Visconti, Foster?
- Sim, senhor. Um metro e noventa e sete centímetros, massa corporal de oitenta e seis quilogramas, um detalhe para o problema de visão, por isso coloquei os óculos dele na mesa...
Carlos sentiu o estômago despencar; certamente aquilo não era um relatório que se fazia de alguém que seria preso ou morto. Parecia...
- Injetem nele o G-vírus. E no sr. Leon, vamos analisar o efeito do T.
Dr. Harker virou-se para os dois rapazes; o choque os impedia de falar.
- Não estavam à procura de verdades? Pois vão tê-las em suas veias... literalmente. - e, voltando-se para os outros médicos - Coloquem-nos no projeto GT; quero relatórios atualizados constantemente.
Erek havia notado que o Dr. Harker mantinha um microfone junto à orelha e, finalmente, aquele homem parecia estar usando, pois levou uma das mãos a ele, parecendo, pela primeira vez, assustado.
- Suspeitas confirmadas? Escapou? Ora, peguem-no imediatamente, e tomem cuidado!
O homem virou-se para os outros.
- Abortar temporariamente o projeto GT. Um suspeito está à solta no hospital, precisamos agir.
Os outros homens entreolharam-se.
- Mexam-se, vamos! - disse o Dr. Harker - Precisamos controlar a situação.
- E as cobaias, senhor? - perguntou um dos homens.
- Deixe-os onde estão.
Os quatro homens precipitaram-se apressadamente pela porta; o último trancou-a.
- Merda, o que diabos aconteceu? - perguntou Carlos.
- Algo saiu errado para eles, e não parece ser coisa boa, Carl. "Um suspeito"... você acha que seria...
- Bethany? Não sei como chegaria até aqui e nem por quanto tempo dormimos... que se dane, temos que sair daqui!
- Como?
- Não sei, porra, estou sem os óculos!
- Quantos graus você tem?
- O suficiente para enxergar bem mal.
Erek fez uma careta e olhou as própria cintas que o prendiam; eram brancas, semelhantes às que usavam em hospício, e precisavam de uma chave para serem abertas. Haviam amarrado seus braços e seu tórax. Algo espetando seus pulsos lhe informava que havia uma agulha que injetara sedativos até minutos antes, e estava ligada ao soro preso ao lado da cama. Olhando para a mesinha à esquerda, descobriu mais agulhas, esparadrapos e algodão, todos soltos, com a visível utilidade de servirem de substitutos em caso de necessidade.
- Ei, Carl, tive uma idéia. - disse Erek.


Em um horário após a fuga de Bethany, o engenheiro Cássio estava terminando seu relatório com a televisão ligada. Parou para assistir uma horrenda notícia no plantão, em que três filhos quase haviam matado a mãe a dentadas. O rapaz contemplou a cena chocante em que davam close na mulher, que mantinha as mãos na altura do rosto, as feições e os braços encharcados de sangue, e se sacudia em um choro escandaloso; decidiu, então, desligar a televisão e prosseguir com seus afazeres. Foi quando uma voz perguntou:
- Bethany Yenne está aqui?
O rapaz ergueu a cabeça lentamente. Pelo uniforme característico, o homem era um superior daquele estabelecimento.
- Não. - respondeu em tom inexpressivo - Provavelmente ela está lá embaixo, no setor três.
O homem encarou o engenheiro longamente e saiu. Cássio, porém, continuou a contemplar o umbral vazio por segundos que lhe pareceram horas. Tomado de uma fortíssima intuição precedida por pensamentos que aumentavam de velocidade exponencialmente, o rapaz ergueu-se silenciosamente e, pé ante pé, parou diante da porta do escritório. Viu o homem se afastar pelo corredor deserto enquanto apanhava algo no bolso. Seguiu-o de modo a ficar alguns passos do outro, o que foi uma sorte, porque pôde ouvir o estranho dizer no walkie talkie:
- O colega dela não o viu. Devo interrogá-lo? Ela pode ter-lhe dito algo...
Silêncio. Cássio parou de chofre, porém o outro continuou a andar, ouvindo atentamente as instruções.
- Sim, senhor. - e virou à direita em outro corredor.
Cássio manteve-se quieto por um longo tempo, pensando rapidamente. Estavam atrás de Bethany, e a coisa parecia ser realmente grave. Algo simplesmente não se encaixava; se fosse porque a moça matara o trabalho, por que o homem não dissera para Cássio avisá-la caso a visse? Era evidente que sabiam que o rapaz estava errado, que Bethany não estava ali. E por que queriam interrogá-lo também?
Algo definitivamente não se encaixava.
Lembrou-se, pela primeira vez naquela manhã, das palavras da moça contra a Umbrella.
Era aquilo que não se encaixava. Trabalhava com Bethany tempo suficiente para concluir que a amiga não estava em seu estado normal. Ela sempre elogiara a corporação e orgulhara-se de pertencer a ela. Era uma moça alegre e gostava de trabalhar; não saía do serviço em horas indevidas e também não nutria nenhum sentimento contra o lugar. No entanto, naquela manhã, aparecera transtornada, falando coisas sem nexo e simplesmente não se importara em deixar o trabalho pela metade para fazer qualquer outra coisa.
Bom, ela passara a noite em claro no computador com os amigos. Fora dormir um pouco?
Não, isso não tinha o perfil de Bethany. Por questão de honra, ela não deixaria o dever de lado por isso. Conhecia as próprias responsabilidades; se não dormira à noite, era porque tinha perfeita consciência das conseqüências, de modo que isso não atrapalharia suas funções.
Então, por que aquele comportamento estranho?
Ela estaria certa? Ou estaria errada e, nesse erro, teria feito algo grave?
Contudo, queriam interrogar ele, Cássio... por quê?
Bethany realmente compartilhara estranhas idéias com eles, mas eram tão estranhas essas idéias que o rapaz não lhe dera a devida atenção... então, por que era importante para os superiores interrogar o rapaz? Se era um absurdo tão grande, por que interrogá-lo?
Balançou negativamente a cabeça. Estava viajando na maionese. Deixara-se levar pela oratória e pelo jeito da garota, tanto que quase entrara na onda dela com esses pensamentos absurdos.
A verdade era simples:
Bethany, sempre ansiosa, deixara-se levar por qualquer besteira pela manhã, mas logo esquecera.
Em seguida, precisara sair para resolver qualquer coisinha.
E aquele homem queria interrogar Cássio para que ele não acobertasse a fuga da moça, afinal eram colegas de trabalho e amigos.
Simples.
Não, não era tão simples.
Era evidente que desconfiavam que Cássio mentira.
Era evidente que Bethany, em hipótese alguma, faltaria ao trabalho; e se precisasse, de fato, fazê-lo, daria satisfações aos superiores, que não precisariam perguntar por ela.
Contudo, estavam atrás dela e isso era fato. Logo, saíra escondida.
Logo, a causa de sua saída, aparentemente, não era algo justificável aos olhos daqueles homens.
Logo, havia algo errado. E desconfiaram dele, de Cássio.
Não adiantava. Havia aquela sensãção de que alguma coisa estava fora do lugar. Uma peça fora da engrenagem.
Coçou a cabeça. Apanhou o celular e discou o número de Will Hoffman. Ninguém atendeu. Discou o número de Bethany. Idem.
- Estranho... - disse.
Estaria ficando paranóico? Estaria. Discara o número de um homem insone que, pelo menos em algum momento do dia, tinha de dormir. E discara, também, o número da dita desaparecida. Estava claro que nenhum dos dois atenderia.
Discou o de Carlos. Nada.
Outro noctívago. Estava dormindo, obviamente.
O de Erek. Nada. Droga, estavam todos no chat-coruja! Estavam dormindo, todos!
Precisava pôr as idéias no lugar. Do mesmo jeito que aqueles fatos eram estranhos, eram normais. Qual seria a verdade?
Precisava encontrar um daqueles caras. Qual deles estaria em um lugar previsível?
Bethany sumira e adorava variar, pois detestava rotina.
Carlos e Erek ele não conhecia a ponto de ter esse tipo de informação.
William... ele gostava de praticar tiro. Estava no clube! Diabos, não estava dormindo, e sim no clube!
E era para lá que Cássio iria. Havia algo estranho acontecendo por ali e ele queria entender. Não teria se intrometido, mas o homem claramente demonstrara querer interrogá-lo... a troco de quê?
Fingindo naturalidade, mas mostrando rapidez, o rapaz precipitou-se pelos corredores da indústria que até então fora seu confortável ambiente de trabalho tomando atalhos pouco usados. Precisava sair antes que o detivessem. Ou pensassem em fazê-lo.
Mas já tinham pensado.
De fato, o fato é que obteve sucesso. Tentou não mostrar culpa em suas feições ao passar pelas pessoas, e cumprimentou seus amigos e colegas com a naturalidade de sempre. Finalmente, saiu da indústria, que naquele instante lhe parecera maior com seus corredores tortuosos, do que pensara até então, e entrou no estacionamento. Ainda estava indeciso se deveria andar abaixado para não ser encontrado ou ainda agir com naturalidade, e realmente queria não ter que passar pelo porteiro. O fato de sair quando deveria estar lá em cima trabalhando contribuiu para que se sentisse fora das regras da Umbrella.
Conseguiu sair sem dificuldades, e já estava a vinte metros da entrada quando avistou uma moça bonita, curvilínea, de pele morena e cabelos ondulados que ia na direção oposta, trajando vestes informais. Talvez tivesse apenas contemplado sua beleza se não a reconhecesse.
"Ei", pensou consigo mesmo, "Ela se parece com uma amiga da gorda... não, ela É a amiga da gorda... qual é mesmo o nome dela?"
- Você! - disse ele, apontando para a garota - Ei, você!
A moça olhou para trás, sem entender, e pareceu surpresa com o fato de o rapaz dirigir-se a ela daquele jeito.
- Cássio?
- Sim... qual é o seu nome? - indagou o rapaz, aproximando-se.
- Liane. Sou amiga da Beth, lembra?
- Lembro... escuta, você a viu ou entrou em contato hoje?
- Não, eu vim de surpresa na cidade com o Richard... por quê?
- Bom, é que ela estava meio estranha hoje de manhã... venha, eu conto tudo. - disse o rapaz, tomando o cuidado de afastá-la do local.

sábado, 29 de novembro de 2008

Quatro - Em maus lençóis

Eram dez horas da manhã quando o apresentador do telejornal local Samuel Allen finalmente deu-se por dispensado do estúdio do Canal 7 de Raccoon City. Passara as últimas horas apresentando a parte matutina do programa e trocando informações com seus colegas de profissão.


Tratava-se de um rapaz de estatura mediana, cabelos negros e curtos e óculos de aros finos. Seu rosto seria jovial demais para um jovem que estava muito próximo da casa dos trinta anos, não fosse pela barba rala que, por vezes, cultivava. Embora tivesse apenas 27 anos, já se graduara em dois cursos - Ciências Sociais e Jornalismo. Responsável e polido, sempre fora muito maduro para a idade e bem comunicativo, embora passasse um bom tempo em silêncio, observando os acontecimentos ao seu redor.


Após horas exercendo a comunicação, sua especialidade, o prodigioso jornalista estava saindo de seu prédio de trabalho quando alguém esbarrou nele - o freelance Zack Everett, um universitário um tanto quanto alegre.


- Opa, Everett...


Everett fixou nele os olhos arregalados e empolgados, a câmera fotográfica ainda balançando no pescoço.


- Foi mal, Allen! Cara, tenho certeza de que minhas imagens serão capa do jornal vespertino!


Samuel sorriu. Tanto o telejornal quanto o único jornal escrito da cidade pertenciam à mesma companhia, e esta era patrocinada por ninguém menos que a Umbrella Corporation. Não era um jovem simplório; repudiava o monopólio que a aquela empresa exercia, e tinha perfeita consciência, como jornalista e cidadão, de que a presença de somente uma fonte de informação tornava qualquer notícia duvidosa. Sabia perfeitamente que a intenção da Umbrella era, além de conquistar a diretoria da imprensa, manipular as informações de modo a apresentar uma boa imagem de sua corporação à população.


Por isso, aceitara trabalhar no estúdio. As informações eram modificadas lá, de modo que Samuel poderia ter acesso às verdadeiras e ver em que ponto foram modificadas e, se possível, contar o que fosse verídico sem ser prejudicado.


- Beleza, cara - disse Allen - E que imagens são essas?


- Preciso ver o Wood!


- Calma - retorquiu Samuel, sorrindo agradavelmente - Você quer uma tiragem no jornal, certo? Se me mostrar e se forem boas, posso garanti-las no telejornal vespertino.


Zack Everett encarou seu interlocutor; sabia que este não blefava. Samuel Allen era o apresentador do telejornal e um homem muito influente.


- Certo - concordou, sorrindo - Saca só, cara...


Ele retirou algumas fotos do bolso interno da jaqueta e mostrou-as; os dois jovens curvaram as cabeças para vê-las.


A primeira foto era chocante; mostrava uma senhora sentada na grama, ao lado de um banco de praça, com as vestes ensangüentadas; ao seu lado, dois policiais igualmente feridos tentavam socorrê-la; um terceiro policial, ileso, estava curvado sobre um doberman deitado, aparentemente inconsciente e muito ferido. Um outro cachorro, pastor alemão, jazia também na grama e - o estômago de Samuel embrulhou - restos de sua cabeça estavam espalhados pelo manto verde. Um homem em pé, civil e também ileso, embora sujo de terra, observava a cena. Várias pessoas, todas assustadas, cercavam o grupo; algumas fotografavam a cena.


- Esta eu tirei hoje de manhã, no parque... um cachorro atacou uma velhinha e o dono não soube dizer o que aconteceu... três policiais apareceram com o doberman, que atacou o pastor... o pastor matou o animal e atacou os policais que tentavam contê-lo, então aquele policial ali, o dono do doberman, atirou nele...


Allen continuou a olhar para a foto, chocado.


- Tudo culpa do pastor?


- Sim... cara, nem Stephen King faria uma coisa dessas! Acho que o pastor estava com hidrofobia... nem aquele São Bernardo do King foi tão...


Everett era fanático pelos contos de Stephen King. Samuel, porém, não gostou da comparação.


- King é ficção. Isso é realidade, e é... terrível.


- Calma, tem mais, saca só essas outras...


A segunda foto também continha policiais e civis; dois policiais empenhavam-se em conter um homem pálido de vestes empapadas de sangue, que urrava, enlouquecido, tentando se soltar; dois homens igualmente feridos pareciam indignados e dirigiam-se a um terceiro policial, que tomava notas em seu bloco. Pareciam agressivos, também, mas, a julgar pelo fato de estarem soltos, não apresentavam perigo.


- E esta?


- Um cara foi atravessar a rua sem olhar para o sinal; um dos motoristas, tentando se desviar dele, bateu no outro carro; os dois saíram para tomar satisfações com o sujeito e ele simplesmente atacou um deles, e atacou o outro quando este tentou segurá-lo. Alguém chamou a polícia.


- Atacou? Partiu pra porrada?


- Ele os mordeu.


Samuel deu uma risadinha nervosa.


- Mordeu?!


- É. Um lunático, Allen, simplesmente agarrou o pescoço deles e mordeu... arrancou pedaço, foi o que disseram.


- Um vampiro à solta?


- À luz do dia? Pouco provável. Prefiro o Aviador Noturno.


Samuel riu pelo nariz e viu a última foto. Era a mais chocante de todas; na sala de uma casa comum, uma mulher estava caída no chão, o rosto descorado e os olhos abertos, sem viço; suas vestes estavam vermelhas e, em pé, ao lado dela, dois policiais tentavam conter um homem louco, de aspecto semelhante ao da segunda foto, e um homem aparentemente civil, segurava pelas axilas uma menininha de uns oito anos; pálida como o homem, com o lado direito do pescoço e dos ombros ensangüentados, gritava a plenos pulmões, exibindo os dentinhos amarelos.


- O que é isso? - perguntou Allen, impressionado.


- Um vizinho ouviu gritos e contatou a polícia... quando chegaram lá, pai e filha estavam devorando as vísceras da mãe. Quando viram os policiais e o vizinho, os dois tentaram atacá-los, mas foram contidos.


- E como você soube?


- Eu sou amigo do vizinho e estava na casa dele quando aconteceu.


- Ouviu os gritos?


- Sim... - respondeu o rapaz, sério - Horríveis... o Mark ouviu primeiro a garotinha gritar, mais cedo, achou que fosse normal, ela tivesse aprontado e levado algumas... gritou e se calou. Horas depois, a mãe voltou e também gritou. Foi horrível, cara, ela não parava de gritar "o que há com vocês? Penny, Penny, venha! Penny, o que você tem?"... horrível, cara.


Samuel empurrou as fotos para Everett, enojado. Chocado.


- Vá procurar o Wood. Depois vejo com a turma se vamos colocá-las no telejornal também.


- Beleza, Allen! Valeu, mesmo, até mais! - e o rapaz saiu ligeiro.


Samuel viu-o sumir no corredor; inspirou profundamente e saiu do prédio, passando pelos degraus de entrada e desviando-se das pessoas.


Arrependia-se de ter pedido para ver as fotos. Por que não deixara Everett seguir viagem com aqueles flagras macabros? Por que tivera a santa curiosidade de interrogá-lo? Por que diabos fora Everett esbarrar nele?


Aquelas fotos eram medonhas... a velhinha estirada na grama... os homens feridos... os miolos do pastor na grama... pai e filha unidos em um gesto de canibalismo, devorando as entranhas da mãe...


O que estava acontecendo com o mundo?


Ia tomar um café rápido e falar com um colega em uma breve troca de informações. Aproveitaria para buscar um livro que reservara na semana anterior e faria compras no supermercado. Ainda estava deveras impressionado com as fotos quando consultou o relógio e viu que eram dez e doze da manhã.


Ao meio-dia, almoçaria, mas não gostaria de fazê-lo sozinho. Precisava distrair-se; aquelas fotos não lhe saíam da cabeça. Tomado por uma súbita inspiração, parou na calçada, apanhou o celular e discou um número.


- Isso aí, Bethany... - disse baixinho, enquanto esperava a chamada ser atendida.









Em algum lugar de Raccoon City, em um edifício comum de departamentos, no nono andar, em uma salinha discreta de propriedade desconhecida, uma jovem engenheira era tomada por um pânico sem tamanho. Não sabia o que lhe aconteceria, apenas que não tinha forças para passar por três homens adultos.


- Estamos todos decepcionados com o seu comportamento, Srta. Yenne - disse o Dr. Harker, em um tom falsamente paternal - A Umbrella a recebeu de braços abertos. Mal havia terminado o seu mestrado e nós lhe concedemos liberdade de atuação e um ótimo pagamento. A senhorita escolheu seu campo de trabalho, fixou o seu horário, e tudo com uma gorda recompensa. É assim que nos agradece? Espalhando boatos maldosos de nossa corporação para os seus amiguinhos?


Boatos maldosos? O lado irônico de Bethany não deixou de sorrir por dentro; se realmente não houvesse verdade no que ela dissera, para começar, não estaria ali, visivelmente sendo vítima de um seqüestro. Se fizeram aquilo, era porque ela, Bethany, criara algum risco à corporação, e com certeza não se tratava de meros "boatos maldosos".


- Então - ela disse - Demita-me. Eu assino qualquer documento afirmando que eu menti, se for o caso.


Sim, pensou, assinaria, avisaria seus amigos de algum jeito do perigo e cairia fora da cidade. E Carlos e Erek... a garota estremeceu. O que lhes acontecera? Estariam vivos?


Dr. Harker riu. Foi uma risada seca, sem alegria; seus olhos, contudo, brilhavam com mais fervor, e de uma maneira que Bethany não gostou.


- Não será preciso assinar nada, srta. Yenne. - respondeu o homem, os olhos cheios de malícia - Nem mesmo a sua carta de demissão.


A jovem engenheira engoliu em seco. Podia ler nos olhos de Harker. Suspeitava


(com toda a certeza)


que não sairia viva dali. Não era apenas uma conclusão tirada em meio ao pânico. Bethany estava lúcida. Apesar de toda aquela formalidade - três homens engravatados em um escritório, membros de uma rica empresa -, sentia que o final seria brutal. Como


(teria sido para Carlos e Erek?)


se tudo não passasse de um acordo, uma relação de causa e efeito... ok, Bethany Yenne, você infringiu o contrato, pisou um dedo fora da linha, começou a espalhar verdades indesejáveis... você acaba de se tornar uma indesejável e, lamentavelmente, deve ser eliminada. Vamos acabar logo com isso, senhores,


(como acabaram com Carlos e Erek)


temos muito a fazer, um acidente para solucionar.


Um ruído.


Um tiro? Não.


Não havia armas à vista.


Era apenas o celular de Harker. Ele levou-o ao ouvido, ainda mantendo os olhos em Bethany.


- Ótimo. Faça isso. - disse simplesmente, desligando o aparelhinho em seguida e embolsando-o - Parece que encontraram o seu amigo William - acrescentou ele para Bethany, com um sorriso leve e maldoso - Pobre rapaz, andou ouvindo muitas bobagens suas...


O estômago de Bethany despencou; pegaram Will! E a culpa era dela.


Ele se juntaria a Carlos e Erek...


... por culpa dela!


Outro ruído - uma música!


- É o celular dela, senhor. - disse um dos homens.


Só então Bethany notou que, de fato, era o seu celular. Ela olhou para o Dr. Harker, hesitante. Ele sorriu, piscando lentamente.


- Não seja grosseira, srta. Yenne. Atenda.


Com as mãos trêmulas, Bethany pegou o celular e levou-o ao ouvido.


- Oi. - sabia que era Samuel Allen, mas não se atreveria a dizer o nome do rapaz diante daqueles homens.


- Oi, Bethany... escute, que tal se fôssemos almoçar hoje? Eu tenho a tarde toda livre, mas sei que você trabalha, então poderíamos aproveitar o almoço... que acha?

- Ah, S... é que eu - a garota olhou para Dr. Harker, que acenou afirmativamente com a cabeça - eu preciso tomar conta do Phillip... estou indo para a casa dele agora, você sabe onde fica, né? A mãe dele vai passar o dia fora, e eu preciso ficar com ele... por que não vem comigo?

- Esse convite veio em boa hora... preciso mesmo me distrair. Você está indo para lá?

- Eu ia na hora do almoço, mas vou me atrasar um pouco; você poderia ir na frente e avisar a Rachel que eu vou me atrasar? Você ficaria com o Phil por uma horinha e então eu chegaria...

Phillip era um dos sobrinhos de Bethany; tinha três anos e morava na cidade vizinha, Saint Catherine, a duas horas dali de carro. Bethany queria tirar Samuel da cidade, e não encontrara outro jeito que não fosse aquele. Era verdade que tinha combinado de ficar com Phillip à tarde, mas seria por dois dias, e não uma tarde só; sabia que, se dissesse a Samuel toda a verdade - se Harker não lhe tomasse o celular, claro - a vida do amigo estaria em risco como a dos outros. Sabia que, se começasse a dizer a verdade e, de repente, o telefone ficasse mudo, Samuel desconfiaria de algo, contudo sua vida também estaria em jogo. Aquele jovem, como Erek, nunca gostara da Umbrella, porém, ao contrário deste, que defendia a tese de que a corporação produzia fórmulas ilícitas, aquele argumentava que Umbrella não precisava apelar para práticas ilegais para conseguir ser suja e desprezível. Normalmente, o exemplo que citava eram os monopólios.
- Esta cidade - costumava dizer - é o quintal da Umbrella, apenas isso. Qualquer instituição que você encontrar por aqui é fachada. É tudo Umbrella, Umbrella e Umbrella.
Se Samuel fosse para Saint Catherine, esperaria por ela, Bethany. A mãe da criança, que já conhecia o rapaz, viajaria... claro que, uma hora, ele ia notar tanto a demora de Bethany quanto da mãe, mas o que poderia fazer? Teria de esperar pelo retorno da mãe da criança, que não lhe daria o número do próprio celular porque o esperado seria que ela, Bethany, aparecesse, e Bethany possuía o número... assim, Samuel ficaria, obrigatoriamente, dois dias inteiros com o garoto, pois ele não poderia sair daquela cidade e deixar Phillip, e tampouco poderia levá-lo sem avisar a mãe... talvez efetuasse algumas ligações, tentasse saber o que acontecera com ela, Bethany
(que talvez já nem estivesse mais ali)
e se salvaria do acidente
(não, ela definitivamente não estaria ali)
que Judy tanto temia. Pobre Judy... como estaria? Ela fora tão clara, e só agora Bethany compreendia! Judy não dissera para sair avisando as pessoas, só para... sair da cidade. Em vez de dar bandeira e colocar a vida dos amigos em Jogo, Bethany poderia ter bolado um plano para tirá-los da cidade sem, necessariamente, dizer a verdade antes do tempo...
Mas não. Fizera tudo errado. Mas pelo menos um seria salvo: Samuel.
- Claro, Bethany. - respondeu Samuel do outro lado da linha - Posso ir, sim.
- Estamos combinados, então?
- Sim.
Era a despedida. Bethany teve vontade de dizer algo mais, uma última vez, mas percebeu, pelo olhar voraz, quase faminto do Dr. Harker, que parecia ler seus pensamentos, que era melhor não falar nada, ou atrairia muito a atenção do rapaz. E, naquele momento, a segurança dele era muito mais importante. Quanto menos ele desconfiasse, maiores as chances de sobreviver àquele dia.
- Bethany?
A moça engoliu em seco.
- Sim?
- Gostaria de dizer alguma coisa?
Sim. Samuel, eles me pegaram, as pessoas da Umbrella, sinto que não me resta muito tempo após o término desta ligação, e a única que quero é que você vá para mais longe possível. Ao final deste telefonema, é provável que não mais nos falemos, portanto, é melhor você se apressar. Já pegaram Carlos, Erek e William. Você tem que fugir. Foi bom ser sua amiga.
- Não. - disse Bethany - Bem, agora tenho que desligar... um relatório imenso para terminar
(e que não terminaria)
projetos para coordenar
(se estivesse viva para tal)
e outras coisas... preciso apressar, já que temos um encontro, certo?
- Certo, srta. Bethany. - disse o outro naquela formalidade simpática e sutilmente brincalhona - Bom trabalho e um bom dia para você!
- Para você também.
Fim. Vagarosamente, Bethany abaixou a mão direita com o celular desligado, os olhos ainda no Dr. Harker. Seus olhos pareciam prestes a transbordar, e precisou de muita força de vontade para se manter firme. Parte dela queria implorar para sair dali; a outra parte sentia tanto nojo daquele homem, que se sentia no direito de atirar para o ralo vidas inocentes para obter silêncio em nome do lucro com suas práticas ilícitas.
- É incrível - disse Harker - como alguns trabalhadores só fazem o serviço direito quando estamos de olho neles, não é mesmo, srta. Yenne?
Agora as lágrimas queriam descer, mas de raiva e não de medo.
- O que fez com Carlos e Erek? - perguntou Bethany, crispando os lábios.
- Estão em boas mãos. - respondeu o outro simplesmente - Logo, não precisará mais se preocupar, portanto, poupe o seu tempo. E gostaria também que não começasse a gritar; isto certamente colocaria em risco a vida de Hoffman.
Bethany engoliu em seco.
- E como posso garantir que ele continuará vivo mesmo que eu não grite?
- Não é garantia, é matemática, srta. Yenne. Probabilidade, já estudou? Basicamente, se a senhorita gritar, ele com certeza morre. Se não gritar, há cinqüenta por cento de chance de ele não morrer.
Como Bethany permancesse em silêncio, Harker continuou:
- Gostaria de fazer um último pedido, antes que eu me retire desta sala?
Os braços da engenheira, de cada lado do corpo, tremiam; a moça, apertando os olhos de raiva, apenas cuspiu, acertando em cheio o homem. Ele fez uma careta e limpou o rosto com a manga do casaco. Os dois ajudantes de Harker mexeram-se, ligeiramente inquietos.
- Vejo que não. - disse Harker com simplicidade e, virando-se para os homens, acrescentou, acenando levemente com a cabeça - Cuidem dela. - e virou-se para se retirar, abrindo a porta.
Tudo o que aconteceu em seguida foi em uma fração de segundo; no momento em que o doutor colocou a mão sobre a maçaneta, os dois indivíduos que ladeavam Bethany estenderam a mão para segurá-la. Antes que o fizessem, porém, a garota abaixou-se e pulou, colocando-se lado a lado com Harker, ainda abaixada; em seguida, golpeou o homem com uma cotovelada entre as pernas e abriu a porta com força. Sentiu mãos agarrarem seu jaleco, mas se atirou com tal ímpeto para fora da sala que conseguiu se livrar, caindo no meio de um corredor apinhado de pessoas que se assustaram com sua repentina aparição. Em seguida, equilibrando-se antes para não cair, precipitou-se corredor afora, sem definir rumo, desejando apenas abrir a maior distância possível entre ela e seus captores. Colidia com pessoas sem ver seus rosto, e chegou a fazer alguém atirar para o alto uma pilha de papéis, criando uma chuva de folhas pelo local.
Ouvia passos apressados atrás, e continuou a se meter por corredores brancos e sóbrios e, quando sentiu que os estava despistando com sua agilidade reforçada pela baixa estatura e pouco peso, forçou uma porta que, milagrosamente, estava aberta, e precipitou-se por ela como se sua vida dependesse disso
(e dependia)
pronta para resistir até não ter forças.
Entrou em um lugar escuro, fechando a porta atrás de si, e tateou na parede em uma busca frenética por algum interruptor; não lhe ocorreu apenas olhar até encontrar a luz esverdeada do botão. Ao encontrá-lo, apertou-o; uma lâmpada fraca acendeu-se, revelando uma escada escura, estreita e íngreme que levava aos andares superiores e inferiores.
Pensando rápido, achou que era melhor subir, pois o óbvio seria descer; assim sendo, correu para o décimo patamar e, quando saiu das escadarias para um corredor com poucas pessoas, ouviu uma porta abrir-se no andar inferior.
No corredor, virou à direita, desembocando em um deserto; nele havia uma espécie de portinhola de metal a um canto. Desesperadamente, Bethany enfiou os dedos em dois orifícios no alto que deviam pertencer a uma maçaneta que não estava ali e puxou-o; a porta se abriu, formando uma espécie de prateleira e revelando um armário de vassouras, e a jovem entrou, selando a entrada atrás de si. Quando foi se endireitar, ajoelhada e encurvada, bateu a cabeça no teto de concreto e, sentindo uma dor excruciante, mergulhou na completa escuridão.



Já passavam das dez horas quando um homem de roupas escuras e chapéu, de cigarro na boca e ares de pouco caso, saiu do campo de tiro. Parou à porta dele apenas para acender o cigarro com seu isqueiro prateado, seguindo viagem logo depois. Andou tranqüilamente como se apreciasse o fato de poder fazê-lo até o seu jipe. Apesar do tempo ameno, o sol já estava começando a se revelar, de modo que colocou os óculos escuros antes de ligar o carro e partiu.
Decidindo repentinamente tomar uma dose no primeiro bar que visse, tragou o cigarro e estacionou poucos minutos depois diante de uma lanchonete.
O lugar, todo amarelo e vermelho, com mesinhas juntos à vitrine e um balcão comprido ao fundo, estava lotado porque era a hora do brunch, de modo que William precisou lutar contra o trânsito de fregueses e garçons para chegar até o balcão, onde sequer pôde se sentar; todos os lugares estavam lotados. A acústica do local fazia as conversas ecoarem de tal forma que Hoffman sentia-se em um galinheiro; em algum lugar no alto, uma televisão transmitia os programas locais como se falasse sozinha, pois ninguém lhe dava atenção.
- Ei, amigo - disse William, levantando uma mão rapidamente ao avistar um garçom - Duas cervejas geladas.
O garçom ergueu o polegar indicando que havia entendido e afastou-se; William desejou ter pedido duas latinhas para não precisar tomar naquele lugar infernalmente lotado e barulhento. Entretanto, sendo paciente e distraído, apoiou os braços no balcão, ainda de óculos escuros, tamborilando o mármore frio com os dedos, e aguardou, a mente chegando à sua casa.
A lanchonete servia almoço também; a pessoa fazia um pedido e algum atendente, por trás do balcão, servia o prato com a comida disposta em várias terrinas; o móvel que as continha era espelhado, de modo que William podia olhar para a rua atrás de si sem se voltar.
Estava a olhar no espelho aquele jovem de óculos e chapéu quando alguém colocou um cinzeiro à sua frente.
- Por favor - disse a garçonete - é proibido fumar aqui.
William ergueu uma das sobrancelhas para a mocinha, retirou calmamente o cigarro da boca e, ainda encarando-a, apagou-o no cinzeiro, neutro e inexpressivo, como alguém que pergunta "satisfeita"?
- Obrigada. - disse ela, afastando-se.
William deslizou a mão por cima do lábio superior, como se quisesse enxugar algum suor inexistente e aguardou, voltando, sem notar, sua atenção para a sua imagem refletida três metros à frente.
Súbito, algo chamou sua atenção; dois homens altos e fortes, um negro e careca e outro louro e barbudo, entraram na lanchonete. Olharam cada um para um lado e, em seguida, para o rapaz, que se sobressaltou.
Estariam mesmo olhando para ele?
Um deles levou um celular ao ouvido e disse algo, ainda sem tirar os olhos do rapaz. Em seguida, guardou o aparelho.
Os homens não trocaram nenhum olhar, nenhuma palavra; simplesmente avançaram lentamente até ele, impedidos pela maré de pessoas que andava por todos os lados. Com uma das mãos na testa, levemente encurvado sobre o balcão, debruçado, William aguardou. Parecia distraído, até mesmo entediado, mas olhava atentamente para os homens, que continuavam a se aproximar. E olhavam fixamente para ele.
Não eram bons atores.
E também não pareciam estar de brincadeira.
Talvez o requisitassem como advogado? Assuntos importantes? Ações mirabolantes?
Mas a questão era: como o haviam encontrado?
William tinha um escritório, telefonema para contato. Sequer permitia que telefonassem para sua residência; como o encontraram?
Com o rabo dos olhos, espiou; os homens continuavam a se aproximar...
Quando um deles, o mais próximo, inclinou os braços para passar por uma pessoa qualquer, algo brilhou em sua cintura.
Um revólver.
William, na mesma posição de disfarçada embriaguez, ou quem sabe simples enxaqueca, só teve tempo para reconhecer o modelo da arma antes de pensar na ação; vislumbrou em segundos tudo o que precisava.
Uma mulher passando logo atrás, à esquerda, acompanhada de um homem.
Um rapaz logo atrás.
Um banco alto ao seu lado, ocupado por um sujeito obeso.
O balcão.
Tudo o que aconteceu em seguida pareceu correr em câmera lenta, mais até que a aproximação dos homens; William, rápido como o relâmpago, apertou com força as nádegas da mulher atrás, que passava sem vê-lo. Em seguida, voltou a olhar para frente em tempo de ouvir a moça dar um tapa no rapaz e o seu acompanhante exclamar:
- Perdeu amor à vida, fedelho?
William apoiou um pé no balcão ao lado e impulsionou-se para cima, mergulhando para trás do balcão em tempo de ouvir um grito frustrado; em seguida, correu abaixado, protegido pelo balcão.
Gritos ecoavam acima de sua cabeça; pessoas que haviam visto a cena, exclamavam, excitadas; Hoffman não se atentou a nada disso. Precipitou-se por uma porta de vai-e-vem que, tinha certeza, era acessível apenas para empregados e fechou a porta atrás de si.
Deparou com uma cozinha mergulhada em vapor de panela quente. Várias pessoas cozinhavam e gritavam instruções umas às outras, trajando vests brancas. O rapaz achou que o melhor era correr.
Correu em linha reta, esquivando-se de poucas pessoas no caminho; abriu uma porta, deparando com uma despensa sem saída; fechou-a e continuou a correr, encontrando, por fim, uma porta que levava à rua. Esquivando-se de um amontoado de lixo da lanchonete, virou à direita na primeira oportunidade, desembocando em uma rua perpendicular à que estacionara. Reconheceu, enquanto corria, o ruído de gatilho pressionado e atirou-se para atrás de uma lata de lixo bem a tempo de ouvir uma bala passar zunindo por cima de sua cabeça.
Sem se voltar, abaixado, desengonçado, correu até virar à direita novamente, deparando com seu jipe a pouco mais de vinte metros. Ainda ouvia passos atrás de si.
A rua estava movimentada; pessoas haviam parado ver o que estava acontecendo e, dentro da lanchonete, algumas espiavam pela vitrine. Talvez por sorte, quem sabe, mais tiros foram disparados, errando o alvo. William atirou-se em seu jipe, ligando-o; o automóvel respondeu com um forte ronco. Um tiro acertou a lataria.
Hoffman acelerou e, quanto esticou o corpo para trás, um crucifixo grande tornou-se visível em suas vestes.
- É, cara - disse ele, lançando um olhar rápido para o céu - Acho que você fez Murphy dizer "só dessa vez", parceiro.
Tateou à procura de um cigarro; encontrando-o, meteu-o na boca, sorrindo, satisfeito com o sucesso da fuga. Foi quando, pelo retrovisor, viu um carro negro correr em disparada em sua direção. William estava a meio gesto de acender seu cigarro com o isqueiro quando um movimento brusco do carro obrigou-o a mudar a marcha do jipe. Levou novamente a mão à boca, pronto para acender o isqueiro quando o carro negro emparelhou com o dele, obrigando o texano a virar à direita para evitar ser baleado.
Entrou em uma rua estreita, vazia, e virou à esquerda na primeira oportunidade; arrependeu-se. O carro negro o esperava do outro lado, de modo que emparelharam novamente. O homem louro, que não dirigia, atirou, e William, que de novo tentava acender o cigarro, interrompeu novamente o gesto para abaixar a cabeça, quase colidindo com o volante.
- Desgraçados! - praguejou, acelerando - Me deixem acender essa merda!
O outro carro emparelhou novamente.
- Sr. Hoffman! - gritou um dos homens - Pare o carro e ninguém sairá machucado!
William sorriu, o cigarro apagado no canto da boca.
- Nada feito, filho. - e acendeu o isqueiro.
Como o louro apontasse novamente o revólver, William, que acabara de cruzar uma esquina, deu marcha à ré e virou à direita, adiando, novamente, o uso do isqueiro. Desta vez, avanaçou por duas ruas e, quando se deu conta que fora na contramão, virou à direita para corrigir-se, entrando em uma rua mais movimentada. Deixara o carro preto para trás quando entrara em uma rua, fechando um carro à sua direita, que, por sua vez, por não parar a tempo, fechara o carro dos perseguidores.
William tinha um forte pressentimento com relação àquela perseguição. Aqueles homens, para quem trabalhavam? Para algum assassino que botara na cadeia?
Não... com a chegada dos S.T.A.R.S alguns anos antes, muitos bandidos foram presos em flagrante, e a criminalidade diminuíra exponencialmente desde então.
Aqueles homens não pareciam se importar em matá-lo, notara isso. E se queriam matá-lo, era porque ele, William Hoffman, era algum empecilho.
Por alguma razão, o rosto assustado de Bethany invadia sua mente junto com os documentos da Umbrella.
Bem, se ela se deixava levar por uma conversinha com a tal Judith, ainda bem que não se tornara advogada da corporação... Erek, então, nem se poderia falar; paranóico com a Umbrella, provavelmente apanharia aqueles documentos e o levaria à imprensa.
E por falar em imprensa, avistou o prédio do Canal Raccoon 7, em uma avenida ensolarada. E agora, o que faria?
Aqueles homens seriam mesmo da Umbrella?
Se voltasse para casa, estariam lá, talvez usando Alice como refém?
Bem, seu lado frio e racional informou-lhe que nada aconteceria a Alice e a Maryane se ninguém soubesse o paradeiro dele. Não tinham por que matá-las; não se o quisessem.
Mas que era uma coincidência muito grande enfrentar uma perseguição com direito a tiroteio após uma conversa alarmante com Bethany, era. Especialmente envolvendo uma jovem que dissera todas aquelas coisas a ela.
Acendeu finalmente o cigarro.
Não duvidava que Judith Palttrow trabalhasse na Umbrella. E se ela dissera aquilo a Bethany... bom, talvez houvesse descoberto algo que a assustara.
Contudo, ainda havia um sinistro elo entre os dois acontecimentos. Paranóia de Palttrow transmitida para Bethany, a Bethany que sempre gostara da Umbrella, que sempre a defendera de Erek, a Umbrella que agora a assustava... e Bethany não era exatamente o tipo que se deixava levar por qualquer conversa. Não confiava muito nas pessoas, não era uma jovem tão ingênua.
E aqueles homens...
Entrou em um beco e parou o carro, lançando olhares furtivos para se assegurar de que não fora seguido. Improvisando um plano, apanhou o celular e discou um número. A chamada durou até cair na caixa postal. Discou, então, outro número. Caiu na secretária eletrônica.
- Bethany, por onde você anda? - perguntou.
Discou outro número.
- Fala, Bata - disse a alegre voz do brasileiro Cássio.
- E aí, chinelo - falou William, descontraído - queria falar com a Bethany, não sei por que ela tem celular, nem atende a ligação...

- A Bethany - repetiu Cássio - Ela saiu às nove e pouco, estava toda apressadinha.
- Sim, ela esteve comigo... daí não voltou mais?
- Não, deve estar fazendo hora.
- Certo, cara... ela não disse nada sobre?
- Nadinha.
- Valeu então, cara. Te cuida.
- Você também. Falou, Bata.
- Falou.
William desligou e suspirou. Nada de nenhum de seus amigos... se fosse Bethany, o que teria feito? Provavelmente, não teria demorado tanto tempo para agir... teria ela falado com alguém antes dele?
Carlos ou Erek. Isso era fato. Especialmente Erek, que com certeza a teria apoiado.
Contudo, Erek não atendia ao telefonema. Estaria dormindo, assim como Carlos?
Precisava ir até a casa deles checar, mas e se caísse em uma cilada?
Ligando novamente o carro, saiu do beco, as perguntas se formando em sua cabeça, todas sem respostas.