domingo, 26 de abril de 2009

Onze: Os mortos caminham

Na Delegacia de Raccoon City, os policiais encontravam-se perdidos. O número de infrações crescera absurdamente naquele único dia, e as inúmeras pessoas detidas causavam um tumulto enlouquecedor enquanto aguardavam um julgamento que não viria tão cedo; a todo momento, os rádios de curta freqüência, walkie talkies e celulares tocavam, cantavam e gritavam, clamando por policiais que eram muito poucos diante dos fatos sem precedentes que estavam ocorrendo na cidade.
Policiais corriam de todos os lados, alguns deles ensangüentados; isso era porque alguns infratores não se contentavam em ficar presos. Pálidos e um tanto agressivos, tentavam abocanhar, enfurecidos, qualquer pessoa que se aproximasse demais, apresentando uma insanidade tão repentina e absurda que todos tinham certeza de que, no dia anterior, aquelas ainda eram pessoas normais. Não havia tantos delinqüentes em Raccoon City, e o mais estranho era que todos apresentavam as mesmas características. Contudo, não era preciso ser gênio para deduzir o que estava havendo.


- A Umbrella está metida nisso! - gritava um policial, tentando conter um dos infratores algemados que tentava morder seu pescoço.


Um ladrão de carros de segunda categoria estava desesperado; fora algemado ao lado de uma delinqüente de minissaia que, naquele instante, se parecia mais com um monstro do que com a mulher curvilínea que um dia fora, e ela tentava mordê-lo a todo custo, inclinando-se por cima de sua cadeira, a pele de um horrendo tom arroxeado.


- Socorro! - gritava ele - Alguém tire esse bicho feio daqui!


Mas ninguém o escutava; um policial continha um vândalo qualquer, que parecia um tanto assustado com seus futuros companheiros de cela, enquanto outros seguravam aqueles estranhíssimos infratores, gritando instruções uns para os outros; os rosnados daqueles delinqüentes era enlouquecedor, e as vozes no rádio tentavam sobrepôr-se à balbúrdia. Documentos voavam pela sala, canetas estavam espalhadas pelo chão, as cadeiras e bancos estavam posicionados de qualquer jeito, e os pedaços de um monitor que fora derrubado estava espalhado pelo local. As pessoas detidas estavam acorrentadas em qualquer lugar que as mantivesse quietas. Um dos infratores estava terrivelmente ferido; sentado a um canto, algemado, debatia-se contra uma febre misteriosa e desconhecida, mas ninguém lhe dava atenção.


- Estão pedindo uma viatura para Kyle! - informava um policial.


- Eles que se virem, as coisas aqui já estão difíceis! - retorquia um companheiro seu do outro lado da sala, contendo a custo um homem que para ele rosnava, exibindo os dentes imundos.


Subitamente, as portas da delegacia abriram-se com estrépito, e três pessoas, chefiadas por uma quarta, adentraram no local, armas em punho. Todas vestiam uma farda preta e cinza, com botas grossas, coldre, ombreira e luvas e faziam mira com suas armas; só houve tempo de ler o nome do líder estampado no peito ("DB"), porque, de uma única vez, quatro tiros ecoaram pelo local, sendo precedidos por outros. Todos os tiros acertaram os delinqüentes de feições monstruosas em cheio na cabeça. Todos os loucos enfermos caíram, imóveis, enquanto as outras pessoas soltavam exclamações de surpresa. Por fim, a gritaria cessou, exceto por um rosnado a um canto. Todos olharam para os recém-chegados; no braço de cada um dos quatro, brilhava o conhecido emblema dos S.T.A.R.S, os peritos em resgate que haviam sido contratados especialmente para diminuir o nível de violência da cidade. Altamente treinados, formavam o grupo de elite de Raccoon City.
Um pouco atrás do líder, havia a única mulher do grupo, uma moça jovem e risonha de cabelos curtos propositalmente despenteados; ao seu lado, estava um rapaz de boina e rosto largo e, ao lado deste, um rapaz tímido de óculos e cabelos encaracolados. O líder, um moço jovem e alto, de cabelos escuros, sobrancelhas grossas e semblante sereno, vasculhava o local com o olhar.


- O que pensam que estão fazendo, Collins? - perguntou um policial, assustado, que já não precisava mais conter um infrator, já que este se encontrava estatelado no chão ao seu lado.


Collins "DB", o líder calmo do jovem grupo, retorquiu:


- Estão infectados. Já não disseram para atirar na cabeça?


- Só estão loucos, vocês não podem sair atirando assim!


- Loucos de uma doença que não tem cura e é contagiosa.


- Socorro! - gritou o ladrão de carros a um canto.


O líder S.T.A.R. apontou uma pistola para a mulher que ameaçava o homem e, com um único tiro, exterminou-a. O ladrão olhou pela primeira vez para seu salvador. Este ainda mantinha a pistola em posição, sério e lacônico.


Então, tarde demais, o ladrão notou que um infrator que, até então, ficara a um canto, sentindo mal-estar, arreganhara os dentes, repentinamente pálido, saudável e ameaçador, e avançava para o líder S.T.A.R., seu alvo mais próximo, que notando a situação tarde demais, já não podia reagir.


Outro tiro ecoou milésimos de segundos depois, e o homem pálido e assustador estatelou no chão, enquanto seu alvo, o S.T.A.R. Collins, deu um rápido passo para frente para evitá-lo e, como todos, olhou para quem acabara de efetuar o disparo.


Fora uma mulher bonita, de cabelos curtos, tomara-que-caia azul-vivo, minissaia preta e botas sem salto. Poderia passar por uma civil se não houvesse um coldre em seu tronco, uma pistola idêntica à do S.T.A.R. em sua mão e uma expressão decidida no rosto.


- Essa foi por pouco, DB! - exclamou o moço de boina, aliviado.


- Obrigado, Jill. - disse Collins "DB" à mulher que acabara de chegar.


A moça assentiu e disse:


- Não há mais o que fazer aqui. - e, em seguida, apontou a arma para o ladrão de carros que gritou, mas o tiro foi para livrá-lo de suas algemas - Eu vou dar o fora da cidade e aconselho a fazer o mesmo.


- Não pode sair soltando os prisioneiros, que diabos está havendo... - dizia um policial, sem entender.


- Não podemos mais decidir o que é certo ou errado, Perks, só quem vive e quem morre. - retorquiu Jill.


- E não podemos abandonar nosso povo. - lembrou calmamente DB - Estão morrendo lá fora.


- E você será um deles se ficar. - retrucou a moça, dando as costas ao grupo e saindo da delegacia.


- Vamos com eles, Dan - disse a outra S.T.A.R, a menina de cabelos curtos e despenteados - Já é tarde demais.


- Certo. - concordou ele - Mas vamos tentar ajudar quem estiver no caminho.


Os quatro carregaram suas armas com um estalo e saíram da delegacia, sendo seguidos por policiais apressados e bandidos que foram soltos, todos unidos em sua pressa de sair da cidade.


- Já saiu o jornal vespertino, galera. - comentou o S.T.A.R de óculos, enquanto os quatro andavam calmamente até o carro - A manchete? "Os mortos caminham".


- Não dá pra acreditar que uma coisa dessas aconteceu aqui... - suspirou a única moça do grupo.


- Mas aconteceu, Ivanova. - afirmou DB, abrindo a porta do carro - E a culpa é da Umbrella e seus cientistas nada ambiciosos.


Os quatro entraram no carro.


- Acham que vai dar pra irmos de carro até a ponte com a cidade nesse estado? - perguntou o moço de óculos.


- Não sei, Dave, mas tem que dar. - respondeu o rapaz de boina, sentando-se no banco do passageiro - Eu ainda tenho muito o que fazer na minha vida, e não vai ser essa Umbrella maldita que irá me impedir!
___________


William Hoffman encontrava-se em um estado de crescente ansiedade. Estacionou seu jipe próximo ao bar do Dick e saltou dele, entrando às pressas no local. Estava vazio, exceto por Erek Leon, que estava sentando à porta do estabelecimento.


- Alice! - disse o texano - Ela passou por aqui?


- Não a vi, Will, acho que não. Will, tive uma idéia sobre como rastrear Bees...


Mas Will já saíra do bar, e Erek seguiu-o correndo.


- Aonde você vai, Will? Não quer saber como...


- Eu tenho que encontrar minha mulher, Erek!


Quando Will saltou para dentro do jipe, o amigo imitou-o.


- Que tá fazendo, cara? Fique aí!


- Você não está legal, e o Carl pode esperar. Vou com você.


Will não tinha tempo para discussões; só sabia que aquela era uma das raras vezes em que seu instinto sobrepunha-se à razão, e ele lhe informava claramente que precisava chegar à sua casa o mais depressa possível.


O trajeto foi mais tranqüilo em termos de trânsito, porém mais tenso para o jovem texano. Manifestando seu lado calado, companheiro e silenciosamente compreensivo, Erek nada disse e tampouco olhou para o amigo, limitando-se a olhar a paisagem ao redor como se estivessem em um agradável passeio, e não em um trajeto feito por um amigo descontrolado em um dia um tanto sinistro.


Por fim, os dois amigos avistaram a residência dos Hoffman; Erek pensou ter ouvido um ruído abafado de motor e visto uma fumaça em algum vão da garagem coberta, mas estava tão preocupado com Will e com o motivo de o amigo estar assim que não se atentou a esse fato.


Os dois saíram do veículo e Will sacou a magnum; Erek nada disse, apenas apanhou uma pistola que sempre tivera por medida de segurança em sua casa e acompanhou-o.


Próximos à casa, ouviram o inconfundível ruído de motor ligado; era fato que havia alguém ali, um fato confirmado pela porta que não estava trancada.


Uma vez no interior da casa, rumaram para a porta que levava à garagem coberta, as mãos segurando firmemente suas respectivas armas; Will não agia como se trabalhassem em dupla - parecia ignorar a presença de Erek, que recebia a atitude impassivelmente. Sem emitir nenhum sinal, o jovem Hoffman abriu com um puxão a porta que levava à garagem.


A fumaça cinzenta e fedorenta que invadiu em segundos o local causou tosse instantânea nos dois amigos, mas Will ignorou esses sintomas e entrou na garagem. Da porta, Erek espiou.


O conhecido Opala de William estava ali, guardado e conservado como sempre fora, o motor ligado emitindo uma fumaça que se espalhara pela garagem, concentrando-se naquele ambiente fechado. Para completar essa estranha visão, uma cena chocante: a porta do carro estava aberta e, sentada no banco do motorista, a cabeça caída para um lado, estava Alice Jane Hoffman, de olhos fechados.


Will venceu em poucos passos a distância que o separava do carro e, com um movimento desajeitado, desligou o motor e puxou um corpo menor que o de Alice e igualmente imóvel, fazendo o estômago já embrulhado de Erek virar do avesso de tanto choque; era Maryane.


Não dava para ver a expressão no rosto de Will porque ele não tirara os óculos, mas foi com visível desespero que ele carregou o frágil corpinho infantil para fora do carro e depositou-o no chão.


- Mary! - chamou, a voz estranhamente trêmula. Era raro a voz de Will vacilar daquela maneira e, talvez surpreso pelo amigo ser capaz de emitir tal som, Erek manteve-se paralisado à entrada da garagem, vendo Will improvisar uma massagem cardíaca em um óbvio esforço de trazer a filha de volta à vida - Maryane! Maryane!


O corpo da menininha continua imóvel, mais imóvel que os dois rapazes viram em vida; a menininha poderia estar dormindo se não estivesse tão pálida. A frente de suas vestes estava suja; havia um ferimento no pescoço cujo sangue escorrera para a blusa, mas havia também um líquido alaranjado cujo fedor se misturava à fumaça do escapamento: era vômito.


Desamparado e desesperado, Will voltou-se para a mulher; enquanto erguia-se, apertou um botão na parede que abria a porta da garagem para o ar poder circular e puxou para si Alice; a falta de circulação sangüínea causava-lhe a palidez da morte, e ela balançou como uma boneca de pano quando o esposo abraçou-a, a cabeça pendendo molemente.


- Alice... - sussurrou ele, os lábios tremendo, úmidos de suor - Minha querida... por que fez isso? Você pode respirar agora... Alice!


Ele olhou para o corpo da filha no chão e tornou a abaixar-se para ele, após apoiar o corpo de Alice cuidadosamente no banco do carro. Tornou a tentar fazer massagem cardíaca, desesperado, sujando as mãos de vômito, e ergueu os olhos ao notar um movimento à sua frente; refeito do primeiro choque, Erek aproximara-se.


- O que eu faço? - perguntou William - Você entende disso...


- O seu carro, Will - disse Erek - Tem catalisador?


- Eu... eu já desliguei o motor.


- William... ele tem?


- Ele é velho e não o uso... mas o que isso tem a ver? Me ajude a carregá-las para o hospital!


Erek inspirou profundamente. Pesava-lhe cada palavra que teria de dizer naquele momento.


- Will... não há mais o que fazer.


- Porra, do que você tá falando? Deixe que eu levo! - e ele fez menção de carregar a filha nos braços.


Erek o deteve colocando a mão em seu ombro.


- Will, quando um carro não tem catalisador, ele emite uma quantidade muito alta de monóxido de carbono...


- Eu sei, só preciso desintoxicar as duas!


- O monóxido de carbono liga-se à hemoglobina, Will... no lugar do oxigênio. Chegamos tarde demais, não tem como tirar. A... a carboxiemoglobina é muito forte... se tivéssemos chegado alguns minutos antes...


- Estamos perdendo tempo aqui, vamos, precisamos levá-las...


Erek abaixou-se e tocou o pescoço e o coração de Maryane.


- Não há mais o que fazer, Will. Eu sinto muito.


Com impaciência, William empurrou Erek para o lado e reiniciou a massagem cardíaca na filha; Erek, no entanto, olhava da mancha escura de sangue nas vestes da menina para a ferida em seu ombro, analisando tudo friamente como o amigo certamente faria em outras condições. E, para intensificar seu desagrado, Will curvou-se para fazer uma respiração boca-a-boca na filha.


- Não! - disse, detendo novamente o amigo com a mão em seu ombro - Você vai se contaminar!


- Que merda é essa agora?


Mas Erek agora pensava rapidamente. Ficara tão impressionado com o fato de Alice ter matado a própria filha e suicidado que não parara para refletir sobre o porquê disso. Contudo, ao ver o sangue na pequena Maryane, tudo parecia mais claro. Desviando-se do amigo, que agora o olhava, como se fosse sua única esperança, Erek foi até a porta do carro e analisou Alice; não precisou procurar muito. Viu uma bandagem sangrenta improvisada na panturrilha dela. Então, a luz que se fizera em sua mente foi confirmada.


No primeiro instante, tomara o ferimento de Maryane como um ferimento comum que a matara e, em um ato de desespero por perder a filha, Alice teria morrido intoxicada. Contudo, ao perceber que a menina vomitara - um dos sintomas de intoxicação por monóxido de carbono era náusea - e que a ferida fora causada por uma mordida tão similar aos ferimentos que vira na televisão tantas vezes no bar do Dick, compreendia o que acontecera.

- Will - disse Erek com voz estranha - Elas foram infectadas pelo vírus da Umbrella.


Então William pareceu, em meio à dor, recobrar a razão. Franzindo a testa, olhou para a filha mais atentamente, e dela para Alice. Então, sem dizer mais nada, ergueu-se e olhou para as próprias mãos. Aproximou-se de um tanque similar ao de uma lavandeira e lavou-as, melancólico. Em seguida, saiu da garagem pelo portão. Erek o seguiu.


- Cara, eu sinto muito...


Mas Will nada disse, apenas chegou ao jipe, e os dois embarcaram.


- O que pensa em fazer?


Novamente, o amigo ignorou-o e deu a partida no carro.


O jipe avançou pelas ruas até o bar do Dick, onde Will estacionou.


- Vai se encontrar com Carl aí, não é?


- Vou, mas o que pensa em fazer, Will?


- Ter uma conversinha com um certo filhinho da mãe. - respondeu este, a voz tremulando de raiva.


Erek não o deteve, antes saiu do carro, e Will partiu, desaparecendo de vista.


Olhou ao seu redor, então. Pessoas caminhavam e corriam, inquietas, conversando entre si; um garoto de uns dezoito anos pregava manchetes de jornais nos postes, apressado. Erek deteve-se em um deles e leu a seguinte manchete:




"Os Mortos Caminham"




Abaixo, havia um artigo sobre as suspeitas de alguns legistas da cidade. Segundo eles, a hora da morte de pessoas baleadas naquele dia não condiziam com o estado do corpo; de fato, estes mostravam inconfundíveis indícios de morte muito antes da perfuração de bala que policiais haviam disparado para contê-los.


Havia ainda uma entrevista com um conspirador da Umbrella Corporation, que afirmava categoricamente que suas suspeitas existentes há muitos anos sobre armas biológicas produzidas pela Corporação enfim haviam sido comprovadas. Testemunhas oculares afirmavam que conhecidos mostravam estranhas e repentinas tendências ao canibalismo, e uma médica assinalava estranhos sintomas comuns nos vários delinqüentes que se espalhavam pela cidade, concluindo que aquelas "criaturas" eram mortos que estavam caminhando por Raccoon City, sedentos de carne e sangue. Erek, que não esqueceria tão cedo a visão de Alice e Maryane mortas, pensou que não se sentiria pior ao ler aquela notícia, mas agora sabia que se enganara.
_________


A Umbrella Corporation era associada a uma companhia de celular, o que não era novidade para Carlos Visconti. A sede ficava em uma das avenidas principais de Raccoon City, um pouco afastada do bairro onde Erek Leon, naquele instante, se encontrava, à espera dos companheiros, pouco antes de Will encontrá-lo.


Não era novidade também que o celular de Bethany era ligado àquela companhia. Assim, na moto de Erek, Carlos e Maurício avançaram pelas ruas mais sossegadas da cidade, notando que alguns grupinhos de pessoas paravam pra conversar... se algo estranho já ocorria naquelas casas respeitáveis, os dois não notaram, apressados estavam em chegar a seu destino. Já era notável parte do caos no tráfego quando chegaram a avenida onde estava localizada a sede de telefonia celular local.


- Certo, cara... com o celular que o barman me emprestou e com o seu, vamos nos comunicar e você vai fazer exatamente o que eu disser. - afirmou Carlos.


- Tem certeza de que vai dar certo?


- Vai, eu ajudei a programar essas belezinhas...


Nesse instante, a porta fechada de uma loja de roupas no quarteirão à esquerda da empresa abriu-se com estrépito, e pessoas precipitaram-se para fora aos berros - visivelmente fregueses.


- O que houve lá? - perguntou Mauricio, assustado.


Carlos não respondeu; distinguiu alguns vultos atrás da vitrine, mas não podia ver muito - sua visão era péssima e havia várias roupas enfileiradas em cabides, dificultando o acesso visual ao cenário.


- Não sei - disse ele - Mas é melhor você ir, e bem depressa. Faça tudo como combinamos!


Mauricio engoliu em seco e desceu da moto, rumando para a sede de telefonia de Raccoon City. Tinha perfeita consciência, e aquela última cena apenas pareceu realçar isso, de que havia um caos naquela cidade, e tudo por culpa da Umbrella. Queria ir embora o mais rápido possível, porém sabia que sozinho não conseguiria - não tinha nem seu carro por perto! Então, o melhor a fazer era ajudar aquele estranho grupo a encontrar a tal Bethany e sair dali. Contudo, era bom que não se demorassem nessa tarefa - Mauricio não sabia quem era essa mulher, mas tinha certeza de que não daria a própria vida por ela. Se precisasse sair da cidade sozinho, ele o faria - aqueles malucos que tentassem encontrá-la sozinhos!


Mauricio empurrou a porta de vidro, entrando em uma loja fresca e arejada que abafava os ruídos da rua; apesar disso, o ambiente naquele lugar não estava normal.


Havia, naquele primeiro cômodo, quatro fileiras de cadeiras, a maioria ocupada por fregueses insatisfeitos; no balcão, três atendentes uniformizadas conversavam com seus respectivos clientes; outras pessoas pareciam preocupadas, dando telefonemas ansiosos, sentadas ou em pé, caminhando pelo local, e outros funcionários da empresa andavam a passos rápidos, transmitindo informações uns aos outros, visivelmente tensos. Um corredor dava acesso ao restante do edifício.


E, por alguma razão, a televisão no alto da salinha estava desligada. Um ou dois clientes ansiosos não paravam de lançar a ela olhares furtivos, e um deles até se levantou e perguntou em um tom anormalmente alto:


- Pode ligar a televisão, mocinha?


- Sentimos muito, senhor, mas está estragada.


Lançando olhares esquivos, Mauricio aproximou-se do balcão; notando que ninguém o impedia, ele avançou rumo ao corredor, cuja placa informava ser restrito a funcionários.


- Ei! - chamou alguém às suas costas.


Mauricio olhou para trás; era o homem nervoso que caminhava pelo local e pedira para que ligassem a televisão. Felizmente, as atendentes, ocupadas, nada notaram.


- É só para funcionários. - disse o homem, quando se aproximou o suficiente de Mauricio para lhe falar.


Conforme Carlos e Erek haviam lhe dito, o rapaz ergueu um crachá rapidamente e baixou-o antes que aquele homem notasse que não era o documento da empresa telefônica, e sim de uma concessionária onde ele trabalhava.


- Sinto muito, mas não posso atendê-lo, estou com pressa. - acrescentou Mauricio, sentindo que precisava deixar o serviço bem feito - Com licença - e subiu as escadas.


Essa era outra tática ensinada pelos dois novos companheiros; a possibilidade de alguém usar a escada quando havia um elevador era mínima. Era verdade que havia câmeras, mas com a confusão daquele dia, havia alguma chance de Mauricio passar despercebido e, se fosse apanhado, poderia se safar com uma boa conversa já ensaiada.


Assim, quando estava no segundo lance, ele levou o celular ao ouvido, chamando Carlos.


- Estou indo para o segundo andar.


- Ok... preciso que você me diga o que está vendo para eu poder me orientar... só estive aí uma vez, a parte mais difícil vai ser chegar a um desses computadores... o resto é...


Mas o que o resto era, Mauricio jamais soube, porque, naquele instante, o telefone ficou mudo. Tirou, então, o aparelho da orelha e olhou para o visor - estava sem sinal.


Estava em uma empresa de telefonia onde seu celular não funcionava. Passos ecoaram no segundo andar, um pouco acima de sua cabeça, e um vozerio ecoou no andar de baixo.


O plano falhara.

domingo, 19 de abril de 2009

Dez: Quando o anjo vira demônio

Alice Hoffman finalmente chegou à Escola Primária de Raccoon City. Ela tinha esse nome, mas recentemente passara a abrigar os estudantes de Ensino Secundário graças aos generosos investimentos da Umbrella Corporation.
Naquele dia, havia uma confusão ao redor daquele conhecido prédio marrom de janelinhas idênticas. Alguns policiais haviam formado um cerco para impedir a aproximação de curiosos, e um furgão com uma equipe de reportagem filmava o local. Ouvia-se o tumulto de estudantes inquietos no interior da escola, e pais desesperados tentavam chegar até as portas duplas de entrada.
- Esta cidade endoidou! - gritava um homem - Eu quero pegar o meu filho!
- Ninguém entra ou sai. - disse um policial com firmeza - Está tudo sob controle.
Ouviu-se, então, um grito na escola, um grito que se sobrepôs ao tumulto. Não era um grito qualquer; era de pavor. Alguém estava aterrorizado lá dentro, uma criança. Uma criança aterrorizada.
Então, Alice enfiou-se no meio da multidão, chegou até um policial e, sem lhe dar satisfação alguma, forçou-lhe o braço em um ângulo estranho. Gemendo de dor, o policial rompeu o muro humano, e Alice entrou nos terrenos da escola, sendo seguida por várias pessoas.
- Voltem aqui! - berravam os policiais, dando tiros para o alto.
Alice, contudo, chegou às portas de entrada, que se abriram antes que pudesse tocá-las, e uma horda de estudantes e de funcionários correram escadaria afora, apavorados.
Nadando contra a corrente, Alice adentrou no prédio, onde materiais escolares, desde folhas soltas a mochilas e merendeiras, voavam ou se espatifavam em todos os cantos; as portas das salas de aula gemiam sob a pressão dos estudantes que a empurravam para sair, e as portas dos armários balançavam por todos os lados. Todas as escadas estavam cheias de gente, de gritos; as crianças mais novas choravam, os mais velhos chamavam por seus parentes e amigos, os funcionários gritavam instruções ou simplesmente corriam...
Alice sabia que as salas de quarta série localizavam-se no terceiro patamar, de modo que se debruçou no corrimão da escada mais próxima e subiu por ela.
No segundo patamar, alguns alunos retardatários saíam de suas salas. Alguns esvaziavam seus armários, outros simplesmente corriam trocando informações incertas, e ainda outros tentavam desesperadamente telefonar para seus conhecidos... Alice sabia que nenhum conhecia a verdade. Quem conhecesse a verdade não se demoraria muito em Raccoon City.
Estava quase chegando à escada que a levaria ao terceiro andar, rezando para que a filha estivesse na sala de aula, quando ouviu um grito em uma sala atrás de si.
Na mesma hora, recuou até a porta, o coração batendo, acelerado, contra seu peito. Ficaria cara a cara com um deles? Um enfermo que se assemelhava a um monstro? Depararia com a cruel cena de um doente agredindo uma criança indefesa em um insano gesto de canibalismo?
Pé, ante pé, colocou-se ao lado da porta que guardaria a medonha cena e olhou para dentro da sala; as cadeiras estavam viradas, os materiais espalhados, e uma garota de uns doze anos estava caída, ao lado de outra, que a olhava.
- Vamos, Stacy!
- Ai, eu tropecei... vamos.
As duas precipitaram-se para fora da sala, e Alice as deteve, recuperando-se do susto.
- Vocês sabem o que aconteceu com a quarta série?
- Fugiram. - respondeu uma delas, e as duas correram.
Alice subiu as escadas até o terceiro patamar; este estava vazio. Não se lembrava de qual era a sala da filha de modo que espiou para dentro de todas, uma a uma. Fizera isso com três salas quando ouviu um rosnado em uma das que ainda não verificara.
Inspirando profundamente, a médica aproximou-se da porta e olhou. Deparou com uma cena que a fez perder o fôlego.
Um cachorro policial da raça doberman, com uma ferida no dorso, estava parado diante do estrado, rosnando para uma das carteiras. E, para o terror de Alice Jane Hoffman, em meio às carteiras caídas, encolhida embaixo de uma delas, estava Maryane - a sua Maryane - os olhões arregalados de um terror mudo.
O que aconteceu a seguir foi muito rápido: no instante em que o cachorro avançou para o alvo, Alice precipitou-se pela sala e agarrou uma cadeira; sem pensar, sem raciocinar, avançou para o animal com ímpeto, separando-o de sua filha.
- Corra! - gritou para ela.
Não viu, mas ouviu uma série de passinhos céleres em tropel para fora da sala, e correu atrás; enquanto isso, zonzo, surpreso com o ataque que sofrera, o doberman ergueu-se, avistou o alvo mais próximo - Alice - e atacou-a.
A meio caminho de se precipitar da sala, a mulher caiu, sentindo as presas perfurarem sua panturrilha e sacudi-la vorazmente; Alice tateou, enquanto se debatia, buscando por algo que a salvasse; suas mãos se fecharam em torno da alça de uma lancheira...
A médica bateu com o objeto na cabeça do animal, e o golpe deu-lhe tempo para se levantar; atirou-lhe a merendeira, mas o doberman estava preparado e se esquivou. Alice, então, agarrou outra cadeira e bateu com força no bicho ao mesmo tempo em que recuava para o umbral da porta. Agarrou esta e fechou-a; pôde ouvir algo pesado colidir do outro lado.
Olhou para os lados, aflita, enquanto sentia a perna direita latejar; Maryane, com metade das vestes empapadas de sangue no tronco, a fitava, os olhos arregalados de terror e os cabelos muito louros desarrumados.
Alice, então, abaixou-se, abrindo os braços, e a filha correu para abraçá-la. A médica apertou-a junto ao peito, as lágrimas escorrendo livremente pelo seu rosto, misturando uma onda de alívio com um grande desespero. Conhecia a verdade, a terrível verdade, embora se recusasse a acreditar.
Mas era a verdade, e o fato de não desejá-la, de repudiá-la, não impediria a verdade de continuar a sê-la. E era isso que a mais a atemorizava.
Chegara tarde para salvar a filha. Ainda que pudesse sentir o coraçãozinho de sua Maryane pulsar no ritmo da vida, bombeando sangue pelas artérias, veias e capilares, ainda que pudesse sentir a respiraçãozinha assustada e aliviada em seu pescoço, ainda que Maryane estivesse ali, com seus bracinhos abraçando-a, Alice sabia que havia chegado tarde demais para salvá-la.
Tudo terminara ali.
Contudo, tinha de garantir que nada pior acontecesse. Se tivesse que ser de alguma maneira, teria de ser à sua. Teria de garantir que a verdade não se tornasse mais medonha.
E, com essa resolução, os ruídos no interior e exterior da escola pareceram aumentar de volume, como se o abraço aliviado que houvesse pausado o pânico por alguns instantes já não surtisse mais efeito. Então, mãe e filha se separaram. Alice retirou seu casaco e rasgou-o, improvisando um curativo no ombro da filha e na perna dela própria. Por fim, ergueu-se e segurou a mão de Maryane.
- Venha comigo. - disse Alice - Vamos para casa.
Nunca tivera um membro dilacerado antes, mas pensava que a dor não deveria ser tão terrível quanto aquela, e sabia o que a fazia pensar isso. Não era um ferimento qualquer. Era um ferimento maldito.
Mãe e filha desceram as escadas. A mordida na região da clavícula de Maryane deveria estar doendo, mas ela não se queixava. Maryane nunca se queixava de dores.
As duas desceram as escadas rapidamente; podiam ouvir gritos vindos de algumas partes da escola, mas não se detiveram. Chegaram, por fim, à entrada, e Alice conduziu a filha até o carro.
Foi difícil dar marcha à ré naquele caos que se instaurara fora da escola nos minutos em que a médica buscara a filha, mas ela conseguiu, por fim, pôr o veículo em movimento.
- Onde está o papai? - perguntou finalmente Maryane, sentada ao lado da mãe.
- Ele vai estar em casa logo, logo. - respondeu a mãe, lançando um olhar rápido para a filha; tentou sorrir, mas foi um sorriso tão triste que deu graças aos céus por sua filha ser nova demais para perceber isso.
Esquecera o celular em casa. Bem, isso facilitaria muito as coisas. Sabia perfeitamente o que fazer, e a presença de William apenas dificultaria tudo. Será que ele estaria bem? Será que ele já sabia o que estava acontecendo?
Precisava avisá-lo.
Alice foi brindada com a mesma dificuldade que tivera para chegar na escola naquele trânsito infernal. Por mais que tomasse atalhos, nenhum deles lhe parecia realmente útil. Nem bem a tarde começara e o caos era total.
- Mamãe, o que está acontecendo? - indagou Maryane.
- Eu não sei, Mary. - respondeu Alice - Mas sei que vai dar tudo certo.
Sempre que não queria responder a uma pergunta por achar a resposta inapropriada para uma criança, Alice respondia que não sabia. Isso sempre evitava insistências indesejáveis, e ela não queria de modo algum impressionar a filha com histórias horrorosas.
"Não que ela já não estivesse impressionada", pensou, "Por favor, um cachorro a mordeu, e sabe-se o que mais que ela viu naquela escola..."
- Por que todo o mundo correu? Estavam com medo de quê? - perguntou Maryane - Eu não fui embora porque eu sabia que a senhora viria me buscar, mamãe. Mas a senhora veio antes do que costuma vir.
- Eu sabia que precisava vir. Logo chegaremos em casa, querida.
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- Certo, o que faremos agora? - perguntou Erek - Deu a louca no Will, Bees se evaporou e sabemos que alguma coisa está acontecendo por aqui...
- Nós vamos é esperar nossa querido amigo texano. - respondeu Carlos - Enquanto isso, precisamos de uma idéia bacana.
Novamente, a televisão no bar do Dick exibia uma chamada para os eventos estranhos, mostrando pessoas que se apresentavam repentinamente violentas.
- Um vírus... - comentou Erek - Aposto que o vírus que queriam testar na gente tem a ver com isso.
- E parece ser contagioso. - acrescentou Carlos - Não sabe como é difícil para mim permanecer aqui enquanto vejo essa coisa... ei, essa coisa está se espalhando?
- Parece que sim. - respondeu o amigo - Vê? Todas essas pessoas estão feridas, Carl. Parece que tiveram contato sanguíneo. É contagioso. Eu vivo dizendo que aquela galera da Umbrella lida com coisas da pesada, mas nenhum de vocês quis me ouvir... agora, perderam o controle da coisa...
Maurício engasgou com seu gole de refrigerante.
- O quê?! É uma doença?!
- É o que parece. Os efeitos é que são sinistros... se o Harker não tivesse falado em virus, eu diria que se trata de um príon, mas não tenho certeza sobre...
-... que porra será essa. - completou Carlos - Acha que um vírus faria isso com as pessoas, cara?
- Nunca ouvi falar em nada assim.
- Eu realmente quero cair fora daqui, mano. Ligue pra Bethany.
Maurício, ainda apavorado com o que ouvia, discou o número de Bethany Yenne. Novamente, chamou até cair na secretária eletrônica.
- Não é muito consolo. - comentou Erek - Não sabemos se Bees está com o celular, para começar, e se não estiver, nós nunca poderemos...
De repente, os olhos do rapaz saíram de foco.
-... encontrá-la...
- Cara, você tá bem? - perguntou Carlos, preocupado - Se você andou cheirando vírus, é bom avisar, eu ainda quero comer uma granola antes de...
- Satélite!
- Hein?
Erek sorriu.
- Satélite, Carl! Celulares podem ser rastreados via satélite! Era assim que a Umbrella estava nos rastreando...
- Não duvido. A Umbrella deve ter hackers trabalhando para ela. Se não, ela pode ter algum domínio sobre operadoras e rastrearem celulares sem permissão judicial, mas isso o que isso tem a ver com a história?
- Se você, Carl, rastrear a Bees, saberemos onde está o celular dela! Já é alguma coisa.
- Gênio, mas eu não acabei de dizer que é preciso usar o software da operadora, e ainda assim com uma permissão judicial?
- Aí é que está. Essa cidade está um caos, nós podemos visitar uma operadora local e você tenta encontrar o celular da Bees... você sabe como isso funciona...
- Mas se a Umbrella estava nos rastreando através da operadora, não é um pouco complicado cair de bandeja na zona deles?
- Não se não cairmos na mão deles.
Os dois amigos trocaram olhares cheios de significação e voltaram-se para Maurício. Este os encarou, sem entender.
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Minutos de tensão, com um tráfego insuportável. Alice, por vezes, olhava pela janela e via algumas pessoas de aparência estranha, agressivas, provocando confusão. O seu futuro...
Talvez fossem umas três horas da tarde - isso não lhe importava. O fato era que conseguiu chegar à sua casa, milagrosamente vazia. A alameda onde morava estava silenciosa, como sempre, em oposição ao tumulto na região central da cidade.
Estacionou o carro diante da casa e saiu dele. Sentiu sua ferida latejar e precisou se segurar no veículo para não se desequilibrar. Ao mesmo tempo em que a ferida causava uma dor lancinante em sua canela, o resto da perna estava dormente, como se estivesse falecendo silenciosamente.
- Mamãe, a dor está pior. - avisou Maryane com a voz fraquinha.
Alice conteve as lágrimas de dor e olhou para a filha; ela estava pálida - seria de dor ou por causa da doença?
- Vai ficar tudo bem, meu amor... vamos entrar. - disse a mãe, entrando no caminho que levava à porta de entrada.
William não estava na casa. Tudo parecia em ordem, exceto que o aviso afixado na geladeira desaparecera. Will estivera ali.
Alice apanhou um papel em uma gaveta e uma caneta no criado-mudo e escreveu nele durante uns poucos minutos. Finalmente, prendeu o pedaço de papel na geladeira e inspirou profundamente. Chegara a hora. A dor cada vez mais forte e insuportável em sua perna lhe informava isso. Naqueles poucos minutos, o formigamento subira para sua cintura, e a dor se espalhara para o seu pé e o joelho. O vírus a devorava por dentro, sabia disso.
Olhou para Maryane. Impotente, a menininha sentara-se no sofá, bem quietinha, defronte à mãe, as pernas esticadas para frente. Estava muito quieta, mais do que o normal, e um tanto encolhida. Alice sabia que a dor que sentia era compartilhada pela filha, embora esta não pudesse compreendê-la. Um vírus, um estranho e mortal vírus espalhava-se por suas entranhas... um vírus que, pouco a pouco, agredia aquela menininha até matá-lo...
E não havia cura. Uma praga, talvez a oitava praga, não do Egito, espalhava-se por Raccoon City, inclusive pelas duas pessoas presentes naquela sala, e Alice conhecia muito bem o futuro delas. Se continuassem ali, enquanto suas vidas, pouco a pouco, eram consumidas, em poucas horas, uma delas sucumbiria primeiro. Uma delas enlouqueceria, morreria, e atacaria a outra. Isso se não acontecesse algo... havia mais pessoas lá fora, doentes, infectadas... Alice não poderia causar mais sofrimento a Maryane do que já estava causando.
E se fosse ela, Alice, a primeira a se transformar? Não sabia onde William estava, e ele não poderia fazer nada por Maryane, exceto esperá-la se transformar, caso conseguisesse chegar até sua casa ileso... e, enquanto isso, Alice seria um perigo para a filha...
A filha que não tinha cura. Que sofreria dores e mais dores, sem compreender, correndo mais riscos enquanto permanecesse ali...
- Mary, venha aqui. - disse Alice de repente.
Ela segurou a mão da filha e conduziu-a até a garagem fechada da casa. Nela havia um opala bonito, conservado, que era o carro de estimação da família. Fora o primeiro carro de William e fora com ele que ele dera a primeira carona para Alice.
A médica fechou a porta atrás de si e disse:
- Minha filha, fique aqui... vai ser rápido, eu juro que vai ficar tudo bem, viu? Tudo vai passar... tudo vai passar... vai passar...
Certificando-se de que a garagem estava fechada, Alice abriu a porta do carro e sentou-se num banco, colocando a filha em seu colo. Em seguida, ligou o carro.
Os minutos se passaram lentamente, e logo o cheiro da fumaça que saía do escapamento invadiu as narinas de mãe e filha. Maryane não tardou a tossir.
- Mamãe, eu quero sair daqui...
- Respire, minha filha... vai ficar tudo bem, confie em mim.
Alice sentia a fumaça intoxicá-la, e na condição de médica, podia descrever perfeitamente o que ela fazia com seu corpo... antes ela do que o vírus... antes ela do que o vírus, pensava, abraçando a filha com força.
Os minutos se passaram, e começou a faltar ar. Alice e Maryane respiravam entre arquejos, e a mãe podia sentir a filha chorar e engasgar baixinho.
- Mamãe...
Alice apertou a filha com o pouco de força que lhe restava, sem dizer nada.